segunda-feira, 2 de agosto de 2010

NAS PEGADAS DO NÃO SER - 4 - João Batista Mezzomo


 QUEM TEM OUVIDOS
Autor: João Batista Mezzomo

4 . NAS PEGADAS DO NÃO-SER
Segundo nossa concepção, o abstrato, que resultou interditado desde a primeira inversão, nem por isso deixou de existir, antes pelo contrário. Dentro de sua interdição ele pressiona e reivindica o que lhe é de direito: o “status” de realidade. E neste pressionar ele advém para o mundo e o funda. No que concerne à nossa consciência, esta reivindicação do abstrato eclode como sinais que podem criar coisas no mundo, os quais costumamos denominar, em nossa vida cotidiana, simplesmente “intuição”.

 Nesta perspectiva, o ser humano desde sempre é conduzido pelo abstrato, ainda que detenha alguma margem de decis ão sobre sua vida. Se olharmos para a história da humanidade, veremos que todas as principais decisões que a carregaram para algum ponto foram tomadas a partir de forte influência intuitiva. Podemos classificar neste âmbito toda a arte, toda a religião e toda a metafísica, incluídas nesta última, em alguma medida, a filosofia e as próprias ciências da natureza. Da mesma forma, todas as ações de guerra, domínio, invasão e alastramento das culturas no âmbito planetário foram como que conduzidas por vontades cuja sede não se situa no mudo concreto.

Ademais, podemos perceber como o não-ser, que ultrapassa os moldes da razão, esteve sempre num contraponto com o ser, e neste sentido moveu e ainda move a roda do mundo. Apenas para citar um exemplo, era ele que estava por baixo quando a Escolástica foi a pique, no final da Idade Media e inicio da Era Moderna. Pois o mundo, como o descortinado pela razão, mostrou-se um equivoco, e denunciou que ela é limitada para antecipar a realidade. E isso ocorre justamente por nossa noção de realidade prender-se unicamente ao ser, deixando uma parte de fora. E quando nossa visão de mundo atinge o impasse, a parte encoberta faz o velho edifício desabar, para que surja um novo.

Mas não é somente na hora da transição que o abstrato se mostra. Pois o mundo construído pela cultura se funda justamente em produtos de sua eclosão. E as formas como o abstrato eclode podem variar em função do tempo e da cultura, ou seja, da própria fase em que se encontra aquela sociedade humana específica, mas basicamente elas se apresentam de quatro formas, as quais denominamos “rios do abstrato”. São elas, a saber, a arte, a religião, a metafísica e a loucura.

É certo que cada um destes rios tem os outros em alguma medida. Existe loucura em alguma medida na religião, na arte e na metafísica. Existe metafísica em todos os outros três. Assim como existe arte e religião em todos eles. Ou seja, existe um ponto em cada um dos caminhos que o liga aos demais. A denotar que fluem todos eles de uma mesma fonte originária, a qual, por não estar no concreto, só pode ser uma: o abstrato. Porém, da mesma forma que o tempo vem e forma o espaço, que Igreja e mídia vêm para ungir cada uma o seu mundo, aqui também é a loucura que vem e origina arte, religião e metafísica. E se a loucura adquire em nós uma face unicamente patológica é justamente e somente pela incapacidade da razão em compreender aquilo que lhe ultrapassa.

De modo que, apesar das diferenças, os quatro rios do abstrato possuem entre si a semelhança de eclodirem em alguém que procura algo, e nesta procura encontra. Quando encontra, torna-se receptáculo de algo que quer vir para o mundo para fundá-lo. E de fato, se quem o procura se revestir dos atributos necessários, sua produção emerge do abstrato – e nesta emergência ainda é loucura – para tornar-se arte, religião ou metafísica. Neste caso, poderá tornar-se pertinente dentro da cultura, fundando-a, e ao próprio mundo. E depois que o mundo resulta assim solidificado, ele esquece que se originou de algum modo da loucura.

Então, se metafísica, religião, arte e loucura são formas como o abstrato interditado vem e constitui o mundo, vejamos se da consideração de cada um desses rios, em sua totalidade e sob este primado, advém algo que nos possa auxiliar em nosso anseio de a tudo desvendar. De modo que possamos sair da inércia e nos pôr a caminho em direção à sede de toda a realidade, para a qual estamos cegos.

4.1 – A EUROPA JAZ, POSTA NOS COTOVELOS: O CAMINHO DA ARTE
No mundo antigo a arte era basicamente imitação da natureza, confundindo-se o artista com o artesão. Mas na verdade era mágica a possibilidade dessa imitação, da mesma forma que era mágico em nossa infância desenhar um cavalo, ou outra coisa qualquer.

O que fazia aquela imitação ser mágica era o fato de vir “do nada” e tornar-se algo que tocava a todos, numa simulação da própria emergência do mundo. Porém, o mundo antigo ruiu, ou, de outro modo, a civilização ocidental-européia se tornou coletivamente adulta, de modo que a imitação passou a ser “coisa de criança”.

De fato, a Era Moderna trouxe com ela o domínio de uma técnica superior, e a mera reprodução da natureza perdeu grande parte de seu cartaz, como arte. Agora o abstrato deve emergir para o concreto em formas que mantêm escondida a origem, pois o mundo se funda numa razão que avançou e nos tornou mais cegos para a essência de tudo. Então, o artista passou a ser quase um xamã, pois deve deixar que “outro” lhe tome e lhe comande: este outro é o abstrato. De modo que, neste modo de ser da arte moderna, o abstrato, que a tudo comanda, vem e nos manda sinais.

            Consideremos da arte aqui apenas a literatura. Consideremos dela apenas alguns relatos. Vejamos se podemos ver afinal alguns destes sinais que o abstrato nos envia, e para onde ele nos quer conduzir. Fazemos a seguir um breve apanhado de três relatos conhecidos, já com uma interpretação na linha que preconizamos.

O primeiro relato é o do Gênesis. Diz ele que existiam, no jardim da emergência do ser humano, duas árvores proibidas ao homem, a do conhecimento do bem e do mal e a da vida. Javé Deus colocou no caminho da primeira uma interdição. Mas o homem mesmo assim tomou de seu fruto e comeu, conquistando por isso o discernimento do bem e do mal. Então, seus olhos se abriram e ele viu que estava nu. Javé Deus, percebendo que o homem conquistara o discernimento do bem e do mal e agora poderia colher da segunda árvore, e viver eternamente, colocou em sua guarda um querubim, com uma espada chamejante. E o restante da historia é bem conhecido.

Pois bem, o relato se refere a algo real, mas a interpretação que normalmente fazemos, de uma desobediência aos ditames de “Deus”, deve ser vista como uma forma imatura de interpretação. Como a criança que põe a mão no fogo e se queima, e se sente culpada por não ter seguido o conselho dos adultos. Mas estava em seu destino colocar a mão no fogo, para descobrir na prática o limite da realidade, que já fora indicado pelo conselho dos adultos. E o conselho dos adultos, por seu turno, foi dado induzido pela própria natureza, para sinalizar o limite, mas todo o adulto sabe e mesmo deseja que a criança o rompa, para poder descobrir ela mesma o limite, e desta forma se tornar adulta.

Uma interpretação adulta nos mostraria, então, que a emergência da razão nos tirou algo, algo do qual necessitamos para colher da segunda árvore. Mas um dia fatalmente teremos de voltar para aquele jardim, para colher de seu fruto. Possivelmente, antes de voltarmos para lá, teremos de perceber que o presente estado de cegueira, que nos acometeu quando conquistamos o discernimento do bem e do mal, tem também ele um sentido.

O segundo relato é o do enigma de Zaratustra, do livro Assim Falou Zaratustra de Nietzsche (Da visão do enigma). Tal passagem nos mostra a figura de um pastor com uma serpente presa na garganta. Aconselhado por Zaratustra, o pastor morde a serpente e a cospe fora, tornando-se neste ato um “iluminado que ri”. Um riso que impressiona Zaratustra, por tornar a velha existência sem sentido.  Terá o ser humano de se livrar da serpente, ou do fruto que ela trouxe, que ficou preso em sua garganta, vencendo a razão e indo para um estado em que se tornará um iluminado que ri. Ou seja, iluminado pelo esclarecimento da verdadeira realidade, ele ri por descobrir a ilusão fetichista em que esteve preso por tanto tempo: todo o tempo em que foi “homo rationalis”.

O terceiro relato é o do poema Mensagem, de Fernando Pessoa. Ele se refere efetivamente a uma mensagem do abstrato que nos diz, entre outras coisas, que ainda “falta cumprir-se Portugal”. Nesta perspectiva, o descobrimento da América foi apenas um necessário ensaio que fez a Europa, uma simulação do verdadeiro descobrimento que ainda falta fazer, o descobrimento do “encoberto”, ou seja, do abstrato. E de como tal descobrimento tem relação com a cultura portuguesa, que é uma cultura que nasce no fim da Europa, e um de seus sentidos justamente é o de ultrapassar este fim, conduzindo o ser orgânico que é a Europa para um outro momento.

Por fim, o quarto relato é o poema Fausto, de Goethe. Fundado em histórias que emergiram de forma espontânea em meio ao povo, no final da Idade Média e início da Era Moderna, numa de suas versões o poema nos fala de Fausto, um homem instruído que, na meia idade, sente sua vida vazia. Procurando novos desafios ele acaba por efetivar um pacto com Mefisto, popularmente identificado com o diabo, indo contra a própria natureza para poder conhecer todas as suas possibilidades. Revestido dos poderes mágicos de Mefisto, Fausto torna-se empreendedor e acaba por possuir um verdadeiro império. Mas ao final, quando tudo lhe pertence, Fausto se torna cego.

Também o Ocidente resultou cego após dominar o mundo. Por isso, tornou-se completamente intolerante em relação ao diferente de si mesmo, o qual quer fazer à sua imagem e semelhança. Mas o outro é parte de si mesmo, e se a cortarmos fora resultaremos imensamente diminuídos. E apesar de entendermos isso, conseguimos cada vez menos transformar esta compreensão numa vida aberta e acolhedora. Aqui também, é possível que tenhamos de sair a tatear, para redescobrir o mundo longe do “ponto de vista” redutor que o julgamento da razão nos permite.  Para isso, teremos de sair da simples reflexão e implementar uma nova “compreensão” das coisas, que não seja meramente especulativa, mas que ao mesmo tempo não se restrinja a ser um agir ainda preso no paradigma de bem e mal.

4.2 – AS ESTÁTUAS DE DÉDALO – O CAMINHO DA METAFÍSICA
            Já nos referimos linhas atrás ao caminho da metafísica, quando mencionamos que a opção de Sócrates pelo ser tornou-se um rio, que vindo nos criou. Vasculhemos agora brevemente sua nascente.

No diálogo Mênon, de Platão, Sócrates nos fala das estátuas de Dédalo. Segundo o que parece, era do conhecimento de todos, naqueles dias, que existiam dois tipos daquelas estátuas. No primeiro, as estátuas eram feitas como os pés unidos, por isso não podiam andar. No segundo, no entanto, eram feitas com os pés desligados, e então podiam se locomover e sair pelo mundo. Sócrates usa o exemplo para dizer que as estátuas imóveis têm mais valor, pois podem se tornar propriedade de alguém, enquanto as segundas não, pois poderiam fugir a qualquer momento. Usa o exemplo para demonstrar como o conhecimento sistemático vale mais que o eventual, dentro de uma linha que veio a ser adotada e gerou, em última instância, o conhecimento científico e a própria forma como encaramos o mundo.

Porém, tal passagem deixa ver algo que nos escapa, numa consideração apressada. Pois, parece evidente que os gregos, incluindo o próprio Sócrates, acreditavam que estátuas podiam andar. Nos dias de hoje poderíamos considerar tal crença um disparate, mas se tomarmos o caminho da metafísica em sua totalidade, e deixarmos de lado nossas idéias fixas a respeito do mundo, é possível que possamos conceber que tal crença não pode ser descartada, de todo.

Já no final da filosofia grega Aristóteles classificou os pré-socráticos de balbuciantes e afastou toda a possibilidade daquilo que ultrapassa a razão, numa “filosofia da totalidade do real”. Ou seja, toda a realidade estaria ao alcance da razão, e o que com ela não se conforma seria mera ilusão, fruto de um conhecimento incipiente da realidade. Porém, com a derrocada da Escolástica a razão mostrou sua limitação, de modo que os modernos tiverem que voltar a uma duplicidade do real. No final Kant separou uma parte da realidade, agora inacessível para a razão especulativa, a qual denominou “em si”.

Depois de Kant toda a filosofia em certo sentido reporta-se a este limite da razão posto por Kant. Contrariamente à maioria, que se rebela contra o limite e tenta achar um caminho para rompê-lo, Schopenhauer o aceita denominando o em si de “vontade”, uma força que a tudo arrasta e da qual somos prisioneiros.

Voltemos a Kant. No início da “Critica da Razão Pura” ele aventa a possibilidade da metafísica como ciência, querendo inquirir ele se é possível para a metafísica se constituir como um conhecimento certo e planamente aceito por todos, como o é a matemática ou a física, por exemplo. Algum tempo depois de Kant, contudo, a metafísica caiu no descrédito, reputada por alguns como um especular sem sentido e apartado de uma necessária práxis.

Porém, o que é metafísica? Numa definição resumida ela é uma espécie de “outra física”, uma física que se reportaria à essência da realidade, que subjaz a tudo. Então, se existe o abstrato, e ele está encoberto, é ele o território da metafísica e é nele que reside a essência, que não vemos. Ademais, se o ser humano é como tudo o mais, também nós temos uma parte encoberta, que é nossa essência e, quem sabe, a mesma essência de toda a realidade. E quando nós tratamos do ser humano como possuindo algo mais que matéria, estamos sendo metafísicos, e se fazemos isso na forma de uma ciência, estamos fazendo metafísica como ciência.

Justamente, foi isso que Freud fez quando formulou a teoria psicanalítica. Ele preconizou, como faz na verdade a psicologia desde seu nascimento, que o ser humano possui um “dentro”, que é sua “alma” (donde o termo “psico”). Ora, onde está este dentro? Não está no terreno da física? Então está no da metafísica. E a partir deste modelo metafísico Freud agiu como cientista e formulou uma hipótese para explicar o que via concretamente em sua atividade terapêutica. Preconizou a existência de um inconsciente, que nada mais é que uma redução da vontade de Schopenhauer, que por seu turno é o em si, que é ele mesmo o não-ser, interditado desde os gregos. Assim isolado numa nova e mais profunda interdição pelos modernos, ele explodiu em diversos rios que geraram filosofia, arte, religião e loucura, ou todas elas misturadas, num movimento que criou os fundamentos do que chamamos “mundo moderno”.

No que tange a psicanálise, Freud percebeu que o inconsciente se mostrava nos sonhos e atos falhos. E adiante percebeu também que ele era uma força fora do controle do próprio ser humano, como um mar em que navega a pequena embarcação que chamamos ego, sempre à beira de um trágico naufrágio.

No entanto, recentemente alguma formulação no campo dos sonhos constatou que, se eles são manifestações do inconsciente, e de sua análise no estado desperto podemos elucidar aspectos obscuros de nossa psique, também podemos agir no próprio sonho, se pudermos acordar dentro deles, agindo neste caso de forma direta no próprio inconsciente. De modo que o “sonhar” pode se abrir como um território de penetração no próprio abstrato.

Ademais, a filosofia depois de Kant deixou ver que o mundo pode não ser como supomos. Filosofias como a de Husserl, de Heidegger e de Quine nos permitem aventar a hipótese de que nosso mundo, que pensamos ser o único real, seja mera construção cultural, com estreita ligação com a língua que falamos, de tal sorte que as palavras passam a adquirir um aspecto mágico. Ao menos em tese, elas nos prendem a determinada construção de mundo, mas outras nos poderiam carregar para fora dele.  E a própria ciência que se fez no século XX demonstrou que as coisas são vazias e inescrutáveis, igualando-as ao próprio ser humano, com um interior oculto. Então, quando fazemos ciência fazemos necessariamente metafísica, pois existe uma parte das coisas que está encoberta, e nosso modelo delas não a contempla.

O que permite supor que, se pudermos penetrar no ”dentro” das coisas, é possível que possamos efetivamente movê-las. Pois se podemos acessar o dentro de nós mesmos com nosso sonhar, ou com nossas palavras, é possível e bem provável que possamos entrar na parte oculta das coisas para movê-las, como parece acontecer de forma espontânea em casos descritos pela observação da dita “parapsicologia”. Ou, de outra sorte, como pareciam acreditar os gregos. Isso pode parecer absurdo, mas só o é à luz da simples racionalidade. Porém, teremos de vencê-la e retornar aquele estado mágico se quisermos colher da segunda árvore, e viver eternamente. E queremos isso mais do que qualquer coisa, tanto que se desconhece a existência de coletivos humanos em que não haja algum tipo de religião, a qual, de uma forma ou de outra, preconiza a continuação da vida. Falemos então deste caminho.

4.3 – A SEMENTE DE MOSTARDA: O CAMINHO DA RELIGIÃO
Quem foram Jesus e Maomé? Presumivelmente, foram homens. E a se crer em seu testemunho, eles receberam mensagens de algum tipo, na forma de visões e palavras. Se vivessem nos dias atuais, e tivessem visões, e ouvissem vozes, é possível que fossem declarados esquizofrênicos. Mas no tempo em que viveram era outra a forma de encarar a religião e a loucura, de sorte que se tornaram os fundadores das duas correntes religiosas mais influentes da modernidade.

Façamos a hipótese fundamental de que os dois tenham de fato recebido algum tipo de orientação sobrenatural. Em primeiro lugar, eles só as receberam por que foram em busca delas. Em segundo lugar, nós só ouvimos falar deles por que aquilo que eles pretensamente ouviram, como uma semente, caiu em solo propício e se tornou fundante da religião e do mundo como hoje o concebemos.

Se estamos falando da maneira que o abstrato vem e nos manda sinais, presumimos que os sinais que vieram através de Jesus e Maomé fazem parte de um plano evolutivo para o mundo, estipulado em outra esfera.  E se, como vimos, no movimento evolutivo é preciso que aconteça um necessário ensaio, Jesus e Maomé, mesmo sem saber, talvez tenham induzido a humanidade a este necessário e fundamental “ensaio do futuro”. Presumivelmente, eles induziram a humanidade a buscar um mundo que não existe, mas que um dia existirá, de algum modo.

Mas não apenas isso. Era necessário que a forma antiga de viver, com divindades em meio às coisas, fosse ultrapassado, para que a razão andasse mais. Por isso as vozes que Jesus ouvia, e se identificavam como “o pai”, ao final lhe orientaram a fundar uma religião universal que simulasse uma possibilidade nova, e que afirmasse a existência de outro mundo, para que este fosse território unicamente daquilo que a razão descortina. Mas aquilo que ele ouviu estava inserido em sua busca e não teria se tornado fundamental se a realidade mesma não necessitasse daquilo. Pois em outro ponto, a racionalidade grega avançara e deixara um espaço a ser ocupado, permitindo um novo modo de constituir o mundo.  Diga-se de passagem, algum tempo antes de Jesus, no nascimento do caminho especulativo, entre os gregos, Sócrates também ouvira as vozes de seu daimon, que lhe orientaram no desenvolvimento da dialética.

Numa análise superficial, Jesus se prende unicamente ao antigo judaísmo, mas na verdade ele veio trazer para o concreto uma possibilidade preconizada também nos ritos dionisíacos de morte e ressurreição, e representa a esperança humana, e talvez de toda a natureza, de viver eternamente. Por isso mesmo ele veio a ser chamado Jesus Cristo, que significa Joshua (seu nome de batismo) o Christo, uma palavra grega que significa “o ungido”. Neste sentido, ele foi preparado pelos ritos dionisíacos, que fizeram aqui o papel de sua simulação, e é ele mesmo simulação de uma possibilidade de vida eterna para todos. Ao mesmo tempo, a adoção do nome grego demonstra que o papel que ele veio a ocupar ultrapassa a própria origem cultural do homem que Jesus foi, como costuma acontecer.

Maomé também foi orientado a fundar uma religião. Presumivelmente, também como Jesus, foi em busca de algo, premido pela necessidade de seu tempo e lugar, e encontrou. Como ocorre com a mostarda, a pequena semente caiu na terra fértil que a aguardava, e o islamismo se tornou uma pujante religião, a qual trouxe o mundo árabe para a modernidade, e pressionou o Ocidente por séculos. Justamente, um dos sentidos do Islã foi ser este “calor” que chocou o ovo que foi a Europa medieval, fazendo nascer o ser que depois voou para ocidente, carregando no peito um mundo em conflito. Mas também, a consolidação do mundo árabe como cultura autônoma permitiu que a sabedoria antiga fosse preservada, assim como seu ímpeto fundamentalista. E quando a Europa viu nascer o seu filho mais ousado, que a carregaria para outro mundo, na pequena e pobre manjedoura houve de novo a presença daqueles magos do oriente. Numa reedição de história já contada, novamente eles vieram de longe, pois viram uma luz. E um dos resultados desta vinda, que não seria possível se não existisse o Islã, foi o surgimento do espanhol, para o qual tudo está envolto em incenso e mirra.

4.4 – O INUSITADO BATE À PORTA: O CAMINHO DA LOUCURA
            A loucura não é propriamente um caminho, mas antes é a forma como o abstrato advém para o concreto formando arte, religião e metafísica. Por ser a antítese da ordem, a loucura não cria nada no mundo que seja autenticamente seu, mas ela é o fundamento de toda a criação e de toda a emergência do mundo, pois tudo advém do abstrato. Nessa emergência o que vem ainda é abstrato, logo, ultrapassa a compreensão da razão, que se funda unicamente no ser. Justamente por isso, a emergência de todo o concreto nós identificamos como loucura. E por ser a forma como tudo emerge, uma consideração mais consistente dela está no caminho a ser trilhado pelo ser humano.

A percepção que tem o ser humano imerso na loucura é real, mas desafia o mundo, por isso ele é banido. E por isso também, aquele que consegue a evita, de modo a ser considerado “normal”. Ou então ele a controla e a insere no modo de seu tempo, tornando-se artista, filósofo ou fundador de uma religião. Mas existe uma possibilidade teórica em que a loucura se assuma como loucura simplesmente, mas mantendo o controle. Esta possibilidade, que denominamos “loucura controlada”, já foi preconizada por alguns, e se constitui num desafio ao mundo constituído, numa espécie de mentira ou simulação consciente, a qual nos abriria as portas para o abstrato. Uma simulação deste tipo foi efetivada por Carlos Castaneda, que inventou uma mentira na qual carregou milhares de pessoas pelo mundo, na forma de uma legião de aficionados leitores, entre os anos 60 e 80 do século passado. No entanto, apesar do embuste, se quisermos poderemos ver a extrema pertinência daquilo que aflorou através dessa mentira.

Pois quando ele inventou Don Juan Matus, um xamã índio muito velho e muito sábio, ele desencadeou em seus leitores e em si mesmo um processo, que fez com que sua invenção adquirisse vida própria, em alguma medida. O velho xamã e seus companheiros tomaram vida em seus livros e nos trouxeram coisas de extrema pertinência, que nos permite conceber a América como a outra parte da Europa: enquanto uma trilhou o caminho do ser, a outra trilhou o do não-ser. De modo que quando aquelas naus de seres em conflito vieram em direção ao ocidente a procura de si mesmas, elas estavam na verdade buscando de algum modo o paraíso perdido, e de algum modo elas o encontraram.  Mas como estavam cegas para o não-ser, o que viram foi sua imagem refletida.  Destruíram o que viram, mas o não-ser da América continua vivo, em alguma instância alhures. E foi este não-ser que Castaneda e seus leitores conectaram com sua brincadeira. E justamente, é este território que ainda falta descobrir, num novo descobrimento, do qual o primeiro foi mera simulação.

Estabelecendo uma comparação entre a história da Europa ocidental e os relatos da obra de Castaneda, podemos perceber um paralelismo impressionante entre ambos, que nos permitem vislumbrar um sentido absolutamente novo para toda a história do ocidente, bem como antever em alguma medida os desdobramentos futuros.

Se é correta a nossa hipótese, por que conseguiu Castaneda, com sua mentira, acessar este conteúdo residente no abstrato? Ora, é justamente por que, para acessar o abstrato a partir do concreto, temos de simular.  Por isso, a realidade deve sempre ser antecipada como simulação. E por isso também, quando mentimos, mesmo inocentemente, nós estamos agindo como espécies de xamãs: estamos invocando um outro mundo, diverso do atual. E dependendo de uma série de fatores, nossa mentira pode se tornar real. Se ela se torna apenas para nós, nos tornamos loucos; mas se for para um grupo, ela pode vir a mudar o mundo.

Ademais, são simulações deste mesmo tipo que faz o artista, quando busca a inspiração que lhe permite fazer a obra de arte. Ou o místico, quando tenta contatar uma outra esfera. Ou mesmo o filósofo e o homem de ciência, quando procuram aventar uma hipótese. Então, Castaneda poderia muito bem ter nos dito que fazia literatura, ou religião, ou filosofia. Mas ele preferiu, quiçá aconselhado por seu próprio invento, a fazer arte ao modo das crianças, como uma “molecagem”. Mostrou-nos, se queremos ver, que desta “molecagem” emergiu uma profundidade insuspeita, que poderá emergir novamente, quando a loucura puder ser aceita também como uma possibilidade de acessar uma outra esfera. Castaneda e os que o acompanhavam viveram uma vida onde a fantasia se misturou com a realidade. Ele mesmo se dizia um feiticeiro, praticante de loucura controlada, a qual identificou como a "práxis da fenomenologia”. Pensemos sobre isso.

Do ponto de vista do mundo descrito pela razão, a loucura é aquele inusitado que nós obstaculizamos para nos pormos a caminho em direção ao futuro. E como disse Nietzsche, que acabou perdendo o juízo, o inusitado bate a porta. E neste momento mesmo ele está a bater, e continuará a fazê-lo, até que estejamos prontas para abri-la. E estaremos prontos quando pudermos viver a loucura de forma controlada, e coletivamente, de modo a neutralizar seu efeito patológico. Será então o momento de sair do aposento que chamamos ser humano, nos pondo a caminho em direção a uma terra ainda ignorada em sua totalidade, mas há muito já intuída e desejada.

Fonte:
CONSCIÊNCIA .ORG
http://www.consciencia.org/quem-tem-ouvidos#4.nas-pegadas-do-nao-ser
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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