Heterodoxa Mutação
Se o estado de mutação deflagra a não-correspondência entre categorias de pensamento vigentes e o estado atual das coisas, se propõe visitas a casos de pensamento heterodoxo, na intenção de testá-los como pensamento constituído sobre a mutação. Na construção de uma Nova Psicanálise, que se pretende para além de Freud e Lacan, é postulada a teoria d’Os Cinco Impérios, que na versão de MDMagno engloba A Mãe, O Pai, O Filho, O Espírito e Amém, que é o haver desejo do que não há. Vai-se discutir também a idéia contemporânea de um lançar-se além do par Deus/homem que não se regula mais pela elevação ao infinito (como nos séculos 17 e 18), nem à finitude (como no 19), mas que instaura um “finito ilimitado”, que é o próprio princípio que funda a existência da linguagem verbal.20/08/2009 - Teatro Maison de France, Rio de Janeiro
Palestrante: José Miguel Wisnik, professor de Literatura da Universidade de São Paulo
Se o estado de mutação deflagra a não-correspondência escancarada entre categorias de pensamento vigentes e o estado atual de coisas, proponho uma visita a casos de pensamento heterodoxo, na intenção de testá-los como pensamento constituído sobre a mutação – heterodoxos na própria medida em que o princípio de mutação lhes é inerente. [Pudores bem pensantes serão abandonados ao longo da empreitada, sem prejuízo, espera-se, do exercício do pensamento crítico, que também estará passando por sua prova.]
1. Na construção de uma Nova Psicanálise, que se pretende um terceiro passo além de Freud e Lacan, MDMagno postula a teoria d’Os Cinco Impérios [o tema do Quinto Império, tomado aqui como mote, está em Fernando Pessoa, remete ao profetismo de Antonio Vieira, ao sebastianismo português e remonta ao sonho bíblico de Nabucodonosor]. Na versão de MDMagno, Os Cinco Impérios são A Mãe, O Pai, O Filho, O Espírito e Amém.
1 Tento uma paráfrase livre e super-sintética. O vínculo com a mãe/mater/matéria [A Mãe], que se inscreve no corpo, que se guarda nos animismos, no seu lastro tectônico e esfingético, e numa herança primária de fundo, é recoberto pela invenção do monoteísmo judaico [O Pai], que projeta para o céu, ao custo da lapidação das mulheres, um Deus masculino sob o qual o reconhecimento do vínculo primário com a mãe só se faz pela intervenção simbólica do Pai. Num terceiro passo, esse vínculo secundário ganha autonomia em relação ao primário na figura do Filho criado ex-nihilo, sem vinculação com descendências carnais, primárias, fazendo do filho direto do Pai, sem cópula com a Mãe, um correspondente da especificidade puramente simbólica do humano [O Filho].
É no passo seguinte que se coloca a vicissitude da mutação contemporânea: o processo da modernidade pressiona por uma passagem inédita do secundário ao originário [O Espirito], em que o humano tem que se haver com a loucura fundamental da espécie e com o originário puro que pivoteia entre haver/não-haver (haver desejo de nãohaver, que não há) [Amém]. Em outros termos, trata-se do desafio a uma humanidade não apoiada sobre a trindade familiar Mãe, Pai e Filho, mas numa arreligião do originário puro (o Haver com’Um e sua fractalidade).2 Nada garante a consumação dessa passagem, que, no entanto, está em curso em toda a sua tragicidade, tracionada pelos fundamentalismos religiosos, dissipada pela banalização midiático-mercadológica, elevada ao limite do psicologicamente insuportável etc.
2. Luiz Sérgio Coelho de Sampaio postula um esquema simples nos seus elementos constitutivos e complexo nos desdobramentos, no qual Sérgio Paulo Rouanet identificou “um substrato lógico, uma construção antropológica e uma filosofia da história”.
3 As culturas não operam sem lógicas subjacentes, que basicamente são duas – a da identidade [I] e a da diferença [D] – das quais derivam a lógica dialética [I/D] e a lógica clássica ou da dupla diferença [D/D]. No paradigma religioso, a lógica do monoteísmo é a da identidade [I], a do politeísmo da diferença [D], a do cristianismo é a da dialética e das vicissitudes do sujeito dividido [I/D], e a da ciência moderna é a lógica relacional, diacrítica, do terceiro excluído [D/D] (a dimensão religiosa está ausente desta, com a omissão do traço identitário e a potencialização diferencial da diferença).
Em termos filosóficos, se o cogito e a lógica fenomenológica partem de I, o significante, o inconsciente, o lapso remetem a D, a dialética a I/D, e a redução tecnológica de todos os processos à sua digitalização e redução à distinção mínima 0/1 é obra de D/D. (I e D/D, associadas, são as lógicas dominantes do mundo da empresa e da tecnociência, instrumentalizando o desejo D a seu favor; D e I/D são lógicas dominadas, nesse contexto). É tentador relacionar as lógicas de Sampaio com os Impérios de MDMagno.
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