domingo, 24 de outubro de 2010

HETERODOXAS MUTAÇÕES - José Miguel Wisnik

Heterodoxa Mutação

Se o estado de mutação deflagra a não-correspondência entre categorias de pensamento vigentes e o estado atual das coisas, se propõe visitas a casos de pensamento heterodoxo, na intenção de testá-los como pensamento constituído sobre a mutação. Na construção de uma Nova Psicanálise, que se pretende para além de Freud e Lacan, é postulada a teoria d’Os Cinco Impérios, que na versão de MDMagno engloba A Mãe, O Pai, O Filho, O Espírito e Amém, que é o haver desejo do que não há. Vai-se discutir também a idéia contemporânea de um lançar-se além do par Deus/homem que não se regula mais pela elevação ao infinito (como nos séculos 17 e 18), nem à finitude (como no 19), mas que instaura um “finito ilimitado”, que é o próprio princípio que funda a existência da linguagem verbal.

20/08/2009 -  Teatro Maison de France, Rio de Janeiro
Palestrante: José Miguel Wisnik, professor de Literatura da Universidade de São Paulo
Se o estado de mutação deflagra a não-correspondência escancarada entre categorias de pensamento vigentes e o estado atual de coisas, proponho uma visita a casos de pensamento heterodoxo, na intenção de testá-los como pensamento constituído sobre a mutação – heterodoxos na própria medida em que o princípio de mutação lhes é inerente. [Pudores bem pensantes serão abandonados ao longo da empreitada, sem prejuízo, espera-se, do exercício do pensamento crítico, que também estará passando por sua prova.]

1. Na construção de uma Nova Psicanálise, que se pretende um terceiro passo além de Freud e Lacan, MDMagno postula a teoria d’Os Cinco Impérios [o tema do Quinto Império, tomado aqui como mote, está em Fernando Pessoa, remete ao profetismo de Antonio Vieira, ao sebastianismo português e remonta ao sonho bíblico de Nabucodonosor]. Na versão de MDMagno, Os Cinco Impérios são A Mãe, O Pai, O Filho, O Espírito e Amém.

1 Tento uma paráfrase livre e super-sintética. O vínculo com a mãe/mater/matéria [A Mãe], que se inscreve no corpo, que se guarda nos animismos, no seu lastro tectônico e esfingético, e numa herança primária de fundo, é recoberto pela invenção do monoteísmo judaico [O Pai], que projeta para o céu, ao custo da lapidação das mulheres, um Deus masculino sob o qual o reconhecimento do vínculo primário com a mãe só se faz pela intervenção simbólica do Pai. Num terceiro passo, esse vínculo secundário ganha autonomia em relação ao primário na figura do Filho criado ex-nihilo, sem vinculação com descendências carnais, primárias, fazendo do filho direto do Pai, sem cópula com a Mãe, um correspondente da especificidade puramente simbólica do humano [O Filho].

É no passo seguinte que se coloca a vicissitude da mutação contemporânea: o processo da modernidade pressiona por uma passagem inédita do secundário ao originário [O Espirito], em que o humano tem que se haver com a loucura fundamental da espécie e com o originário puro que pivoteia entre haver/não-haver (haver desejo de nãohaver, que não há) [Amém]. Em outros termos, trata-se do desafio a uma humanidade não apoiada sobre a trindade familiar Mãe, Pai e Filho, mas numa arreligião do originário puro (o Haver com’Um e sua fractalidade).2 Nada garante a consumação dessa passagem, que, no entanto, está em curso em toda a sua tragicidade, tracionada pelos fundamentalismos religiosos, dissipada pela banalização midiático-mercadológica, elevada ao limite do psicologicamente insuportável etc.

2. Luiz Sérgio Coelho de Sampaio postula um esquema simples nos seus elementos constitutivos e complexo nos desdobramentos, no qual Sérgio Paulo Rouanet identificou “um substrato lógico, uma construção antropológica e uma filosofia da história”.

3 As culturas não operam sem lógicas subjacentes, que basicamente são duas – a da identidade [I] e a da diferença [D] – das quais derivam a lógica dialética [I/D] e a lógica clássica ou da dupla diferença [D/D]. No paradigma religioso, a lógica do monoteísmo é a da identidade [I], a do politeísmo da diferença [D], a do cristianismo é a da dialética e das vicissitudes do sujeito dividido [I/D], e a da ciência moderna é a lógica relacional, diacrítica, do terceiro excluído [D/D] (a dimensão religiosa está ausente desta, com a omissão do traço identitário e a potencialização diferencial da diferença).

Em termos filosóficos, se o cogito e a lógica fenomenológica partem de I, o significante, o inconsciente, o lapso remetem a D, a dialética a I/D, e a redução tecnológica de todos os processos à sua digitalização e redução à distinção mínima 0/1 é obra de D/D. (I e D/D, associadas, são as lógicas dominantes do mundo da empresa e da tecnociência, instrumentalizando o desejo D a seu favor; D e I/D são lógicas dominadas, nesse contexto). É tentador relacionar as lógicas de Sampaio com os Impérios de MDMagno.
(

                                                                                                                                                        )
Nesse caso, o Primeiro Império [A Mãe] é o da Diferença perante o Segundo [O Pai], que é o da Identidade, o Terceiro [O Filho] o da a dialética, sendo o quarto novamente o problema. Por um lado, ele é a realização da lógica clássica nas suas conseqüências de domínio tecnocientífico de todas as esferas [D/D], esvaziando as lógicas identitárias (esvaziamento frente aos quais os fundamentalismos são uma reação e uma revanche). Por outro, ele suscita a passagem a uma lógica “quinquitária”, mutante, que subsumiria todas as outras, e que, como a própria capacidade de linguagem, definidora do humano, é ao mesmo tempo identidade e diferença, dialética e dupla diferença [I/D/D].

3. Em texto recente sobre a propriedade intelectual, mas que acaba incidindo diretamente sobre a questão da mutação, Laymert Garcia dos Santos (comentando Deleuze/Foucault)4 observa o horizonte contemporâneo de um lançar-se além do par Deus/homem que não se regula mais pela elevação ao infinito (como nos séculos 17 e 18), nem à finitude (como no 19), mas que instaura um “finito ilimitado – se assim denominarmos toda situação de força na qual um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações”. É estimulante pensar, no entanto, que esse “finito ilimitado” é o próprio princípio que funda a existência da linguagem verbal (combinação ilimitada de um número restrito de unidades distintivas), que a invenção da escrita alfabética é a decodificação do DNA dessa linguagem, e que as técnicas de reprodução, culminando na digitalização, são uma potencialização extrema desse mesmo princípio.

Que se descubra o código genético como regido ainda pelo princípio do “finito ilimitado” (quatro elementos químicos regendo toda a cadeia do código), o mesmo princípio que rege a linguagem e as máquinas digitais, nos coloca no cerne da questão da mutação, em que biologia, trabalho e linguagem participam do mesmo processo em que a sua curvatura avança em direção ao originário. Dominar esse dominó indominável passa a ser uma disputa feroz do imaginário (a suposta obtenção da chavemestra do segredo humano) inseparável do poder real que ele representa como domínio de todas as esferas pelo capital. A questão se coloca, pois, entre a afirmação de uma lógica tecnocientífica generalizada e acoplada aos interesses de megaempresas [I + D/D], que impede a realização das potencialidades que ela mesma desencadeia, e o salto para uma lógica integradora mais complexa [I/D/D], que inclui as demais e as transforma – exposta, no entanto, nas contingências históricas, à mesma fragilidade com que se montam os estágios mais altos de um castelo de cartas.



JOSÉ MIGUEL WISNIK
1:37:45 - 3 anos atrás
Ciclo de conferências: "Mutações: novas configurações do mundo" José Miguel Wisnik Heterodoxas Mutações Rio de Janeiro, 20 de agosto de 2007

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