JOSÉ GUILHERME DANTAS LUCARINY
CAPÍTULO 1
– A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA
Doença mental e personalidade
Vê-se que, já desde o início de sua pesquisa, Foucault se interessa em perceber as práticas da psiquiatria, do internamento e da medicina, questionando seus jogos de linguagem, incitando-nos a entrar nos seus domínios específicos para compreender as suas condições de existência.
Assim é que em Maladie mentale et personalité (1954), trabalho anterior à História da Loucura, Foucault observa que a percepção teórica da doença mental na psicologia tinha se baseado em dois paradigmas que derivavam da patologia orgânica: 1) que a doença mental era retratada como uma entidade específica mapeada através de seus sintomas mas essencialmente independentes deles; 2) que a doença mental era tratada como uma desordem interna que se aloja na personalidade integrada do paciente. Foucault rejeita essa “metapsicologia” por entendê-la um “mero artifício de linguagem” uma vez que injustificadamente assume que os esquemas da abstração, os critérios de normalidade e as definições do paciente individual podem ser transpostos da patologia orgânica para a patologia psicológica. No lugar disso, sugere que a especificidade da doença mental deve ser retratada na sua dimensão psicológica e, portanto, como um fato da civilização (grifo nosso).
Foucault questiona as psicologias que retratam a doença mental em termos de uma “evolução psicológica”, onde a doença funciona segundo uma “arqueologia espontânea” da libido, segundo uma regressão a formas mais anteriores de comportamento que são alcançadas através da supressão de padrões de comportamento adquiridos ao longo da vida. Outras retratam a doença em termos de uma “história psicológica” do indivíduo, um recurso estratégico do comportamento que foi eficaz em algum ponto do passado que age como uma defesa contra alguma ameaça presente. Foucault observa que a análise fenomenológica é capaz de caracterizar a doença mental de forma mais prática que uma relação particular entre a consciência doente e a consciência da doença, e entre a consciência doente e o mundo patológico no qual ela se vê.
Conclui, assim, que uma vez que essa relação baseia-se numa relação mais geral entre o mundo patológico e o mundo “normal” que ela opõe, a análise psicológica precisa estudar o domínio específico e concreto no qual a doença mental aparece, se se trata de entender as condições de sua existência.
Foucault sugere perspectivas segundo as quais tal estudo poderia ser conduzido e conclui com uma discussão da teoria psicológica desenvolvida na Rússia. Posteriormente, sob o novo título de Maladie mentale et psicologie (Doença mental e psicologia, 1962), Foucault desenvolve a parte 2 argumentando que as condições concretas nas quais o homem aparece na sociedade mudaram enormemente desde a Idade Média. No Renascimento, os loucos podiam circular livremente na sociedade e a loucura era vista como parte da vida de cada dia. Depois dos meados do século XVII, os loucos são excluídos da sociedade junto com todo e qualquer tipo social considerado não economicamente útil. Quando o confinamento se torna, ou se revela, politicamente impopular no final do século XVIII, a loucura torna-se novamente visível mas agora rapidamente suprimida por meio de um confinamento médico. A título de tratamento médico os pacientes eram submetidos a um “moralizante sadismo” dirigido para a alma humana e projetado de tal forma a enquadrar a loucura num conjunto de restrições morais baseadas nos dispositivos da exclusão e da punição. Assim, Foucault conclui que toda a estrutura epistemológica da psicologia moderna está enraizada nessa decepcionante atitude em relação à loucura, e que, como todas as formas de conhecimento, também a psicologia é baseada numa forma essencial de crueldade (grifo nosso).
A história da loucura
Folie et déraison: histoire de la folie à l’âge classique (Loucura e desrazão: história da loucura na era clássica) é trabalho do final dos anos 50, tendo-se constituído na tese de doutorado com a qual Foucault alcançará o nível de professor universitário. No seu prefácio Foucault dizia que estava interessado em “confrontar as dialéticas da história às estruturas imóveis do trágico”, e que assim o fazia “sob o sol da grande pesquisa nietzschiana”.
Tratava-se, conforme escreveu, de perceber uma rejeição que o homem ocidental moderno deixa transparecer, rejeição essa a partir da qual denuncia uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na história: a rejeição da loucura. Foucault observa que a relação entre razão e loucura constitui para a cultura ocidental uma das dimensões de sua originalidade: uma cultura de homens de razão soberana que não hesitam em tachar de doentes seus vizinhos; uma cultura que se comunica e se reconhece através da linguagem impiedosa da não-loucura. Foucault empenha-se, em seu trabalho, em encontrar o momento desta conjuração, tendo em conta que ela não foi definitivamente estabelecida no reino da verdade. Buscar encontrar, na história, o ponto de partida da loucura, onde ela é experiência indiferenciada, experiência ainda não compartilhada pelo próprio espírito do compartilhamento, vale dizer, da razão. Descrever, a partir da origem, este outro caminho que faz com que Razão e Loucura sejam como negação uma da outra.
Fazer uma história dos limites, dos gestos obscuros necessariamente esquecidos uma vez completados, pelos quais uma cultura rejeita tudo o que para ela é o Exterior. E, interrogar uma cultura sobre as experiências-limite é questioná-la até os confins da história. E Foucault ensina: no centro dessas experiências-limites do mundo ocidental explode o trágico.
Foucault reporta-se a Nietzsche para observar que este havia mostrado que o caráter trágico da história não é outra coisa que a rejeição, o esquecimento e a reincidência da tragédia. Para Nietzsche, a história do Ocidente é a história da repressão do trágico, e é isso que Foucault quer esmiuçar em A História da Loucura. E quer mais: assim como Nietzsche, quer criticar a razão, desmascarando-a como um processo orientado de crescente subordinação daquilo que ela julga não ser: a loucura. Mas quer também, a exemplo da oposição nietzschiana entre pensamento trágico e pensamento racional, mostrar que a loucura triunfa sobre o mundo que acredita avaliá-la e justificá-la através da psicologia, pois este jamais deterá a verdade da loucura; ao contrário, para Focault, é a loucura que detém a verdade da psicologia.
“A loucura é ruptura absoluta da obra; ela constitui o momento de uma abolição, que fundamenta no tempo a verdade da obra; ela esboça a margem exterior desta, a linha de desabamento, o perfil contra o vazio”, escrevia Foucault ao final do livro. E complementa, referindo-se a Nietzsche: “a loucura de Nietzsche, isto é, o desmoronamento de seu pensamento, é aquilo através do qual seu pensamento se abre sobre o mundo moderno (…) mas isso significa que, através da loucura, uma obra que parece absorver-se no mundo, que parece revelar aí seu não-senso e aí transfigurar-se nos traços apenas do patológico, no fundo engaja nela o tempo do mundo (grifo nosso), domina-o e o conduz; pela loucura que a interrompe, uma obra abre um vazio, um tempo de silêncio, uma questão sem resposta, provoca um dilaceramento sem reconciliação onde o mundo é obrigado a interrogar-se”.
A experiência trágica
Para Foucault, na Renascença, a loucura passa a ocupar os lugares que a lepra ocupara na Idade Média, lugares deixados sem utilidade bem como os ritos. É que, com a regressão da lepra, serão os pobres, os vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” que assumirão o papel abandonado pelo lazarento. E, a partir do século XV, a face da loucura passa a assombrar a imaginação do homem ocidental. Para Foucault, até pouco depois do início da segunda metade do século XV, o tema da morte impera sozinho; nela, o fim do homem, o fim dos tempos, assumem o rosto das pestes e das guerras. Mas eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. A partir de então, o insano desarma, e o louco ri antes do riso da morte, pressagiando o macabro; trata-se de uma virada no interior da mesma inquietude, trata-se do vazio da existência, um vazio sentido do interior como forma contínua e cosntante da existência. O liame entre loucura e o nada estreita-se no século XV e subsiste por muito tempo no centro da experiência clássica da loucura.
Dentre outras, é na composição literária Narrenschiff (A nau dos loucos), de Brant, que Foucault situa a experiência trágica da loucura na Renascença.[106] Na época, os loucos eram escorraçados e frequentemente confiados a barqueiros. O louco torna-se o Passageiro por excelência, o prisioneiro da passagem, solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. Também entre os míticos do século XV imaginava-se a alma-barca, abandonada no mar infinito dos desejos, barca prisioneira da grande loucura do mar se não souber lançar sólidas âncoras, a fé, ou esticar suas velas espirituais para que o sopro de Deus a leve ao porto.
Será, todavia, na literatura erudita da Renascença, que Foucault vê a loucura em ação, principalmente nos textos humanistas entre os quais se destaca Erasmo, bem como na longa dinastia de imagens, de pinturas, sobretudo em Bosch e Brueghel. Nestas, Foucault percebe uma enorme proliferação de sentidos, de onirismo, onde as figuras simbólicas tornam-se silhuetas do pesadelo, uma interrogação a permanecer indefinidademnte sem resposta, num silêncio habitado apenas pelo bulício do mundo.
Mas, na mesma época, os termos literários, filosóficos e morais da loucura são de tipo bem diferente, observa Foucault. Aqui, a loucura está ligada ao homem, a suas fraquezas, seus sonhos e ilusões, num sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo, desembocando em um universo inteiramente moral. O Mal é apenas erro e defeito ¾ eis que a experiência da loucura assume o aspecto de uma sátira moral. Eis que Erasmo desvia os olhos dessa demência e a elogia, porém, como “doce ilusão” que libera a alma de suas penosas preocupações.
Foucault vê, de uma lado, Bosch, Brueghel, Thierry Bouts, Dürer e todo um silêncio de imagens, toda uma trama do visível e do secreto desenvolver-se, na pintura do século XV, como sendo a trágica loucura do mundo; de outro lado, com Brant, Erasmo e toda a tradição humanista, a loucura é considerada no universo do discurso, o discurso como uma consciência crítica do homem. Enquanto que as pinturas de Bosch, Brueghel e Dürer revelavam espectadores terrivelmente terrestres e implicados nesse homem que viam brotar à sua volta, os escritos de Erasmo revelam uma distância suficiente para estar fora do perigo da loucura. Foucault vê aí uma oposição entre o que chama uma experiência cósmica da loucura, nas formas fascinantes das pinturas, e uma experiência crítica dessa mesma loucura, na distância intransponível da ironia. Duas formas de experiência da loucura revelam-se então, e a distância não mais deixará de aumentar: as figuras da reflexão cósmica e os movimentos da reflexão moral, o elemento trágico e o elemento crítico, que irão doravante separar-se cada vez mais, abrindo, na unidade profunda da loucura, um vazio que não mais será preenchido.
Mas Foucault observa que, mesmo sob a consciência crítica da loucura, e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma abafada consciência trágica não deixou de ficar de vigília. No século XVI, a experiência trágica e cósmica da loucura viu-se mascarada pelos privilégios exclusivos de uma consciência crítica e apenas algumas páginas de Sade e a obra de Goya são testemunha de que o desaparecimento não significou uma derrota total.
E eis que este mascaramento avança a ponto de o mundo do começo do século XVII mostrar-se estranhamente hospitaleiro para com a loucura, mal guardando a lembrança das grandes ameaças trágicas. É que este mundo interna o louco, enclausura a loucura e desta maneira dela parece dar conta.
Mais tarde, bem mais tarde, já em fins do século XIX, início do XX, serão Nietzsche, Van Gogh, Freud e Artaud, que irão assumir a reação àquela opressão, segundo Foucault. No ponto extremo da opressão, uma explosão: Nietzsche. Eis a experiência trágica da loucura. Eis o Foucault trágico.
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