PRIMEIRA PARTE
– O SOL NIETZSCHIANO
Introdução
Falar sobre o pensamento de Nietzsche para depois falar dos pontos de Foucault e do Nietzsche ligado a Foucault, eis o nosso roteiro, no qual as temáticas da morte de Deus e da morte do homem aparecem de forma capital. Dentro deste todo, esta parte funciona como uma preparação, em que nos preocuparemos em fazer surgir o “sol nietzschiano” que iluminará todo o exame posterior. Aqui, estaremos particularmente interessados em três temas de Nietzsche, a saber: o pensamento trágico, a crítica à consciência, à linguagem e à razão, e a morte de Deus.
Façamos, pois, uma incursão no pensamento deste alemão 8Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900), o filósofo-filólogo criador de Zaratustra e de outros tantos livros e textos de filosofia, criador, a bem dizer, de uma nova atitude diante da vida, de uma nova filosofia, sem deixar, contudo, de demolir umas tantas outras, razão pela qual passava também por aquele que filosofava com o martelo.
Busquemos interpretar Nietzsche, penetrando por seu mundo ainda que de uma maneira provisória, para fazer surgir “o sol da grande pesquisa nietzschiana” assim o escrevera Foucault! , eis o trabalho neste início.
CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO TRÁGICO
O Nascimento da Tragédia
Em 1871, quando Nietzsche tinha 27 anos de idade e já dois de professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia, aparece o seu primeiro livro: O Nascimento da Tragédia[6]. Desde então constitui-se a definição da natureza do trágico em tema central da filosofia de Nietzsche, tema este que irá relacionar-se intimamente com todos os demais, inclusive com o da morte de Deus, conforme iremos ver.
Reveste-se, pois, de muita importância o nosso ponto de partida a interpretar o trágico em Nietzsche porque será no fenômeno do trágico que este percebe a natureza da realidade. Nele, o tema estético adquire condição de princípio fundamental. A arte, a poesia trágica, torna-se a chave do mundo. Nietzsche serve-se de categorias estéticas para formular a sua visão de mundo e isso confere ao Nascimento da Tragédia uma natureza toda particular em que o fenômeno da arte é colocado no centro. Para Nietzsche, só com os olhos da arte consegue o pensador mergulhar o seu olhar no coração do mundo, e é a arte trágica, a tragédia antiga, que possui este olhar penetrante.
Estaremos, assim, nos situando em um mundo de um pensador intuitivo, cujos pensamentos, colocados e afirmados, adquirem uma espécie de confirmação exatamente através da intensidade luminosa que depois projetam nas coisas. Nietzsche permanece alheio à especulação e seu pensamento brota de uma experiência fundamentalmente poética. Assim, ao penetrarmos neste tema com características tão particulares, nada mais conveniente do que nos deixarmos envolver pela poesia, uma bela poesia: a da descoberta do maravilhoso fenômeno do dionisíaco.
O mito
Para chegarmos ao pensamento trágico da forma como pretendemos, nada mais interessante do que lembrarmos da lenda grega antiga de Ariadne e Dionísio, lenda a que Nietzsche recorreu com grande inspiração.[7]
Diz a lenda que Ariadne, filha de Minos e Pasífae, vendo o belo herói Teseu encerrado no labirinto para ser devorado pelo Minotauro, concebeu por ele tão violento amor que não hesitou em salvá-lo. Deu-lhe um novelo de linha com o qual, desenrolando-o à medida que avançava, logrou sair das inúmeras voltas do labirinto depois de haver matado o monstro. Teseu fugiu da ilha de Creta com sua libertadora e a desposou, mas logo depois a abandonou na ilha de Naxos. Dionísio, que por ali passava, veio então consolá-la da infidelidade de Teseu, apaixonando-se pela infeliz princesa. Fez-lhe presente de uma bela coroa de ouro e pedrarias, obra-prima de Vulcano, casando-se com ela. Mas Ariadne era mortal, contrariamente a Dionísio que era imortal, o deus da embriaguez e do desembaraço. Assim, diz também a lenda que, após a morte de Ariadne, sua coroa foi lançada aos céus em sua lembrança,[8] tendo as pedras da coroa de Ariadne se convertido em belas estrelas do céu.
Dionísio e Ariadne, sua noiva; Dionísio e Ariadne, sua amada; Donísio e a vida-mulher, seu sofrimento; Donísio e a vida, como tragédia. Eis aí, no mito, uma dualidade que caracteriza o pensamento trágico: a do homem e da vida, esta em toda sua dimensão inclusive a do sofrimento, sofrimento este proporcionado pela paixão que é viver.
Mas o que há de tão particular e de tão interessante nessa história? É que Dionísio a afirma sempre, mesmo em face da mais cruel dor. Pois, quem mais, além de Dionísio, poderia ter lançado aos céus a coroa de Ariadne? É uma coroa para ser contemplada por todos aqueles que se sensibilizam pela beleza da vida e a eternidade das estrelas.
O Eterno Retorno e a inocência
A eternidade das estrelas ¾ é com ela que Dionísio afirma a sua paixão, um episódio que deseja que retorne eternamente, o seu caso de amor com Ariadne, o seu caso de amor com a Vida.
O que acontece, acontece para sempre, fica acontecido e nada mais pode mudar. É nesse sentido que o acontecido retorna sempre. Retorna pelo simples fato de ter acontecido para a eternidade. Uma coisa é de uma certa maneira e não de outra porque aconteceu ser daquela maneira e não de outra. É nesse sentido que se dá o eterno retorno do acontecido. Uma outra maneira de conceber isso seria admitir uma condição cosmológica caracterizada por uma uma infinitude do tempo associada a uma finitude das possibilidades no plano do existente. Mas, mais do que concepção do tempo como infinito, de que não há origem nem fim dos tempos, mais do que condição face à finitude das possibilidades, pode-se pensar que o retorno líquido e certo do acontecido, do feito, da ação, dá-se porque o que está feito está feito e não está mais por fazer. É assim que o feito influi decisivamente sobre a eternidade, e esta inclui o passado, o presente e o futuro.[9]
Interessante é observar que esta concepção acarreta uma importante dimensão ética da doutrina do eterno retorno: a importância da nossa ação, no sentido de que “todos aqueles que agem amem a sua ação infinitamente, mesmo que ela não mereça ser amada”[10]. Uma ética calcada nessa compreensão é uma ética que leva à afirmação do feito, da ação.[11]
E o feito, o acontecido, dá-se na Vida. A Vida é tudo e é bela. A Vida é para ser amada. Por isso, nunca negá-la-ei, a Vida, mesmo em face da maior dor. Sempre afirmarei a Vida, este é o pensamento trágico. Sempre afirmarei Ariadne, meu amor, este é o pensamento de Dionísio, um pensamento inocente.
Inocente é a vida para Dionísio. Inocente é o múltiplo jogo da vida, da força, da vontade. A existência é um jogo e, como tal, pura sensação, fenômeno estético. A existência flui, é devir, é afirmação pura. Não existe um ser para além do devir, não existe um uno para além do múltiplo. O múltiplo é a manifestação inseparável, a metamorfose essencial. O múltiplo e o devir são a grande constância. Assim, o múltiplo é afirmação do uno; o devir, a afirmação do ser.
Retornar é o ser do próprio devir, o ser que se afirma no devir. Ser é devir. Tudo o que é devém. Tudo o que devém é. Será, pois, o eterno retorno lei do próprio devir, como justiça e como ser.
E não terá sido assim que a enunciaram, a serpente e a águia, para Zaratustra, de uma forma inconseqüente, tornando “modinha de realejo” para seu dono a doutrina do eterno retorno, sem que este, mesmo assim, deixasse de amá-los?
Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente se constrói a mesma casa do ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada instante começa o ser; em torno de todo “aqui” rola a bola “acolá”. O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade.[12]
Por que deixar de amá-los, Zaratustra a seus animais, se a existência nada tem de responsável nem mesmo de culpável? Dar à irresponsabilidade um sentido positivo, tornar-se independente do louvor e da censura, do presente e do passado, do bem e do mal, este é o dom também de Dionísio, numa existência de jogador-artista-criança: o jogador abandona-se temporariamente à vida e temporariamente fixa seu olhar sobre ela; o artista coloca-se temporariamente na sua obra, sobre sua obra; e a criança brinca, retira-se do jogo e retorna; brinca como brinca Dionísio com as pedras da coroa de Ariadne lançadas no firmamento, ou seja, afirmadas para sempre em seu acaso. Haverá aí, nesta maneira de ver o mundo, possibilidade de se admitir um Deus? um Deus que morre?
Da imortalidade dos deuses: Apolo e Dionísio
Dionísio era imortal.
Os deuses gregos antigos eram todos imortais. Por que haveriam os gregos de admitir um deus mortal, se os deuses eram aquilo que eles próprios eram, uma vontade de ser … eternamente? E, sendo os deuses como os homens, tinham as imperfeições e as virtudes destes; além de disputarem e litigarem entre si e serem passíveis de perdas e danos, freqüentemente se imiscuíam nas questões dos homens e tomavam partido das suas paixões. E os homens se sentiam favorecidos ou desfavorecidos pelos deuses. Se uma pessoa errava, era porque um deus a havia cegado; se outra matava, era porque um deus a havia para tal fortalecido ou capacitado; se alguém era bem sucedido, era porque um deus fora seu amigo.
Entre os gregos antigos, os homens pareciam querer a vida daquela maneira transcorrendo eternamente, como para com os seus deuses. Esses deuses morreram? Sim, morreram. “Morreram de rir ao escutar um Deus dizer que era o único” escreveu Nietzsche.
Dentre os deuses do Olimpo havia Apolo, o deus da bela figura. Foibos Apolon; o nome procede da raiz fós, “luz” e do substantivo bíou, “vida”, Luz da Vida. Apolo não era só o deus do sol, mas o próprio sol. É o mais radioso dos Imortais. Vivifica todos os seres mas igualmente queima e desseca tudo; deus fecundo e purificador é, da mesma forma, o deus destruidor dos exércitos, sempre vitorioso, o deus da morte súbita. Grande curador e médico, é pai de Esculápio, o deus da Medicina.
Apolo proporciona calma às agitações do espírito e dá paz. Apolo é o deus da harmonia e da música apaziguante e da inspiração poética. Comanda as Musas, é deus das profecias, inspira as Sibilas e Pitonisas em Delos, Tênedos, Claros, Pátara, Cumas, sobre o monte Palatino e ainda em muitos outros lugares menos importantes. Consultavam-no ao fundar toda nova colônia, ou ao decretar leis importantes. Apolo estava presente em todos os atos da vida pública.
Dionísio, por sua vez, o deus de Nisa Baco, para os romanos era o deus do vinho, filho de Júpiter e Semele. Criado pelas Horas e pelas Ninfas longe do Olimpo e da ciumenta Juno, no monte Nisa, instruíram-no Sileno e as Musas. Ao crescer, empreendeu a conquista da Índia e do território compreendido entre a Índia e a Grécia. Consta que passou pelo Egito.
Acompanhado de um grande cortejo de homens e mulheres, armados com o tirso, batendo em tambores e seguido pelas Ninfas, pelos Sátiros e pelo próprio deus Pã, deus dos pastores, dos rebanhos, e das florestas, marchava Dionísio à frente do cortejo como um vencedor triunfante. Submeteu ao seu império todos os povos, ensinando-lhes a cultura da vinha e o fabrico do vinho.
Representam-no às vezes com chifres e mesmo sob a forma de um touro, símbolo da força que o vinho pode dar ao homem. Mais comumente é representado como um belo jovem de faces coradas, coroado de vinha ou de hera, com os longos cabelos anelados caídos sobre os ombros. Não raro figuram-no sentado num carro puxado por tigres, leões e panteras. A ele imolavam o bode, sendo também a ele consagradas a pantera e a pega, ave européia semelhante ao corvo; entre os vegetais , a hera, o pinheiro e o carvalho. Consta que o culto de Dionísio foi introduzido na Grécia por Orfeu.
De Dionísio contam-se muitas façanhas. Aos habitantes do Egito ensinou a agricultura e a arte de extrair o mel. Seus apelidos são inúmeros: Liber, “Livre”, porque o vinho desembaraça o espírito; Évio, o que solta o grito evoé, grito festivo com que se o evocava; Niseu, da cidade mítica de Nisa; Lieu, o quebra-cuidados; Leneu, o deus do lagar; Nictélio, o noturno, já que suas festas eram celebradas à noite; Brômio, o que faz ruídos.
O nome Baco deriva de uma palavra grega que significa “gritar”, alusão aos gritos frenéticos das Bacantes e dos bêbados. Em Atenas, suas festas, as Dionisíacas, celebravam-se oficialmente com grande pompa e esplendor. Consistiam as principais cerimônias numa majestosa procissão na qual se levavam tirsos, vasos cheios de vinho, coroas de pâmpanos, ramos e guirlandas de árvores e cepas de vinha. Virgens chamadas Canéforas, as que conduzem cestos, soltavam, de açafates enfeitados, serpentes domesticadas. No cortejo figuravam homens fantasiados de Silenos, de Pãs e de Sátiros. Em Roma, celebravam-se as festas em honra de Baco, as Liberálias.[14]
Apolo e Dionísio, Dionísio e Apolo. Neles reside uma outra dualidade que caracteriza o pensamento trágico. Em Apolo, a divinização do princípio de individuação e de construção da aparência, da imagem plástica que triunfa sobre o sofrimento do indivíduo pela glória radiosa que dele se rodeia e assim apaga a dor. Em Dionísio, o regresso à unidade primitiva, uma abolição do indivíduo e uma inserção no grande naufrágio e no ser original. Dionísio reproduz a contradição como a dor da individuação, resolvendo-a num prazer superior, fazendo-a participar da superabundância do ser único ou do querer universal.
Apolo e Dionísio não se opõem como os termos de uma con-tradição, mas como dois modos antitéticos de a resolver. Apolo, mediatamente, na contemplação da imagem plástica; Dionísio, imediatamente, na reprodução, no símbolo musical da vontade.
Assim, a tragédia é esta aliança admirável e precária dominada por Dionísio. Na tragédia, Dionísio é o fundo trágico; o tema trágico reside nos sofrimentos de Dionísio, sofrimentos de individuação mas reabsorvidos no prazer de ser original. E o espectador trágico é o coro, coro de vozes a cantar e a compor o palco da arte dramática grega antiga, o coro que tem Dionísio como senhor e amo mas que se distende ao projetar para fora de si um mundo de imagens apolíneas. A arte dramática em que consistia a Tragédia Grega é a representação do fenômeno dionisíaco sob uma forma e num mundo apolíneo.
Sócrates
Eis que na vida dos gregos haveria de existir Sócrates, o novo opositor a Dionísio. Não é Apolo que se opõe ao trágico ou através de quem o trágico morre, mas Sócrates, e este não é apolíneo nem dionisíaco, mas teórico. Enquanto os instintos eram força afirmativa e criadora para os homens produtivos de outrora, e a consciência era força crítica e negativa, em Sócrates ocorre uma inversão: nele, é a consciência que se torna criativa e os instintos, negativos. Sócrates torna-se o primeiro grande gênio da decadência porque opõe a idéia à vida, julga a vida pela idéia, postula a vida como algo que deve ser julgado, justificado, resgatado pela idéia. O que ele nos pede é que sintamos a vida como que esmagada sob o peso do negativo e, assim, indigna de ser desejada por si mesma, experienciada por si mesma. Sócrates, dessa forma, marca o início do pensamento lucubrativo racional. Sócrates pensa deveras racionalmente e dessa maneira se contorce em explicações fazendo uso da palavra ou incentivando os seus próximos a assim procederem. A partir desse momento, a partir do momento em que o homem passa a pensar dessa forma, introduz-se nas coisas o bacilo da vingança.
Mas Sócrates, sendo como foi, parece não ter amado a vida. Eis que nesse sentido ele se denuncia justo no momento de morrer, segundo escreve seu discípulo Platão.[16] Eis que Sócrates, no momento de morrer, depois de haver justificado aos amigos pesarosos o seu ato de não fugir e de não reagir à condenação de beber cicuta, já tendo-a bebido e já sentindo o torpor provocado pelo veneno, pede que se ofereça um galo a Esculápio por aquele episódio. Sócrates estava querendo, com o galo, recompensar o deus da cura pois, enfim, sentia-se curado. Curado da vida. Para Sócrates, vida é doença, vida é mal que se cura com a morte. Eis Sócrates, o primeiro racionalista.
Sócrates é o homem teórico, opositor do homem trágico. E como homem teórico, Sócrates opunha o mundo das idéias ao mundo das aparências, o mundo racional ao mundo da arte, o além-da-vida à vida.[17] E não terá sido ali, no além-da-vida, que o homem do Ocidente passou a habitar depois de Sócrates? Não foi ali que colocou o seu novo Deus?
Dionísio e o crucificado
À antítese Dionísio e Apolo, e à complementaridade Dionísio e Ariadne, e à oposição Dionísio e Sócrates, substitui-se aqui a mais significativa oposição: Dionísio e o Crucificado, Dionísio e Cristo, Dionísio e o cristianismo.
Cristo, filho de Deus, Deus sob a forma de Homem que morre na cruz para nos salvar; um deus mortal, eis aí o crucificado, um Deus que redime os pecados do mundo, eis aí Cristo, Cristo Homem, Cristo Deus, Deus Morto.
Tanto em Dionísio quanto em Cristo o mártir é o mesmo, a paixão é a mesma, é o mesmo fenômeno que se dá, mas são dois os sentidos. Num, a vida não tem justificação porque é essencialmente justa. No outro, a vida é algo que deve ser justificado porque não é justa em sua essência. Dionísio afirma a dor de viver e aceita a vida sem culpa, nele há uma exteriorização da dor, afirmação de vida, uma embriaguez que é pura atividade, laceração, transavaliação, renascimento, redespertar para a vida. No Cristianismo, a vida é culpada na medida em que faz sofrer, a vida deve ser resgatada de sua injustiça e salva pelo próprio sofrimento que causa, nele há uma interiorização, negação, entorpecimento, convulsão, crucificação, transubstanciação, ressurreição para a morte, com ele estão os que sofrem de um empobrecimento de vida.
Para Dionísio, a vida é santa por si própria e motivo de afirmação, uma pura diferença afirmativa. Para o Cristianismo, a vida é o caminho da santidade, reconciliação, negação dialética. Para o Cristianismo, a vida é tristeza, má consciência; para Dionísio, alegria.
Da alegria e do Amor Fati
Alegria… E por que não lembrar aqui desses alegres e brasileiros versos de nosso poetinha maior? e, deveras trágico.
É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração cantava o poeta mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não … completava ele.[18]
Será necessário o gênio do pluralismo, o esforço e o poder das metamorfoses, para fazer de tudo um objeto de afirmação. Eis aí a essência do trágico: uma afirmação múltipla e pluralista, afirmação mesmo da tristeza de viver, negatividade essa que se transmuta em positividade no canto do poeta. Mas, poder-se-á tomar tudo o que existe por objeto de afirmação, quer dizer, de alegria? Para tal, será necessário encontrar em cada coisa os meios particulares pelos quais ela é afirmada, pelos quais deixa de ser negativa. Assim, o que define o trágico é a alegria que resulta do múltiplo, a alegria plural, que se afirma também na dor e na tristeza. Amor Fati, amor aos múltiplos fatos do mundo.
Mas, deve-se cuidar de um aspecto importante: de que, antes de aceitar dizendo sim a tudo indiscriminadamente, trata-se de afirmar: afirmar a vida. Trata-se de um afirmar-aceitando-a, tanto quanto um aceitar-afirmando-a. O dizer sim a tudo indiscriminadamente não é afirmar a vida, isso é próprio do burro que zurra dizendo sim.
Mas mastigar e digerir qualquer coisa isso é próprio de porcos! Dizer sempre I-a aprendeu isto somente o burro e quem tem o seu espírito![19]
Muitas vezes, repetidas vezes, precisamos dizer um não, um rotundo não, para afirmar a vida e como isso é difícil…
A forma estética assim designada é que o trágico é alegria, lógica da afirmação múltipla que é própria do artista, do criador, do criador de valores; e que implica também numa ética. Sonho anti-dialético e anti-religioso. Sonho heróico. E o herói é alegre, o herói é leve e diáfano, o herói dança, o herói joga, como Dionísio-herói que conduz ao céu Ariadne; as pedrarias da coroa de Ariadne são estrelas e sua constelação nasce como de um lance de dados. Jogar é afirmar o acaso, é aceitar o lance de dados. Afirmar o acaso é ser capaz de dar ao lance de dados, qualquer que seja o seu resultado, um sentido positivo, alegre.
Um sentido positivo, alegre e afirmativo do acaso, um exemplo que Nietzsche amava deveras, é assim como o canta a bela Carmen, la Carmencita, flor de acácia entre os lábios, ao responder com estes franceses versos aos jovens da praça que imploravam por seu amor e que perguntavam se ela um dia os amaria.
Quand je vous aimerai? Ma foi, je ne sais pas. Peut-être jamais, peut-être demain, mais pas aujourd’hui, c’est certain.
(…)
L’amour est enfant de Bohême,
il n’a jamais, jamais connu de loi;
si tu ne m’aimes pas, je t’aime;
si je t’aime, preds garde à toi!
(…)
Prends garde à toi![20]
Do niilismo
O problema comum entre a ideologia cristã e o pensamento trágico é o sentido da existência. Eis aí o problema supremo da filosofia, que pode ser enunciado de outra forma: justiça. O que é a justiça? Será a justiça obra de Deus? Mas que Deus?
Deus morreu.
Nesta longa história, a do sentido da existência, serviu-se do sofrimento como um meio para provar a injustiça da existência e ao mesmo tempo para lhe encontrar uma justificação superior e divina. A existência é culpada na medida em que sofre; mas porque sofre, expia e é resgatada. Mas é Dionísio quem permite ver a armadilha que aí se esconde: fazer da existência um fenômeno moral e religioso. O que está no fundo de tudo isso é uma maneira sutil de depreciá-la, de torná-la passível de um juízo moral e sobretudo juízo de Deus. A existência, aqui entendida como a vida, é um valor em si; ela não pode ser julgada!
Nihil é uma palavra latina que significa nada, coisa nenhuma. Dela deriva a palavra niilismo, que significa aquilo que baseia-se sobre o nada, que valoriza o nada. Sim, porque em tudo existe um valor, sendo o valor último, o valor dos valores, a própria vida. Valorizar o nada, aquilo que é próprio do niilismo, significa não valorizar a vida. E valorizar o nada está muito próximo do nada de valor.
Mas, o que é valorizar o nada?
Significa não valorizar o tudo, que é a vida. Assim, niilismo é valorizar o que está fora da vida. Niilismo significa que os mais altos valores se depreciam, falta a meta, falta a resposta ao porquê. O niilismo radical é a convicção da mais absoluta insustentabilidade da existência.
Os que têm a vida como injusta, triste, pesada, grave; os que não sabem dançar, cantar, poetar, e que vivem só a teorizar, a racionalizar, a calcular; os da lógica fria e excludente em que A é igual a A e o que não for A estará excluído; os que têm medo da vida e de sua lógica plural do A, do B, do C, do D, e de todas as demais letras e signos do mundo, podendo-se com eles montar toda e qualquer equação pois a vida assim o permite; os que têm nojo da vida; os covardes; os que não amam a vida como ela é; a esses só resta valorizar o que não está na vida, ou seja, valorizar o nada. São os trasmundanos, os que vivem em busca dos trasmundos, para quem este mundo não é digno e afigura-se como “obra de um Deus sofredor e atormentado”[21]; são os que vivem a enfiar a cabeça na “areia das coisas celestes”, quando esta é para ser trazida erguida e livre como cabeça terrena capaz de “criar o sentido da terra”. Mas o que esperar de quem não ama a vida? Vingança. Vingança contra a vida.
Por todo lado onde se procuraram responsabilidades, ou seja, exigir de alguém uma resposta, foi o instinto de vingança que as procurou. O instinto de vingança apoderou-se de tal maneira da humanidade, no decorrer dos séculos, que toda a metafísica, a psicologia, a história e sobretudo a moral dele ficaram impregnadas.
E eis que o niilismo apresenta aspectos, gradações. Primeiro, o de um niilismo negativo, momento da consciência judaica e cristã. Aqui, a idéia de Deus exprime a vontade de nada, a depreciação da vida. O centro de gravidade da vida é colocado não na vida, mas no além, no nada. Depois, o de um niilismo reativo, momento da consciência européia, o do homem que mata Deus e se coloca, com culpa, em seu lugar. Finalmente, o de um niilismo passivo, momento da consciência búdica. Aqui, trata-se de toda e qualquer supressão da vontade. Não se trata mais de uma vontade de nada mas de um nada de vontade.[22]
A morte de Deus, uma interpretação histórica
Segundo a história, é o Velho Deus Judaico que deixa o Filho morrer, isto é, mata-O. Para quê? Para torná-lO independente de Si próprio e do povo judaico. Em outras palavras, o povo judaico, ou melhor, a consciência judaica mata Deus na pessoa do Filho e assim inventa um Novo Deus, um Deus Universal que irá conquistar Roma e destronar os deuses gregos. A consciência judaica, no Filho, inventa um Deus de amor que sofre com o ódio em vez de encontrar no ódio as premissas e o seu princípio. Trata-se de um Deus, na figura do Filho, independente das próprias premissas judaicas. Assim, o judeu, ao matar Deus, encontrou o meio de fazer do seu Deus um Deus Para Todos, um Deus Verdadeiramente Cosmopolita, e que irá vencer os deuses de Roma. Eis, pois, que a Judéia vence Roma.
Assim, é o Velho Deus Judaico que verdadeiramente morre nessa história. E o Filho refaz um Deus. No lugar do Pai do Antigo Testamento que nos metia medo, agora está o Filho que exige apenas que Nele creiamos e que O amemos, como Ele nos ama. Além disso, pede que nos tornemos reativos para evitar o ódio.[23]
Na medida em que a vida reativa se estabelece, um estranho resultado ocorre: somos nós culpados! Matamos Deus e nos colocamos em seu lugar! A vontade de nada não tolera sequer Deus. Impede-o de ressuscitar, senta-se sobre a tampa do túmulo e grita: sou Deus! Eis aí o homem-deus, não mais o Deus-Homem, o homem europeu, o homem ocidental moderno e contemporâneo. Eis aí o homem culpado por natureza, culpado em tudo. Eis que essa culpa se interiorizou de tal modo em nós que nos sentimos culpados por viver. Não é assim que nos fazem sentir desde criança?
Quanto a Cristo, o Jesus de Nazaré, este teria sido um budista. O seu tipo pessoal, a “boa nova” que ele trazia apontava para a supressão do pecado, vale dizer, a supressão da vontade, a ausência do ressentimento e do espírito de vingança, a recusa de qualquer guerra, a revelação de um reino do coração, e sobretudo a aceitação da morte. Jesus teria sido um Buda num terreno pouco hindu. Jesus era dócil e doce, fornecia uma nobreza ao niilismo passivo, ao nada de vontade, quando os homens de sua terra estavam no niilismo negativo (vontade de nada), e quando já se alcançava o niilismo reativo (culpa, má consciência, ressentimento).[24]
Terá sido trágica a morte de Cristo? Agora pode-se compreender que não, segundo o sentido aqui dado ao trágico. Sobretudo porque esta morte não aponta para a afirmação da alegria do Múltiplo; pelo contrário, aponta para a negação pela tristeza do Mesmo.
Mas, quem mais poderá ser portador do pensamento trágico, além de Dionísio?
Zaratustra
Zaratustra, que depois de gozar por dez anos do espírito de solidão na montanha, falando ao sol, diz que, assim como a abelha satura-se do mel juntado em demasia, aborreceu-se de sua sabedoria, e precisa de mãos que para ele se estendam. Resolve, assim, descer da montanha[25] para ensinar aos homem o além-do-homem o Übermensch , o super-homem.
O homem é algo que deve ser superado dizia ele para os homens da cidade. Que fizestes para superá-lo? perguntava. O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar. O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é que ele é um passar e um sucumbir. Amo Aqueles que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são os que atravessam dizia ele.[26]
Vontade de sucumbir, eis a morte do homem.
Do homem superior e da superação
Zaratustra vê o homem superior sob dois aspectos: simultaneamente como representante das forças reativas e de seu triunfo, e representante da atividade genérica e do seu produto. É, pois, o homem superior, a imagem pela qual o homem reativo se apresenta como superior, e se deifica. É a imagem na qual aparece o produto da cultura. E o homem reativo, o mais ignóbil dos homens, representa o niilismo reativo, momento da consciência européia e que é também nossa consciência ocidental contemporânea. Nele está o homem da grande lassidão, o profeta dos últimos dos homens que quer a morte mas como uma extensão passiva, em um nada querer. Nele está a má consciência, o falsário, o expiador do espírito, o demônio da melancolia que fabrica o seu sofrimento para excitar a piedade, para espalhar o contágio. Nele está a moralidade de costumes e nele, o produto da cultura enquanto ciência, o querer a certeza e o apoderar-se da ciência e da cultura. Nele está o homem do mais frio de todos os monstros frios: o Estado. Nele está o produto da cultura como religião, mas nele, também, aquele que percorreu toda a espécie, dos ricos aos pobres, procurando o reino dos céus e a felicidade na terra como recompensa, mas também como produto da atividade humana, genérica e cultural.[27]
Será o homem essencialmente reativo? Como compreender o devir histórico do homem da cultura, esse que nós somos? Terá sido o triunfo das forças reativas essencial no homem e na história? Será o ressentimento, a má consciência constituintes da humanidade do homem e o niilismo o conceito a priori da história universal?
Vencer o niilismo, libertar o pensamento da má consciência e do ressentimento significa superar o homem, destruir o homem. Mas o que constitui o homem é um devir de forças em geral; não as forças reativas em particular, mas o devir-reativo de todas as forças. É, pois, na sua essência que o homem é dito a doença da pele da terra. Nesse sentido, há uma saúde acerca da qual o genealogista-filósofo pressupõe um devir-doente. Pois existem de fato forças ativas no homem, mas que constituem apenas o alimento de um devir reativo. Assim é que Roma foi invertida pela Judéia, e a Renascença pela Reforma. Está, pois, nos homens superiores o caráter ativo. Mas eles são naturezas falhadas; são algo falso, pois seu projeto, em vez de formar um devir-ativo, alimenta o devir inverso, o devir-reativo.
E Zaratustra fala em transmutar valores, converter a negação em afirmação. Nunca a reação se tornará ação sem esta conversão mais profunda: é necessário que em primeiro lugar a negação se torne poder de afirmar. Assim, as condições que tornariam viável o projeto do homem superior são condições que lhe mudariam a natureza: a afirmação dionisíaca, não a atividade genérica do homem. O elemento da afirmação constitui o elemento do sobre-humano. O elemento da afirmação é o que falta ao homem, mesmo e sobretudo ao homem superior, pois há coisas que este homem não sabe fazer: rir, jogar e dançar. Rir é afirmar a vida e, na vida, até o sofrimento. Jogar é afirmar o acaso e, do acaso, a necessidade. Dançar é afirmar o devir e, do devir, o ser.
Mas, como vencer o niilismo? Como mudar o próprio elemento dos valores, como colocar a afirmação no lugar da negação? O niilismo, se vencido, será por si mesmo. Será, assim, a transmutação de valores que vence o niilismo, a única forma completa e acabada do próprio niilismo.
Tardiamente é que temos a coragem de confessar o que sabemos verdadeiramente. Que até o presente eu tenha sido fundamentalmente niilista, foi há bem pouco tempo que confessei a mim mesmo[28]
Nietzsche viveu o niilismo em si mesmo e a experiência da transmutação de valores o fez tornar-se o que é. Nietzsche viveu esta morte em si mesmo, é o que ele nos diz. Morte para um passado doente e renascimento para um estado de grande saúde.
O trágico por excelência
A morte do homem é uma passagem daquele que quer sucumbir, sucumbir para o além-do-homem. Nesse sentido é que esse é um pensamento trágico por excelência. Trágico porque afirmativo. Afirmativo do riso, do jogo e da dança dos homens. Dionísio assim o confirma e Zaratustra assim o disse. Ou melhor: Nietzsche-Zaratustra assim o disse. Ou melhor: Nietzsche, o filósofo das marteladas.
Ao concluirmos estas considerações sobre o trágico, uma indagação veio-nos à mente: haverá filosofia mais bela? Ao que, imediatamente, uma outra nos surgiu como que a ampliar a constatação: haverá maneira de se admirar uma filosofia que não pela sua beleza?
Admirar uma filosofia pela sua beleza talvez constitua-se na única maneira que nos resta, depois da morte de Deus, de chegarmos à filosofia. Amar a sabedoria tendo-a por linguagem bela e vã, linguagem de um sujeito que se entrega e se dissolve no mundo. Não será isso que o maravilhoso fenômeno do dionisíaco inspira a quem a ele se deu? Não terá sido a isso que Foucault sensibilizou-se ao ler Nietzsche, antes de tudo, e ao voltar-se, desde o início de sua obra, para a loucura trágica dos homens, a loucura que é viver? E a preocupar-se com a história do Ocidente como história da repressão ao trágico?
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