segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A VERDADE NO MUNDO DAS IDÉIAS DE PLATÃO - Hirschberger



História da Filosofia Antiga – Johannes Hirschberger

B.   A Verdade

O segundo conceito com que se encontra o pensamento de Platão é o da verdade. 

Falar de Platão, é falar da doutrina das Idéias. 
Mas desta só nos aproximamos se partirmos do ponto de vista da verdade.

a) Conceito   da   verdade

A verdade pode ser uma propriedade do nosso pensamento e da nossa linguagem: é a verdade lógica. Consiste ela em o nosso juízo concordar, perfeitamente, com a realidade, que ele quer reproduzir. Aristóteles deu, a propósito, a seguinte definição: ‘"Dizer que o ser é, e o não-ser não é, nisto consiste a verdade   (Met. Γ 7: 1011b 27).

Platão também conhecia esta verdade lógica, e, no Eutid, 284 a e Crát. 385 b antecipou a definição de Aristóteles. Mas a verdade também pode significar uma propriedade do ser. Se o ser é como deve, então é verdadeiro: verdade ontológica. Neste sentido falamos de ouro verdadeiro, flores verdadeiras, homens verdadeiros etc. Platão conhece ambos esses conceitos de verdade; mas o mais importante é o segundo. A distinção entre um verdadeiro ser (ωζ αλητωζ ον) ao lado de um existente", que não é verdadeiro ser, por estar compreendido entre o ser e o não-ser, domina inteiramente toda a sua Filosofia. A verdade ontológica é, porém, para Platão, algo de mais primitivo, e diversa do correspondente ao dever–ser; é, talvez, o verus lapis do pensador medieval, ao qual corresponde a idéia da pedra na mente divina.

Em Platão, o "existente" nunca se identifica totalmente com a sua idéia. Para êle, o verdadeiro é a própria idéia. É a sua verdade ontológica. Pressuposto para ambas as significações do conceito de verdade é sempre a sua concepção, de que todo o verdadeiro deve ser algo de imutável, algo de sempre idêntico consigo mesmo, como costuma dizer. Toda verdade é pois para Platão eterna, e mesmo, melhor dito, atemporal. Por séculos afora, este conceito de verdade dominou o pensamento e a Filosofia do Ocidente. Para. lhe sentir a peculiariadde, basta pensar na posição da Filosofia da vida (Lebensphilosophie) que, exatamente, vê em tal conceito da verdade uma falsificação do, segundo ela crê, fluxo eterno da realidade e que, por isso, considera como verdadeiro coisa muito diversa. Verdadeiro é, para ela, p.ex,, o que é pura vivência ou produz algum fruto.

Os fundamentos históricos do conceito platônico de verdade devemos procurá-los nos conceitos universais de Sócrates, como no ser de Parmênides, em eterno repouso. Não foi em vão que os corifeus da Filosofia da vida, Nietzsche e Klages, sempre se opuseram a esses dois homens. As bases reais da sua posição vai Platão descobri-las no ideal da ciência matemática que, para êle, é o ideal puro e simples da ciência, como, mais tarde, para Descartes, Espinosa e Kant..

Uma fonte mais profunda é encontrada nos conteúdos de valor ético, a priori. O fundamento último está no auto-entendimento do espírito, que vê na perpétua-identidade-consigo a própria lei fundamental do seu processo-pensante e a natureza da verdade; de modo que se poderia aplicar aqui o dito de Descartes: "Só é verdadeiro o que eu concebo clara e distintamente  (claro et distinctc).

b)     Fonte  da    verdade

O que, a propósito da verdade, sobretudo interessa Platão é a questão da sua fonte. 
Onde achamos a verdade?

α) Sensibilidade

. — Na sua resposta, começa êle por excluir a sensibilidade como fonte da verdade; isto. o faz desde o princípio, de modo muito típico, determinado tanto para si, bem como para o racionalismo posterior. Sensibilidade é, então, tanto a percepção subjetiva sensível, como o mundo objetivo dos sentidos, o mundo dos corpos dispostos no espaço e no tempo. A percepção sensível não merece fé. Estamos continuamente a experimentar que os nossos olhos vêm as coisas diferentes do que são. E ainda mais inseguros são os outros sentidos. Mas particularmente chocante é ainda o nos parecerem os mesmos dados sensíveis diversos do que parecem aos outros homens.

A incerteza das percepções sensíveis já Parmênides sinaladamente o notara, bem como, a sua relatividade particular, os sofistas. E, como vemos, Platão os aprova neste ponto. Também êle considera a experiência sensível com olhos céticos. Não há nela nenhum conhecimento sempre uniforme, e, portanto, nenhuma verdade. Por isso deve o filósofo morrer ao corpo e aos sentidos, diz o Fédon; do contrário não contemplará nunca a pura verdade. Além disso, o mundo das sentidos é o mundo do vir-a-ser e do constante movimento, onde tudo corre. Era esta a tese de Heráclito, que também exerceu influência sobre Platão. Se na realidade tudo corre, naturalmente não pode haver no mundo dos sentidos nenhuma verdade e ciência, pois nada permanece; ao contrário, o conceito de verdade exige o continuamente-idêntico-a-si-próprio. E, finalmente, as informações dos sentidos em geral não são para Platão um conhecimento formal, mas, somente, o material do conhecimento.

Os conteúdos de cada percepção sensível nós os comparamos sempre uns com os outros, e os consideramos em conjunto; e o que daí resulta, como dado comum às várias impressões sensíveis, é o primeiro objeto que exprimimos com a predicacão é, do conhecimento judicativo, e que erigimos em objeto da ciência e da verdade. Mas o conhecimento judicativo não pode, êle também por sua vez, ser sensível, porque cada impressão sensível limita-se a um órgão sensível particular, ao passo que no conhecimento racional os dados de cada faculdade sensível particular são ultrapassadas, sintetizados e elaborados. Por isso não é nunca a sensibilidade, por si mesma, fonte da verdade (Rep. 523 ss; Teet. 185 ss.)

β) O espírito:

— Esta fonte devemos procurá-la, antes, na alma: "Se a alma, de todo arrimada em si mesma, entrega-se a uma consideração, então move-se ela para o ser puro, sempre existente, imortal e igual a si mesmo…; e então liberta-se de todo erro, enquanto assim permanece, porque apreende objetos iguais a si mesmos" (Fed. 79 d). Platão significa, com isso, o espírito, o pensamento pura (νοησιζ, επιστημε,  φρονησιζ). E disso deve viver todo conhecimento, que só assim chega a possuir a verdade.

αα) Apriorismo.

— Mas o espírito não precisa começar por aquirir essa ciência da verdade; ele a possui sempre, e por força da sua natureza. "Pois a ciência e os conceitos retos residem no homem" (Fed., 73 a). O saber, p. ex.,  do igual em si, do grande, do pequeno, do bem, do justo, do santo, do homem, da lira, e, em particular, de qualquer essência em si", Platão os denomina conceitos, pensamentos, ciências (λογοι, εννοιαι, νοηματα, επιστεμαι), ou simplesmente ‘Idéias”. Denominaram "inatas"’ essas Idéias. Seria melhor falar de verdades a priori. ou conceitos ideais.

ββ) Reminiscência.

— O próprio Platão diz sinalada-mente que contemplamos esses puros pensamentos na preexistência da alma, junto dos deuses, e dos (piais agora, despertados pelas percepções sensíveis no espaço e no tempo, de novo nos lembramos (αναμνησιζ). Não é fundados em nossa percepção sensível que eles subsistem, mas em dependência da preexistente contemplação. Ora, é exatamente o que significa o   conceito  de   aprioridade.    Temos,   assim,   que  Platão,   com isso, pensa numa forma de saber protótipo, que nos revela todo ser na sua forma ideal. Mas não devemos exagerar, na doutrina da reminiscência, a expressão: contemplação preexistente..

Mas quer Platão tivesse ou não entendido essa expressão em sentido literal ou metafórico, sentido esse último a que afinal se antevê, é, contudo, essa ciência a priori e paradigmática que alça o homem para além das condições espaço-temporais, no atinente a certos aspectos que nos são essenciais quanto ao conhecimento da verdade dos valores.


História da Filosofia Antiga – Johannes Hirschberger

γγ) Fundamentação do apriorismo.

— O que é filosoficamente mais importante, nesta forma de pensamento, é a tentativa de Platão de fundar o apriorismo dá sua, ciência ideal, É muito conhecido o que, a esse respeito, escreve no Ménon. Um jovem escravo, que nunca estudou geometria, sabe por si mesmo, após algumas hábeis perguntas, qual deve ser o comprimento do lado de um quadrado, cuja superfície é o dobro da de um quadrado dado. Porém, trata-se aqui de uma demonstração ad hominem. Vai mais longe o que está no Fédon. A sua prova pode ser resumida do seguinte modo. — Tu, de nenhum modo e nunca, poderás ter as primeiras percepções sensíveis sem já antes deixares entrar e aplicar conteúdos espirituais, não oriundos da experiência. Se, p. ex., compararmos dois lenhos entre si, acharemos então que não são iguais de modo absoluto, mas se aproximam mais ou menos do conceito de igualdade.

O que resulta dessa comparação? Nós referimos as nossas representações de cada um deles à idéia de igualdade, e assim os medimos, julgamos, ordenamos. Não teríamos, de nenhum modo, podido pensar nisso, a saber, uni-los numa comparação, se já de ante-mão não possuíssemos a idéia de igualdade. Dito mais geralmente: "Antes de começarmos a ver, a ouvir e a ter as demais percepções sensíveis, já deveríamos ter adquirido o conhecimento da igualdade em si, para ser possível referir-lhe a igualdade da percepção sensível, com a compreensão de que tudo tende para o igualar sem, contudo, nunca o conseguir"’ (Fcd., 75 b). O Teeteto enumera outros conhecimentos a priori: identidade, diversidade, totalidade, unidade, determinação numérica, retidão e curvidade. Como vemos, são conceitos fundamentais de todo conhecimento em geral os que Platão aqui ensina.

E se se lhe objetasse que esses conteúdos de ciência universais são adquiridos por. abstração e, portanto,  poderiam  originar-se da percepção sensível, então certamente êle responderia o seguinte: Não é possível, em geral, começar o processo da abstração sem já antes saber o que é identidade, igualdade, semelhança, multiplicidade etc; pois, do contrário, a comparação, o primeiro passo para abstrair, não poderia de nenhum modo ser dado. Para podermos comparar, já antes devemos conhecer a unidade e a multiplicidade, a identidade e a alteridade. Do contrário, como poderíamos distinguir uma de outra representação?

δδ) Extensão do apriorismo.

— Para Platão, não somente são a priori- os conceitos fundamentais de cada conhecimento, mas, prosseguindo no caminho uma vez trilhado, ensina que tudo o que é "em-si", portanto cada idéia-paradigma, o Belo "em-si", o Bem, o Justo, o Piedoso "em-si", e, principalmente, toda essência, o espírito já os possuiu a priori. Assim, nunca podem ser hauridos na experiência, mas devem sempre manifestar-se à consciência por meio da reminiscência. Platão é, declaradamente, racionalista e idealista. Todo o mundo sensível espácio-temporal é incluído por êle na Idéia e no conceito puro, em função do qual deve ser entendido. E para que a percepção sensível se torne possível, e, com ela, a experiência, é necessário a existência prévia da Idéia. Só por ela podemos compreender a experiência.

εε) Contra o materialismo. — A demonstração dos elementos a priori do espírito humano Platão a dirige igualmente contra a doutrina de Protágoras, de que todo conhecimento é apenas aparência e opinião subjetivas; contra a afirmação de Antístenes, de que fora da sensibilidade material nada mais há; e contra a tese de Aristipo, de que todo sentimento de valor é apenas uma vivência individual. Mostrando Platão o valor universal, não-sensível e a priori do conteúdo do nosso espírito, abala as posições do relativismo, do fenomenalismo, do sensualismo e do individualismo dos valores.

Também a afeição mais subjetiva do sentido e do desejo (φαινησται, αισθανεσθαι, παρον πατοζ) não é possível, sem as categorias de valor universal, não-sensíveis, lógicas, e éticas, razão por que são insustentáveis o sensualismo e o subjetivismo dos valores. E também por aqui se vê que em toda relatividade de conteúdo espiritual, idéias-modêlo e ideologias do espírito comportam também elementos, a saber, esses conceitos fundamentais a priori, que estão para além de toda relatividade.
Platão é o primeiro grande adversário do materialismo e do empirismo sensualista. Os que, depois dele, quiseram combatê-los, voltaram se para os seus argumentos.


γ) Sensibilidade e pensamento

— A relação entre a sensibilidade" e o pensamento desenha-se ainda de maneira mais acentuada. Sendo Platão racionalista e idealista, nem por isso devemos representá-lo como atravessando o mundo, de olhos vendados, sem querer, para nada, levar em conta a sensibilidade.

αα) Uso dos sentidos. — Também a sensibilidade desempenha um papel na sua doutrina do conhecimento. Nós pensamos e conhecemos "usando os sentidos”, "partindo dos sentidos", "referindo-nos aos sentidos", costuma éle dizer. Mas qual é esse papel? P. Natorp e a interpretação neo-kantiana de Platão pensam devemos compreender essa relação entre os sentidos e a inteligência, como Kant: os sentidos deveriam fornecer o material da experiência, enquanto que o espírito deveria ordenai- esse material pelos seus elementos a priori, e assim tornar antes de tudo possível a experiência.

As Idéias de Platão, porém, não são formas e funções, mas têm um conteúdo subsistente, e nós não nos achamos, com elas, em face de um determinado número de funções fundamentais (categorias), mas, de um número ilimitado de conceitos; toda ciência sobre uma essência é a priori. E, assim, já não é necessário aqui nada mais sei- ordenado. Os conteúdos noéticos já são aqui coisa, terminada. Apenas devem tornar-se conscientes. E isto só se realiza por meio dos sentidos.

Mas apenas isto. Muito claramente Platão . o ensina no Fédon 73c-e: se vejo o retrato de um amigo, lembro-me dele. por ser o retrato a ocasião de pensar dele, atualmente, o que sempre dele sei em potência. Às imagens não me dão uma imagem do meu amigo; pois essa eu já tenho. São apenas a ocasião de subir à minha consciência o conteúdo a priori. E o mesmo se dá quando vejo uma reta, um círculo, um quadrado, uni homem, um animal, uma planta ou qualquer outra coisa. Por isso, toda a sensibilidade assume, em Platão, o caráter de cópia de um modelo. E assim como nós só compreendemos uma imagem como sendo uma cópia, assim também devemos referir todas as nossas percepções sensíveis a um  primeiro  modelo,   cujas  cópias  elas  são. 

          ββ) μεθεξιζ e paradigma.

— Daí o ter Platão empregado a expressão — participação (μεθεξιζ ). O sentido real desta palavra é o mesmo que paradigma. Só os conceitos são diferentes. Mas, com a palavra "participação"’ não se deve entender a Idéia como imanente ao conhecimento sensível; e com a palavra "paradigma", como se a Idéia transcendesse o conhecimento sensível, como o pretende Ross. A transcendência da Idéia não é total, mas modal. O sentido gnoseológico-teorético deste pensamento significa que todo conhecimento, no mundo empírico espácio-temporal, é um "analogismo", uma seleção de percepções sensíveis pelas referir a um conceito modelar primitivo; é um αναφειρειν e προσειοιχεναι, como se diz no Fédon 74 c e 75 b. Dá-se com o conhecimento como se o Demiurgo, na sua atividade criadora, fitando as idéias, faz todas as coisas como imagens desse paradigma ou Idéia–modêlo. (Tim, 29ass.).

Os analogismos que, segundo o Teeteto (186 a-c) conduzem à compreensão do ser e do valor, não são uma como comparação e um cálculo, condizente a algo de comum, uma abstração, no sentido moderno da palavra, mas se realizam em função do eidos, do qual participa todo ser particular sensível. Isto é o logos, que é quem, primeiro, transforma a percepção em conhecimento, da essência e dos valores. Pela expressão αναλογιζεσθαι no Teeteto 186 a . 10 e c.3, deve-se tomar o λογοζ, strictu sensu, como o que primária e principalmente torna possível o verdadeiro conhecimento. Todo conhecimento se dá ανα τον λογον, é conhecimento analógico.

γγ) Analogia.

— Com esta participação, dos muitos seres semelhantes, do paradigma-, do eidos ou do logos, onde todos haurem o seu sentido e, do qual, por sua vez, recebem a semelhança e unidade, estamos, no núcleo central da doutrina da analogia entis. É do mais puro platonismo e assim o permaneceu, apesar dos acréscimos provenientes da matemática, com a analogia de relações múltiplas. O sentido original está sempre presente. Assim, quando a Idade-Média quis elucidar o conceito de participação, cita, inúmeras vezes, o princípio, segundo Aristóteles (Met. a, 1) de que o ser "em-si" e o verdadeiro "em-si" é causa de todo ser e de todo verdadeiro existente. (Sum. Teol. 1,44,1).

Ora, isto é pensamento tipicamente platônico; pois a doutrina aristotélica, de que o ser-em-si, i.é, o perfeitíssimo, é a causa do nome e do conceito dos outros seres, (que lhe são semelhantes, é uma expressão típica da doutrina das idéias, donde até o exemplo de calor é tirado de Platão (Féd. 103c-105c).
 
O ser por excelência é o "própria" e "verdadeiramente" ser. Tudo o mais recebe dele a sua denominação, e_só por imagem, por participação, por "analogia". No seu escrito "Sobre as Idéias", parece Aristóteles referir-se a uma fundamentação da doutrina das idéias, onde se teria afirmado: "As coisas entre si semelhantes, o são porque lhes está presente um ser uno e sempre o mesmo, que, em sentido próprio (χνριωζ), constitui o Ser. E este é a idéia. (frg. 4 Ross).( É, na realidade, a posição fundamental de Platão: Ser, no sentido próprio, participação, analogia. Totalmente dentro do mesmo sentido, pôde Sto. Tomás dizer: Haec est enim natura onmis analogi, quid illud, de quo primo dicitur, crit in ratione omnium, quac sunt post, sicut sanum, quod prius dicitur de animali quam de urina et medicina. Quando Platão colocou a sensibilidade entre as Idéias, fundou êle a  analogia  entis. É a expressão para significar o primado da Idéia sobre a sensibilidade.

Mas, embora fique assim delimitado o papel da sensibilidade para o nosso conhecimento — os sentidos já não são a cama, mas apenas a ocasião — contudo, significam tanto a participação como também o paradigma e a analogia, por sua vez, uma união da sensibilidade e do espírito, e também do fundamentado com o que fundamenta, o Anhypótheton. _Só um conceito deficiente de "metafísica" e de "transcendente — metafísica como o "além", o absolutamente inacessível, — conduz a uma teoria dos dois mundos totalmente separados, χωρισμοζ, quando, na realidade, só se pensava na separação modal, uma separação entre ser fundamento e fundamentado, de acordo com sua essência. Modificação que leva tanto à separação quanto à unidade.

δδ) Platão e Kant.

— É fecundo de ensinamento, para a nossa questão, comparar Kant e Platão. Ambos os pensadores trabalham com fatores apriorísticos. Mas, enquanto que para Kant só as formas são a priori, para Platão também o são os conteúdos delas. Para Kant, o conteúdo das idéias deve realizar-se; para Platão, eles já estão nelas realizados, o que não quer dizer que o nosso saber, a respeito delas, já esteja elaborado. Ao contrário, devemos, num debate dialético sempre renovado, apurar-lhe sempre e cada vez mais o conteúdo, apesar da contemplação da Idéia. Para Kant os sentidos, realmente,  fornecem o material para o conteúdo do conhecimento; para Platão, eles nada contribuem para esse conteúdo. Kant estabelece uma união entre o empirismo e o racionalismo; Platão é puro racionalista.

δ) Doxa.

— Se o homem, no seu conhecimento, não se alça ao mundo das Idéias, mas fica encerrado no mundo da intuição sensível como tal, então o seu conhecimento não é ciência, mas apenas opinião (δωξα). Pois, se o conhecimento se limita ao mundo sensível e só nele se apóia, então fica no reino do mutável e nunca pode chegar a um conhecimento real, por não poder alcançar proposições e verdades eternas e idênticamente subsistentes. Como Hume, mais tarde, caracteriza como fé (belief) o conhecimento científico de natureza puramente empírica, já Platão o designava, como pura crença (πιστιζ). E ambos se fundam na mesma reflexão, que nós não podemos estar certos sobre a constância dos fenômenos naturais.

Um segundo fundamento para que um conhecimento seja eventualmente apenas opinião, está na falta de uma intuição direta do verdadeiro conteúdo das coisas. Podemos, ocasionalmente ou por um "favor divino", atingir a verdade; mas se nada sabemos da conexão dos seus fundamentos, não é isso nenhuma, ciência certa, mas apenas adivinhação ou acidente feliz. Mas isto não oferece nenhuma sólida garantia. Platão, porém, concede devamos nos contentar com isso, em se tratando da grande multidão dos homens. Se a verdadeira opinião é casual, e portanto não é verdadeira ciência, é ela contudo mais que o não saber. O ideal, porém, está na intuição das eternas e imutáveis verdades, das idéias e dos conceitos.

c)    Objetos da verdade — As Idéias

Aos conceitos a priori do nosso espírito correspondem os respectivos objetos. Este mundo de objetos interessa Platão tanto como a questão da fonte da verdade. Como particularmente ricos no que se refere às Idéias e ao mundo das Idéias, consultem-se as passagens, já clássicas, do Fédon: 74a-75d (o igual-em-si "ao lado"’ das coisas iguais e a sua alteridade); 99 d-105 c (a segunda viagem); República, 596 a até 597 e (os três modos do ser: imagem, coisa-natural, idéia); 509 d até 511e (alegoria das linhas) 507d-509b (idéia do bom-em-si e a   alegoria do sol)   511a-516c   (alegoria da caverna).   Timeu27b-29b (os paradigmas para o demiurgo); Sofista 251a-259d (comunidade das idéias e a dialética); Parmênides 130e-135b (auto-crítica); Timeu 51. b-52d (Resumo).

α) Realidade das Idéias.

Platão estabelece, expressamente, que a imutabilidade do nosso conhecimento intelectual  provém da sua apreensão de objetos já por si absolutamente imutáveis: "A alma comporta-se sempre do mesmo modo em relação ao seu objeto, por apreender objetos dotados também dessa mesma imutabilidade" (Fédon, 79 d). São aqueles objetos ‘-que trazemos sempre em nossa boca": o belo em-si, o bem em-si, a saúde em-si, a forca em-si, a igualdade, a grandeza e a pequenês em si; em geral toda essência, Estes objetos se revestem da particularidade de "nunca, de nenhum modo, suportarem a mínima mudança, qualquer que ela seja" (Fédoti, 78 d). São algo de uniforme eterno, imortal, divino. São as suas Idéias (ιδεαι, ειδη, μωρφαι, αντα τα πραγματα). A palavra ‘"Idéia" tem ainda uma dupla significação; num sentido, é pensamento (Idéia subjetiva), ou então ela é o objeto que nós pensamos (Idéias objetivas). Da Idéia nesse primeiro sentido falamos quando tratamos das fontes da verdade. Da idéia no segundo sentido tratamos agora, quando encaramos o mundo dos objetos da verdade.


Que Platão admitiu as Idéias é sabido, mas, apesar disso, é preciso que o certifiquemos, porque a interpretação neo-kantiana de Platão o explicou como se as Idéias nenhuma realidade objetiva tivessem. Segundo os homens dessa escola (Natorp, Cassirer, Bauch, Hönígswald), as Idéias também são, certo, objetos do conhecimento; mas são "objetos" rio sentido em que Kant considera o objeto, i. é, são posições ou criações do pensamento. Não é o pensamento que previamente os encontra, mas são criados em função das atividades próprias do pensamento. As Idéias vivem no espírito como filhas dele, a êle subordinadas e não ao contrário.

Esta é, de novo, uma típica transformação moderna das Idéias. Nenhum grego as concebeu assim. Êle concebe o ‘"objeto" sempre em sentido realista, como oposto ao pensamento; e não só a um pensamento momentâneo, senão ao espírito como tal. O homem antigo não se alça a ponto tal, que devesse o mundo se dirigir por êle. É êle, o espírito, que se dirige de acordo com o mundo. "Há ainda seres superiores ao homem" (Et. Nic, 1141 b1).    Donde resulta, pois, o serem as Idéias platônicas algo de real; e por elas entendemos aquelas realidades que, ge revelam como objetos, eternamente imutáveis, do verdadeiro conhecimento, à base de uma contemplação preexistente no pensamento puro. A palavra "contemplar" exprime, talvez de maneira mais clara, que a Idéia objetiva é algo diferente do espírito,  puro e simples,   e das suas funções.

β) Propriedades das Idéias.

— A Idéia platônica não está sujeita ao espaço nem ao tempo, é imutável, e acessível só ao pensamento. Mas, vejamos antes de tudo qual a realidade de que ela é dotada. É claro que não é a realidade sensível, espacio-temporal (res extensa). Também não lhe convém nenhuma realidade psíquica, (res cogitans). No Symp. 211 a 7, expressamente se afirma que a Idéia não é nenhum pensamento atual ou saber. A sua realidade é, antes, ideal. Ora, em que consiste a realidade ideal, podemos sabê-lo, pondo-nos em contato com os conceitos matemáticos e lógicos. Proposições como: duas vezes dois são quatro, a da soma dos ângulos de um triângulo igual a dois retos, e outras, não podem ser alteradas por nenhum poder do, mundo. De nenhum modo estão sujeitas ao tempo. Seria insensato perguntar quando começaram a valer e se cessarão de ter valor, se desaparecesse totalmente o mundo. Nem mesmo um deus poderia alterar-lhes a cogência. São "proposições mesmo para Deus"  (Bolzano).

γ) ”Mundus intelligibili"

— Esta realidade ideal é mais consistente que qualquer outra realidade; pois ainda que o mundo material já há muito tempo tivesse deixado de existir, essas proposições sempre subsistiriam. Por isso, não são simplesmente "conceitos" que reduzem a uma fórmula esquemática geral o conteúdo de um pensamento do real. Pois então existiriam temporalmente, como se dá com um ato de pensamento. Mais, elas garantem os supremos planos estruturais do mundo, sem, de seu lado, dependerem deles. Elas são o ser de todo existente, ou melhor dito, são o coração das coisas. o mundo material se altera, tem o seu peso próprio, transvia-se e falha; e ainda, é dominado e dirigido pela "astúcia da Idéia", como o dirá HEgeL, mais tarde. Platão chegaria mesmo a dizer que este inundo material só vive graças às Idéias.

αα) Caráter real do mundo das Idéias.

— Donde o ver PLATÃO, na realidade ideal, a verdadeira realidade, o οντωζ ον.
Como para Leibniz, para êle o círculo verdadeiro não é o traçado no papel, mas o círculo ideal. Só este é regido pelas leis do círculo. O primeiro não realiza as suas condições, por serem as suas linhas extensas, e não poder êle ser perfeitamente redondo; e o mesmo se dá com todas as outras Idéias. Porventura já existiu algum homem, que tivesse plenamente ‘ exaurido a Idéia de homem, que fosse um homem absolutamente perfeito? ou não deixariam, no reino da natureza, as plantas, as flores, os animais e ainda os corpos inanimados, apesar do número infinito de seus indivíduos, ainda lugar a que sempre novos indivíduos viessem estender o reino da Idéia de espécie, exatamente por ser essa Idéia inexaurível?

E é ela inexaurível, por ser unicamente ela a perfeita, verdadeira e própria realidade, enquanto todas as outras realidades, por mais que se esforcem, pela imitar, só conseguem fazê-lo aproximadamente, sem lhe conseguir o valor e a essência própria. "Todo o mundo sensível tende a ser como o mundo das Idéias, sem contudo o conseguir, ficando-lhe sempre inferior" (Fédon, 75 b); E também por causa da sua rica, produtiva fecundi-dade, é o mundo das Idéias a mais forte realidade. Por isso, distingue ainda Platão o mundo ideal (κοσμοζ νοητοζ,  mundus intelligibilis) do mundo visível (τοποζ ορατοζ, mundus sensi bilis), e só considera aquele como o verdadeiro mundo em sentido próprio; e o segundo, como uma simples cópia, intermediário entre o ser e o não-ser.

Todavia, embora aproximássemos ao mundo das proposições matemáticas o sentido da realidade ideal, não estaríamos entretanto de acordo com a concepção de Platão, se considerássemos a Idéia somente como valor, conforme o fêz Lotze. Pois,’ó moderno conceito de valor significa uma certa atenuação do grau da realidade, por ter-se o pensamento moderno habituado a ver, na realidade física, a realidade propriamente dita. O contrário se dá com Platão, para quem a realidade ideal não é uma atenuação de grau, da realidade, mas a realidade perfeita e rica.

ββ) Dois mundos?

— Não devemos representar essa pronunciada realidade como se se tratasse de dois mundos, totalmente separados um do outro. Há, para Platão, uma unidade do ser. Mas êle distingue, nesse ser . único,  várias modalidades: o ser-imagem, o ser-coisa-da-natureza-e-da-arte, o ser-idéia. Este último constitui a mais profunda realidade, o ser "verdadeiro" e "próprio", por cuja presença (παρονσια) os outros seres têm  o ser, participam  (μετεξιζ)   do ser, diz PLATÃO. Êle se manifesta na auto-experiência do espírito e das suas eternas verdades e valores. Habitus principiorum dirá mais tarde a Idade Média, vendo nele, ao mesmo tempo, uma certa participação tia luz divina. Com este espírito, o homem ultrapassa toda experiência temporal, entrando num mundo a temporal, sem perder, por isso, este nosso mundo sensível e sem refugiar-se num mundo inteiramente outro e de todo inconcebível. Ao contrário, êle o apreende em seus fundamentos. Há, em Platão, uma imanência do transcendente. A doutrina das Idéias é uma análise da modalidade.

Como Platão expressamente o assevera (Tim, 51b ss), a doutrina das Idéias vem a ser a compreensão crítica, por força do comércio com esse nosso mundo de experiência sensível, de que o dado sensível é incerto e vacilante, ao passo que os datado espírito, certos e atemporais, conduzem-nos ao conhecimento do mundo das Idéias. Mas se o entendimento é algo diverso da contemplação sensível, então o ser que lhe é paralelo, o ser noético-eidético, é o ser "certo" e "verdadeiro". Essas modalidades do ser, êle as descobriu no ser existente e ao lado do mesmo. Sublimou-as e as denominou "Idéias". Essa foi a sua análise das modalidades, e tudo isso constitui o κωρισμοζ.

γγ) Conteúdo do mundo das Idéias.

— No concernente ao conteúdo deste mundo das Idéias, Platão, a princípio, falou apenas do Bem em si, do Belo, do Justo, e de outros ideais ético-estéticos. Mas já no Fédon há também Idéias de relações logico-ontológicas; assim a Idéia do Igual, do Diverso, do Contrário, e, finalmente, Idéias de todas as essências em geral. E assim estende a doutrina das Idéias a todo o reino do ser, como também à natureza e à arte; pois essências em toda parte se encontram. Se Platão no Parmêmdes (130cd) e no Sofista (227 ab) exprime-se como admitindo, coagido pela necessidade, também uma Idéia, do cabelo, da sujeira, do piolho e de outras coisas repugnantes, percebe-se por aqui, claramente, como a doutrina das Idéias, para êle, foi primitivamente uma doutrina dos Ideais; mas não devemos pensar que, assim, alterou, na velhice, o caráter da sua teoria das Idéias. Apenas exprime agora, mais claramente, o que já no Fédon poderia tê-lo dito; pois já aí Idéia é, para êle, tudo, sem exceção, que nós"assinalamos" com as expressões "em si" ou "essencialidade",   portanto uma  "determinação   de  essência"   (75 d).

δδ) Idéia de Satã?

— Conseqüentemente, também deveria por certo admitir, no sentido moderno de falar, uma Idéia de Satã. Mas, na realidade, adapta-se ela, no mundo das Idéias, à Idéia do Bem de que finalmente participaria? Tocamos assim, de novo, no problema já formulado acima (pág. 111), de saber se todo ser também deve, na realidade, identificar-se com o bem. Vê-se como a concepção platônica, aqui, considera um ser totalmente determinado, que, como "bom" e "verdadeiro", é separado do espírito, que subsiste ao lado, como uma espécie de razão divina e criadora. Ao lado desse de-ver-ser, precipita-se Satanás na realidade da noite e da treva, que também é realidade, por estar entre o não-ser e o ser, sem que porém seja ainda ser. Mas, na medida em que esse decaído pressupõe o ser e a êle se liga, e dele se afasta — pois, do contrário, nada seria. — deixa subsistir, aqui, algo de ideal. 

E por isso Sto. Agostinho pôde escrever no espírito de Platão: proinde nec Ipsius diaboli natura, inquantum natura est, malum est, sed perversitas eam inalam fecit (De Civ.Dei XIX, 13).

δ) Mundo da ciência.

— O mundo das Idéias é, para Platão, como o mundo no sentido próprio — ao mesmo tempo mundo da ciência e da verdade. Lembremo-nos do lugar já citado do Fédon, onde se diz que a alma, entregue a si própria, e esforçando-se por conhecer o ser, é isenta, de erros, pois que então ela se move no reino de objetos sempre idênticos consigo mesmos. "E este seu estado se chama ciência” (79 d). O mundo das Idéias é o mundo natural da verdade; ai se harmonizam os princípios científicos e as leis, e não no mundo da experiência sensível. Protágoras disse (fr. 7) qne o teo-rema das tangentes não é válido porque ela (a tangente) toca sempre em mais de um ponto a linha circular que traçamos. Relativamente ao mundo fenomenal êle tem razão, e, contudo, não deixamos de admitir o teorema como verdadeiro. 

Mas, com isto mesmo, provamos          que devemos admitir um outro mundo objetivo ideal, diverso do mundo objetivo sensível externo. Demais, isto não se dá só com as matemáticas. Toda a ciência da natureza conta com tais valores médios. Mas, o aceitá-los implica em. abandonar o mundo do puro factício. Se nos apegarmos a este, então devemos nos ater aos resultados a que, de fato, chegarmos pela experiência particular. Só eles nos oferecem dados positivos. Mas, com os referidos valores médios,  transporemos os dados positivos.    Se, p.  ex., fixarmos o peso específico do antimônio, então chegaremos, de ordinário, a um número diferente de 6,72. Encontraremos um número ora mais alto, ora mais baixo. Só esses resultados diversos encontramos, de fato, como dados realmente positivos.

O valor médio, ao contrário, nós o obtemos por cálculo, e assim êle constitui, em face da realidade sensível e das suas exigências, um como que golpe de Estado. Introduzimos assim um mundo ideal que assume o lugar do dado positivo. E isto se dá com todas as aquisições da ciência da natureza e, portanto, não só com as ciências ideais. Platão foi o primeiro a descobrir este mundo da ciência e da verdade, e a romper, não somente com o juízo vulgar, mas também com o sensualismo e o positivismo, para os quais o objeto da ciência está no mundo das aparências sensíveis imediatas. Muito tempo antes do neo-positivismo do círculo vienense ter considerado como "problemático" o "dado imediato", com que o positivismo quis fundar a ciência, já Platão tinha visto que o "dado imediatamente sensível pela experiência" é inexistente para a ciência.

 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
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