Publicado em 16/09/2012 por TheGravicembalo
http://www.amazon.com/Caccini-Nuove-Msuiche-Hybrid-SACD/dp/B0009POOQM
Sexta, 25 de maio de 2007
A subjetividade humana na sociedade de indivíduos. Entrevista especial com Benilton Bezerra
Na manhã do terceiro dia do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Uma platéia atenta assistiu à conferência O futuro da autonomia e a construção de uma sociedade de indivíduos. Uma leitura psicanalítica,
conduzida pelo professor Benilton Bezerra Jr., da UERJ. Em sua
brilhante explanação, Bezerra falou sobre o impacto da autonomia e do
individualismo na subjetividade humana. Para ele, nós vivemos, hoje, uma
situação paradoxal. “Livramo-nos da pressão da tradição, no desejo de
sermos autônomos. Afirmamo-nos como indivíduos quando colocamos a
tradição em segundo plano”. No entanto, paradoxalmente, “somos escravos
de modelos que nos ensinam como devemos agir para sermos indivíduos mais
auto-suficientes e vencedores em nossas atividades diárias”. “Ser
indivíduo é seguir um modelo que nos é imposto”, explica o palestrante,
ao constatar que hoje o individualismo vive uma exacerbação, uma vez que
a modernidade inventou que cada sujeito se constrói a si próprio.
Ao abordar o tema do Simpósio em geral, Bezerra
esclareceu que a autonomia é uma das facetas do individualismo. “Ela nos
transformou em autônomos de forma que tudo na vida se torna opção
individual. Paradoxalmente, nunca uma cultura teve tão forte a
experiência da desassistência. Há sempre um expert em tudo. Nossa
existência se tornou banalidade.”
O “Terceiro” indivíduo, o elemento poderoso em nossa vida, que tinha
um poder inquestionável, tornou-se “líquido”, utilizando a terminologia
de Zygmunt Baumann. “E é isso o que possibilita a
exacerbação da autonomia. Desaparece o impossível, a noção do limite.
Hoje o assombro diante das coisas é cada vez menor”, esclarece o
professor da UERJ.
Ao descrever a sociedade da imagem, Benilton Bezerra afirmou que
“hoje importa muito mais parecer ser alguma coisa. Vivemos na sociedade
da imagem, do espetáculo, da exibição. Temos que estar sempre sorrindo,
sempre felizes, sempre bem, passando essa imagem de bem-estar e
felicidade”.
O professor explicou também o conceito de subjetividade somática,
pelo qual cada vez mais tendemos em radicar em nosso corpo a nossa
individualidade. “Vemos uma proliferação de modificações corporais. Esse
fenômeno cultural mostra a necessidade do ser humano de ser singular.”
Outro conceito importante trazido pelo professor Benilton Bezerra Jr. é o
da cultura do sujeito cerebral, que está emergindo em nossos dias.
“Tendemos a pensar nossa subjetividade orientada pelo cérebro, que passa
a ser o sujeito de nossas ações”.
Confira, a seguir, uma entrevista especial realizada pela redação da IHU On-Line com o professor Benilton, logo após sua conferência no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
IHU On-Line - O senhor pode descrever um pouco a situação paradoxal em que vivem os indivíduos da sociedade contemporânea?
Benilton Bezerra Jr. - Esse paradoxo pode ser
descrito de duas maneiras. Uma primeira em relação ao individualismo e
uma segunda em relação à autonomia. Em relação ao individualismo, o
paradoxo consiste no fato de que o valor do indivíduo e do
individualismo surgir no momento em que as pessoas começaram a se
desvencilhar das marcas e das determinações da tradição, da religião, da
família. O indivíduo propriamente dito surge na modernidade, como
alguém que se funda, se constitui a si próprio na sua trajetória pessoal
durante a vida. Você faz aquilo em que irá se reconhecer como sendo
seu. Na origem, o individualismo é uma tomada de posição, uma abertura
de possibilidade para que o sujeito confronte a tradição, a
determinação. O paradoxal hoje é que isso, que antes era algo subversivo
em relação à realidade social prévia, virou a norma, a ideologia
dominante. Todo mundo precisa ser indivíduo e ser singular. É uma
obrigação, não é mais uma conquista. Com isso, temos essa situação
paradoxal de que o indivíduo que se constituiria por contraste à
tradição é agora instado a se construir conforme a tradição do
individualismo. Trocamos uma servidão por outra. A diferença é que,
antigamente, você era filiado inequivocamente a coisas que tinham uma
dimensão simbólica muito mais ampla. Hoje em dia, esse individualismo
não se constrói pela adesão a algum valor mais alto. Não são ideais; são
modelos. Não são princípios em relação aos quais você se mede; são
modelos que você tem que repetir.
Do lado da autonomia, o paradoxo consiste no fato de que, com o
desenvolvimento do individualismo e da radicalidade da crítica moderna a
todas as determinações sobre os indivíduos, hoje em dia, vivemos uma
cultura na qual, de fato, as pessoas se sentem cada vez menos
submetidas, de maneira superior a sua vontade, a princípios, normas,
valores, etiquetas e ideais. Todos nós somos mais autônomos do que nunca
para fazermos as nossas escolhas. Tudo depende das escolhas que
fazemos. Isso aparentemente faz com que devêssemos nos sentir mais
autônomos, mais capazes de decidir. Mas curiosamente – aí é que está o
paradoxo – numa cultura onde todo mundo é autônomo, a grande parte das
pessoas se sente desassistida, precisando da assistência de alguém que
diga o que deve fazer, qual é a escolha certa. Aí entram os experts em
tudo, com o “discurso competente”, que explicam à mãe se ela deve ou não
dar comida de sal “na marra”, ou se deixa o filho escolher, explicam
que tipo de roupa é adequada para suas pretensões sociais, que tipo de
música se deve escutar. Isso causa uma espécie de enfraquecimento de
algo fundamental na vida de todo mundo que é a possibilidade de sentir a
marca pessoal nas escolhas. Nós nos sentimos instados por uma força
anônima, que nos conduz a querer fazer as coisas certas, adequadas.
IHU On-Line - O que caracteriza a exacerbação do individualismo e quais as conseqüências disso para a subjetividade dos indivíduos?
Benilton Bezerra Jr. – Esse fenômeno tem a ver com o
fato de o indivíduo dispensar qualquer referência a um estatuto
simbólico de uma força transcendente, da política, ou da religião. O
sujeito tenta acreditar que pode viver plenamente no plano puro da
imanência do cotidiano, das escolhas feitas a cada momento. Essa
exacerbação tem um efeito muito importante entre muitos: é o fato de que
isso modificou bastante os nossos ideais de felicidade, de realização
pessoal. O que antes – na modernidade e na pré-modernidade – era medido
com a referência a certos padrões e expectativas vinculadas a itens
simbólicos, hoje está cada vez mais vinculado à posse, à conquista e à
fruição de objetos. Esse individualismo levado ao extremo faz com que o
sujeito se veja sempre numa espécie de luta incessante para poder se
reafirmar, não pela filiação a algo maior do que ele, mas pela posse
contínua de bens que têm uma insígnia fálica, com uma obsolescência
social e psicológica muito rápida. Você compra qualquer coisa e aquilo,
em pouco tempo, está obsoleto. É a busca por qualquer coisa que nos dê
socialmente a imagem de sucesso. Por isso, essa adesão frenética a
dietas e todo esse cultivo do corpo.
IHU On-Line - O senhor fala em uma outra forma de sociabilidade humana. Como seria essa nova sociabilidade, essa outra forma do ser humano?
IHU On-Line - O senhor fala em uma outra forma de sociabilidade humana. Como seria essa nova sociabilidade, essa outra forma do ser humano?
Benilton Bezerra Jr. – Um dos traços dessa nova
sociabilidade é a importância cada vez maior concedida à corporeidade, à
dimensão somática da existência pessoal, nas trocas entre as pessoas.
Por exemplo, a questão da imagem do corpo vem sendo cada vez mais
importante em detrimento das características psicológicas e dos valores.
É a moralização crescente dos atributos físicos. Outro traço dessa nova
sociabilidade é o que alguns autores chamam de biosociabilidade: o fato
de que, nessa mesma esteira da importância do corpo, temos a construção
de identidades a partir de itens que são referidos ao corpo. Outro
aspecto dessa nova forma de subjetivação é o lugar dos objetos na vida
do sujeito em relação a si próprio e em relação ao outro. Os objetos
passam a ser uma parte importante da construção da própria identidade. E
também numa sociedade e numa cultura onde todos estão numa luta
incessante pela posse de objetos que não são para todos, o outro passa,
cada vez menos, a ser visto como semelhante e cada vez mais a ser, das
duas, uma: ou um espelho, no qual eu fico me reconhecendo, ou um rival,
que disputa comigo a posse daqueles bens que são escassos.
IHU On-Line – Qual é o futuro de uma sociedade assim?
Benilton Bezerra Jr. – Não podemos dizer, porque
acontecem mudanças na história que são imprevisíveis. Ninguém previu a
queda do muro de Berlim em 1989. Ela precipitou mudanças, da mesma forma
que ninguém previu a invenção da internet e ela está mudando também a
nossa vida social. O que podemos dizer é que, quaisquer que sejam as
mudanças profundas que aconteçam, nós podemos, pelo menos, apostar na
idéia de reconquistar a atividade política no sentido mais amplo da
palavra: a política entendida como o engajamento na reflexão e na ação
que visa a construção de existências pessoais e coletivas mais
desejáveis no futuro. É o exercício de imaginar cenários mais desejáveis
no futuro do que o presente, tanto no plano pessoal quanto no plano
coletivo.
IHU On-Line - Onde fica, nessa sociedade individualista, a solidariedade, a fraternidade e os valores cristãos?
IHU On-Line - Onde fica, nessa sociedade individualista, a solidariedade, a fraternidade e os valores cristãos?
Benilton Bezerra Jr. – O que pode alavancar uma ação
que permita o pensamento crítico e o uso consensuado das tecnologias é a
presença, no imaginário social e na prática subjetiva, de certos
valores que transcendem esse plano da imanência do uso dos objetos, da
fruição, das sensações. Esse é o desafio não só do cristianismo, mas do
budismo e do pensamento político laico, que também perdeu suas
referências. A grande política, a política laica, mesmo atéia do século
XVIII para cá, é herdeira dessa transcendência religiosa. O cristianismo
foi o primeiro movimento humano a inventar essa idéia de que todos são
iguais. E isso está na base do pensamento democrático. O desafio do
cristianismo hoje é conseguir estar à altura desse tipo de questão e
como responder a esse desafio mantendo algum equilíbrio com a
necessidade de auto-preservação da instituição Igreja, com suas regras.
IHU On-Line - Se não são mais os mesmos ideais e sonhos que unem os seres humanos, o que nos une e faz de nós seres iguais?
Benilton Bezerra Jr. – A verdade verdadeira é que nós não somos iguais. Somos todos muito diferentes.
IHU On-Line – Então, hoje o que assemelha os seres humanos é a preocupação com os próprios interesses individuais?
Benilton Bezerra Jr. – É, o que torna todo mundo
incapaz de compartilhar de horizontes coletivos. O que pode reabrir a
possibilidade de compartilharmos horizontes coletivos é, por exemplo, a
salvação do Planeta. De fato, nunca houve antes o reconhecimento de que,
ou agimos em comunhão para salvar a Terra, ou vamos acabar com ela.
Isso é recente. Não é papo de “verde”, de um grupelho de pessoas. É uma
questão fundamental, pois está no centro da possibilidade da gente
prosseguir vivendo.
IHU On-Line - O senhor poderia explicar a cultura do sujeito cerebral? Qual sua relação com a subjetividade humana?
Benilton Bezerra Jr. – O termo “sujeito cerebral” foi criado por um colega do Instituto Max Planck, de Berlim, Fernando Vidal.
Aparece também sob outras designações, como “homem cerebral” e “homem
neuronal”. São várias formas de apontar para uma realidade
antropológica, que é essa em que, cada vez mais, as pessoas vão
identificando-se com o próprio cérebro. Ou seja, o cérebro vai se
tornando não apenas um órgão corporal. Ele passa a ser pensado e sentido
como a sede da nossa identidade. Eu não sou mais uma pessoa que tem um
cérebro. Eu sou um cérebro que me faz pela experiência de ser uma
pessoa. Isso se expressa em várias dimensões. Há uma dimensão teórica
que tenta fazer do cérebro o denominador comum dos fenômenos mentais,
sociais, antropológicos, etc. O cérebro passa a ser uma espécie de
personagem, um ator social. O que atribuíamos ao sujeito, passa a ser
atribuído ao cérebro. De forma prática, isso se expressa pela quantidade
cada vez maior de intervenções biológicas na subjetividade, sobretudo
medicações, e também com a introdução de novas tecnologias de
intervenção.
IHU On-Line – Como o senhor avalia os temas discutidos no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
Benilton Bezerra Jr. – Esse é o tipo de iniciativa
que precisa ser reduplicada e difundida ao máximo. É disso que sentimos
falta: poder juntar essas pessoas para discutir questões comuns e que
transcendem às competências específicas de cada grupo.