IV -
1. A HIPÓTESE DO ARQUÉTIPO
222 A
ordem em que se sucedem os Símbolos de fé ilustra o modo pelo qual a
idéia da Trindade evoluiu no decurso dos séculos. Tal evolução evitou de
forma coerente, ou combateu com êxito todos os desvios racionalistas,
como p. ex. a plausível heresia ariana. Ela levantou em torno das
alusões trinitárias originais, contidas na Sagrada Escritura, um
arcabouço de idéias que constitui uma petra scandali [pedra de
escândalo] para os racionalistas liberais. Mas as proposições
"religiosas" nunca são racionais em sentido corrente, pois elas têm
sempre em mira aquele outro mundo, o mundus archetypus [mundo
arquetípico] de que a inteligência comum, que só se ocupa do exterior,
não toma consciência.
Assim,
o desenvolvimento da idéia cristã da Trindade reconstituiu
inconscientemente ad integrum [integralmente] o arquétipo da homoousia
entre o Pai, o Filho e o Ka-mutef, que aparece pela primeira vez na
teologia real egípcia. Não que a concepção egípcia fosse como que o
arquétipo da idéia cristã.
O arquétipo em si, como expliquei em outra parte1,
não é um fator explícito, mas uma disposição interior que começa a agir
a partir de um determinado momento da evolução do pensamento humano,
organizando o material inconsciente em figuras bem determinadas2,
ou, mais precisamente, reunindo e ordenando as representações divinas
em tríades e trindades e um sem-número de usos rituais e mágicos em
conjuntos ternários ou em grupos de três membros, como as fórmulas
apotropaicas, as bênçãos, os louvores, etc.
O
arquétipo, onde quer que se manifeste, tem um caráter compulsivo,
precisamente por proceder do inconsciente; quando seus efeitos se tornam
conscientes, se caracteriza pelo aspecto numinoso.
É
a este caráter numinoso compulsivo do arquétipo e à enorme dificuldade
de enquadrá-lo no mundo da racionalidade humana que se deve a existência
de todas as discussões vazias, sofisticações, disputas verbais,
intrigas e violências, que empanam a face da história do dogma da
Trindade; nunca porém são as sutilezas conscientes - muitas vezes
responsabilizadas de eriçar a especulação trinitária.
Embora
os Imperadores, por razões políticas, se tivessem apropriado da disputa
trinitária, pondo-a a serviço de seus próprios objetivos, esta faixa
singular da história do pensamento não deve ser atribuída a fatores de
ordem política, como também sua origem não pode ser atribuída a causas
sociais e econômicas.
O
único fator que a explica é o aparecimento da "mensagem" cristã que
revolucionou psicologicamente o homem ocidental. Segundo nos dizem os
Evangelhos e, de modo particular, as cartas de Paulo, ela se verifica
com o aparecimento real e verdadeiro do Homem-Deus na esfera cotidiana
do homem, acompanhado de todos os sinais miraculosos dignos de um Filho
de Deus.
Por mais obscuro que pareça
o núcleo histórico deste fenômeno
às exigências modernas de exatidão
em relação aos fatos, não deixa também de ser
verdadeiro que os efeitos psíquicos grandiosos
que se prolongam através dos séculos
não surgiram sem uma causa real.
Infelizmente,
os relatos evangélicos que devem sua existência ao zelo missionário dos
primeiros cristãos são uma fonte muito escassa, em termos de idéias,
para os que tentam uma reconstituição histórica dos fatos; mas eles
oferecem informações abundantes sobre as reações psicológicas do meio
ambiente daquela época.
Tais
reações e as informações anexas prosseguem dentro da história do dogma,
onde continuam sendo vistas como efeitos da ação do Espírito Santo.
Este modo de interpretar, cujo valor metafísico escapa ao psicológico, é
de máxima importância; com efeito, ele nos revela que havia uma opinião
ou crença dominante, segundo as quais o verdadeiro agente que operava
no processo de formação das idéias não era o intelecto humano, mas uma instância extraconsciente. Motivo algum de ordem filosófica deve levar-nos a ignorar este fato psicológico.
Certos
argumentos iluministas, como o de que "o Espírito Santo é uma hipótese
indemonstrável", são desproporcionais aos resultados da Psicologia.
(Mesmo uma ideia absurda é real,
apesar de seu conteúdo não ter sentido
A
Psicologia ocupa-se única e exclusivamente de fenômenos psíquicos.
Estes podem ter o mero aspecto de aparições, que podem ser estudadas a
partir de vários pontos de vista. Assim pois a afirmação de que o
Espírito Santo é o inspirador do dogma significa que este não provém de
uma sofisticação nem de meras especulações conscientes, mas é motivado
por fontes extraconscientes e mesmo extra-humanas.
Enunciados
como estes e outros semelhantes ocorrem geralmente em acontecimentos de
natureza arquetípica. Eles aparecem sempre associados ao sentimento de
presença de algo numinoso. O sonho arquétipo, p. ex., pode fascinar o
indivíduo a tal ponto, que ele se sente inclinado a tomá-lo como uma
iluminação, uma advertência ou uma ajuda sobrenatural. Nos tempos atuais
as pessoas em geral se acanham de revelar experiências desta natureza e
com isto denunciam a existência de um medo sagrado diante do numinoso.
Quaisquer que sejam as experiências com o numinoso, todas têm em comum a
circunstância de assentar suas fontes num plano extraconsciente.
A
Psicologia utiliza aqui, como se sabe, o conceito de "inconsciente" e,
de modo particular, de "inconsciente coletivo", em oposição ao de consciente individual. Quem
rejeita o primeiro, e só admite o segundo, vê-se obrigado a dar
explicações personalísticas. Mas as idéias coletivas e, de modo
particular, as de caráter manifestamente arquetípico, nunca derivam de
um fundo pessoal. Ao apelar para Engels, Mary, Lenin e outros, como seus
pais, o Comunismo simplesmente não percebe que está reavivando uma
ordem social arquetípica, que sempre existiu entre os primitivos. Assim
se explica seu caráter "religioso" e "numinoso" (isto é, fanático). Os
Padres da Igreja também não sabiam que sua Trindade tinha um passado
velho, de um milênio.
223 É indiscutível que a doutrina trinitária corresponde originariamente a uma ordem social de tipo patriarcal. Mas
não temos elementos para dizer se foram as condições sociais que
provocaram a idéia ou se, inversamente, foi a idéia que revolucionou a
ordem social. O fenômeno do Cristianismo primitivo e o aparecimento do
Islão - para só darmos estes exemplos mostram-nos o poder das idéias. O
leigo que não tem a possibilidade de observar de que maneira se
comportam os complexos autônomos, em geral se inclina a atribuir, em
consonância com a tendência mais comum, a origem dos conteúdos psíquicos
ao mundo ambiente.
Em
relação aos conteúdos representativos da consciência, não resta dúvida
de que esta expectativa é legitima. Mas, além destes conteúdos, também
existem as reações de caráter irracional e afetivo, bem como os impulsos
para uma organização (arquetípica) do material consciente. Neste caso,
quanto mais claro se torna o arquétipo, mais fortemente se faz sentir o
seu "fascinosum" e sua respectiva formulação como algo "demoníaco" (no
sentido de ser sobrenatural), ou como "divino". Tal afirmação significa
que se é dominado pelo arquétipo. As representações que estão na base
desta afirmação são, por sua própria natureza, antropomórficas e por
isto mesmo se diferenciam do arquétipo ordenador que, em si mesmo, não é
evidente, pelo fato de ser inconsciente.3 Tais representações mostram-nos, porém, que um arquétipo se tornou ativo.4
224 A
história do dogma trinitário representa, portanto, a manifestação
gradativa de um arquétipo, que organizou as representações
antropomórficas de Pai, Filho, Vida, Pessoas distintas, numa figura
arquetípica numinosa, ou seja, a "Santíssima Trindade". Ela é vista, pelos contemporâneos, sob aquele aspecto que a Psicologia designa pelo nome de presença psíquica extraconsciente. Se
existe, como aconteceu e acontece aqui, um consensus generalis a
respeito de uma idéia, então é licito falar de uma presença coletiva.
Semelhantes presenças são, p. ex., em nossos dias, as ideologias
fascista ou comunista, a primeira acentuando a posição de mando do chefe
e a segunda, a comunhão de bens da sociedade primitiva.
225 O
conceito de "santidade" indica que uma determinada coisa ou idéia
possui valor supremo, cuja presença leva o homem, por assim dizer, ao
mutismo. A santidade é reveladora; é a força iluminante que dimana da
forma arquetípica. O homem nunca se sente como sujeito, mas sempre como
objeto de tal acontecimento.5
Não é ele quem percebe a santidade; é esta que se apodera dele e o
domina; não é ele quem percebe sua revelação; é esta que se comunica a
ele, sem que ele possa vangloriar-se de a ter compreendido
adequadamente. Tudo parece realizar-se à margem da vontade do homem;
trata-se de conteúdos do inconsciente, e mais do que isto a Ciência não
pode constatar, pois em relação a uma fé ela não pode ultrapassar os
limites correspondentes à sua natureza.
1 Cf. minha exposição a respeito em: Theoretische Überlegungen zum Wesen des Psychischen.
2 Já
me perguntaram muitas vezes donde procede o arquétipo. E: um dado
adquirido ou não? É-nos impossível responder diretamente a esta
pergunta. Como diz a própria definição, os arquétipos são fatores e
temas que agruparam os elementos psíquicos em determinadas imagens (que
denominamos arquetípicas), mas de um modo que só pode ser conhecido
pelos seus efeitos. Os arquétipos são anteriores à consciência e,
provavelmente, são eles que formam as dominantes estruturais da psique
em geral, assemelhando-se ao sistema axial dos cristais que existe em
potência na água-mãe, mas não é diretamente perceptível pela
observação.
Como condições a priori, os arquétipos representam o caso psíquico especial do "pattern of behaviour" [esquema de comportamento], familiar aos biólogos e que confere a cada ser vivente a sua natureza específica.
Assim
como as manifestações deste plano biológico fundamental podem variar no
decurso da evolução, o mesmo ocorre com as manifestações dos
arquétipos. Do ponto de vista empírico, contudo, o arquétipo Jamais se
forma no Interior da vida orgânica em geral. Ele aparece ao mesmo tempo
que a vida.
3 A este respeito, veja-se minha exposição em: Theoretische Überlegungen zum Wesen des Psychischen.
4 É
muitíssimo provável que a ativação de um arquétipo se deva a uma
mudança nas disposições da consciência, que requer uma nova forma de
compensação.
5 Köpgen faz uma observação muito pertinente em: Die Gnosis des Christeniums, 1939,
p. 198: "Se existe algo semelhante à história do espirito ocidental.
deverá situar-se sob o seguinte ponto de vista: foi sob o influxo do
dogma da Trindade que despertou a personalidade do homem ocidental".
EDITORA VOZES. PETRÓPOLIS, 1979
www.scribd.com/.../Carl-Gustav-Jung-Interpretacao-
Psicologica-Do-Dogma- Da-Trindade-Vol-XI2-Doc -
Psicologica-Do-Dogma-
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. Sejam abençoados todos os seres.
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