Nietzsche - Humano Demasiadamente Humano - BBC - 51min.
Danilo Caymi - O Bem e o Mal - 3min.
...Dois corações...
...Um que é do mar...
...E um das canções...
...Um beijo doce...
...um cheiro de vendaval...
...eu guardo em mim...
...Um deus, um louco, um santo...
...Um bem e um mal...
A
Questão do Mal: uma Abordagem Psicológica Junguiana
Paulo
Bonfatti[1]
...
Ao pisarem em terra firme, veio ao seu encontro
(de Jesus) um homem da cidade, possesso
de demônios [...] Para guardá-lo prendiam-no
com grilhões e algemas, mas ele arrebentava
as correntes [...]. Jesus perguntou-lhe:
“Qual é o teu nome?”- “Legião”, respondeu...
LUCAS 8, 27-30
LUCAS 8, 27-30
1 – INTRODUÇÃO
O senso comum
tende, na maioria das vezes, a fazer uma dicotomia em relação aos
autores Sigmund Freud e Carl Gustav Jung quando se trata do fenômeno
psicológico religioso. De um lado, coloca Freud “contra” a religião
e considerando o fenômeno religioso com algo “patológico”. De outro,
Jung, a “favor” da religião e, quem sabe, um tanto “místico”. Esta
divisão, principalmente no que tange à Jung, nos parece um tanto
superficial e equivocada.
Indubitavelmente, Jung tem uma atitude muito mais positiva em relação às religiões. Contudo, não deixou também de apontar e reconhecer aspectos negativos no fenômeno religioso. Segundo suas observações, podemos ter experiências dentro de uma determinada religião de uma forma equivocada, onde esta é utilizada como um substitutivo de aspectos e vivências da psique (JUNG, 1983:58 e 71). Jung vê no fenômeno da experiência religiosa, uma vivência psicológica bastante significativa mas não nega que a mesma possa ser, por vezes, infantilizante ou deturpada.
O que mais nos
chama a atenção ao lermos a vasta e complexa obra de Jung, é que
quando ele trabalha a questão das religiões do ponto de vista psicológico,
muitas vezes o faz de uma forma bem mais crítica que o próprio Freud.
Suas colocações e elaborações teóricas são muito mais contundentes
e profundas do que a visão do pai da Psicanálise. Esta contundência
ocorre mesmo que ele veja a experiência religiosa como algo extremamente
rico do ponto de vista psíquico, independentemente de qualquer denominação
religiosa que ela ocorra – sendo que nem sempre ela só ocorreria
dentro de denominações religiosas.
Nesta contundência
de Jung, uma das construções mais inquietantes de sua teoria psicológica
acerca das religiões ocidentais, principalmente o Cristianismo,
talvez seja sua abordagem em relação a questão do mal. O que gostaríamos
de dividir com o leitor seriam justamente algumas considerações
e desdobramentos das idéias de Jung sobre esta questão.
A problemática
do mal sempre esteve presente na humanidade e certamente ainda não
foi achada uma solução definitiva para ela. Para aqueles que acreditam
nas doutrinas que falam das boas intenções, na caridade, na justiça
e no absoluto de Deus, a questão do mal é perturbadora. Para outros,
que não acreditam nestas doutrinas, assim mesmo o mal se manifesta
igualmente perturbador. A dimensão do mal possui esta característica:
é sempre perturbador para quem ele se apresenta. Ele é o que paralisa,
que causa pânico, medo, destruição e temor. É aquele que não temos
controle sobre ele, não sabemos o nome, não temos a certeza ou o
conhecimento. Se apresenta sempre perturbador, e apesar de sempre
se tentar, ninguém consegue evitá-lo.
Para lidar com
esta questão do mal, o Cristianismo elaborou teologicamente a doutrina
da Privatio Boni, que diz ser o mal uma privação do bem. Calcando
esta doutrina está a do Summum Bonum, que diz que Deus é o sumo
bem. Desta forma, o sumo bem só criou as coisas boas. As coisas
más são as que se afastaram do bem ou onde o bem foi diminuído.
Aqui o terrível e ameaçador mal é diminuído e controlado para
a tranqüilidade da consciência do ser humano.
Por ser tão
perturbador, o mal foi isolado e negado tanto na Teologia (Privatio
Boni) quanto no dia a dia das pessoas. Por ser tão perturbador,
o mal foi eliminado como referencial maior tanto na Teologia (Summum
Bonum) quanto no dia a dia das pessoas. Estas concepções teológicas
estão tão arraigadas no senso comum que poderíamos dizer que do
ponto de vista psicológico, e não só teológico, as doutrinas da
Privatio Boni e do Summum Bonum fazem parte do nosso cotidiano.
Acreditamos que esta concepção teológica seja quase onipresente
devido a nossa marcada herança do cristianismo na nossa cultura
ocidental.
O que estamos
nos propondo neste artigo é analisar esta concepção cultural em
relação ao mal para tentarmos buscar um novo ponto de vista. É importante
deixar claro desde já que não se trata de propor uma nova Teologia
e, muito menos ainda, de uma abordagem teológica. Mas sim, de uma
abordagem psicológica Junguiana sobre estas doutrinas da Privatio
Boni e do Summum Bonum.
Queremos mostrar
que se, em nível psicológico e não teológico, houver uma manutenção
polarizada da consciência baseada exclusivamente nestas doutrinas,
haverá uma paralisação do processo de maturação psicológica que
Jung chamou de individuação.
Queremos
também apontar que há uma necessidade psicológica de ver o mal com
outros olhos, de uma
maneira mais compreensiva. E que também, em nível psicológico, a
imagem psicológica
de Deus como o Summum Bonum é limitada e prejudicial à psique.
Para evitar possíveis enganos, é importante frisar mais uma vez que este artigo de psicologia Junguiana não se trata de uma crítica teológica e muito menos uma apologia do Mal.
Para evitar possíveis enganos, é importante frisar mais uma vez que este artigo de psicologia Junguiana não se trata de uma crítica teológica e muito menos uma apologia do Mal.
Na
primeira parte, há uma tentativa de perceber como é a visão das
doutrinas do Summum Bonum e da Privatio
Boni. Pedimos compreensão do leitor se, por vezes, esta parte lhe
parecer árida. Além da teologia
não ser nossa área, esta aridez se fez necessária à medida em que
queremos demonstrar o
quão marcantes são estas duas doutrinas ao longo da História do
Cristianismo. Para facilitar tal
percepção, fizemos um breve levantamento das obras de teólogos de
diferentes épocas e, na medida do
possível, em uma ordem cronológica.
Na conclusão, há a tentativa de se apontar, numa perspectiva psicológica, que o problema do mal não está no mal, mas na polarização da consciência naquilo que ela acredita ser o bem.
Na conclusão, há a tentativa de se apontar, numa perspectiva psicológica, que o problema do mal não está no mal, mas na polarização da consciência naquilo que ela acredita ser o bem.
2 – SUMMUM
BONUM E PRIVATIO BONI: UMA ABORDAGEM TEOLÓGICA SOBRE O MAL
No início, o
pensamento teológico cristão foi orientado à natureza de Cristo,
de como Ele “salvou o homem e ao relacionamento de Cristo com Deus
Pai”[2].
A cristologia ocupou quase que totalmente o pensamento da Teologia Cristã e a questão do mal não foi resolvida. Desta forma, ainda hoje não conhecemos nada de definitivo sobre a natureza do mal, dentro do cristianismo, como também são raras as declarações de alguma doutrina oficial com relação à problemática do mal[3].
A cristologia ocupou quase que totalmente o pensamento da Teologia Cristã e a questão do mal não foi resolvida. Desta forma, ainda hoje não conhecemos nada de definitivo sobre a natureza do mal, dentro do cristianismo, como também são raras as declarações de alguma doutrina oficial com relação à problemática do mal[3].
Apesar
de não haver nas igrejas cristãs uma concentração na problemática
do mal, esta não foi deixada
de lado. Ao contrário, sempre esteve presente entre os teólogos
cristãos, independentemente
de época, autor ou influência filosófica.
Não vamos colocar todas as abordagens sobre a questão do mal, ao contrário, tentaremos ver as duas grandes doutrinas que a Teologia Cristã advoga com grande aceitação.
Ao
tratar sobre as relações e as questões da dimensão do mal, estas
duas doutrinas se mesclam e se
interligam. Estamos nos referindo às doutrinas do Summum Bonum e
da Privatio Boni.Não vamos colocar todas as abordagens sobre a questão do mal, ao contrário, tentaremos ver as duas grandes doutrinas que a Teologia Cristã advoga com grande aceitação.
A primeira, Summum Bonum, é uma concepção de que Deus é totalmente bom, que é o sumo bem[4]. A segunda, Privatio Boni, coloca o mal à ausência ou à diminuição do bem do Deus totalmente bom[5].
O aparecimento da doutrina do Summum Bonum tem origem em um passado muito distante, mas isso não impediu, a nosso ver, que ela tenha sido a razão e a origem do conceito da Privatio Boni[6].
O conceito da Privatio Boni, ligado ao de Summum Bonum, encontra seu ápice em Basílio Magno (330-379), em Dionísio Areopagita (segunda metade do século IV) e em Agostinho[7]. O que não significa, como veremos, que antes ou depois destes teólogos tais conceitos não existissem e influenciassem a Teologia Cristã.
Taciano,
já no século II, afirmava que “nada de mal foi criado por Deus;
nós é que praticamos toda
espécie de injustiças”[8]. Dessa forma, Taciano antevê um princípio
formulado depois, que “todo bem
procede de Deus e todo mal provém do homem”[9]. Consoante a opinião
de Taciano, também se encontra
Teófilo de Antioquia no século II[10].
Orígenes,
no século III, pelo menos de maneira implícita, já está comprometido
com a definição de
que Deus é o Summum Bonum e tende a negar a substancialidade do
mal: “... um destes dois extremos,
e precisamente o que é bom, [que] se chamasse Filho de Deus, por
causa da excelência de
sua bondade...”[11]. Como também “... as potestades, os tronos,
as dominações e até os espíritos
maus e os demônios impuros não o possuem de forma substancial [...]
eles não foram criados maus...”[12].
“É certo, portanto, que ser mau significa estar privado do bem.
Afastar-se, porém, do bem nada
mais é que consumar o mal”[13].
Em
Basílio se encontra, de maneira mais clara, a questão da insubstanciabilidade
do mal. Ele afirma que não devemos
... pensar
que o mal tem substância própria, pois nem a maldade existe
como ser vivo, nem admitimos que o mal seja sua entidade substancial.
O mal é uma negação do bem... O mal, portanto, não se fundamenta
em uma existência própria, mas decorre da mutilação da alma[14].
Na sua segunda
Homilia in Hexaemeron, Basílio afirma que
“... o mal
não é uma substância viva e animada, mas um estado de alma,
contrário à virtude, por causa da apostasia do bem que provém
dos negligentes...”[15].
Tito de Bostra
(falecido cerca 370) diz que “não existe o mal no que diz respeito
à substância”[16]. Quando se atém ao significado da palavra “substância”[17],
vê-se que o mal não a possuindo, não possui nada que o suporte ou
que o alicerce para ser ou existir por si próprio.
João
Crisóstomo (cerca de 344-407), diz que “o mal outra coisa não é
que um desvio do bem e por isso
o mal é posterior ao bem”[18].
Severino
Boécio (data ???), apesar de ser um senador romano, “revela uma
influência cristã na tentativa
de explicar a existência do mal num mundo dirigido por Deus”[19].
Ele diz que
Deus [...] é
mesmo o bem, como o afirma e confirma o consenso humano; [...] indubitavelmente
é Ele o bem, por ser
o melhor entre todos [...] Ele é o bem supremo. [...] Deus, ser
soberano, possui em si mesmo o bem
supremo e perfeito...[20]
Dioníísio
Areopagita diz no capítulo 4º de De Divinis Nominibus que “o mal
não pode provir do bem, porque
se dele viesse, não seria mau. Mas como tudo o que existe deriva
do bem, todas as coisas são boas
de algum modo”[21] e que o “o mal por sua própria natureza nada
é e nem produz algo de real”.
“O mal não existe de forma alguma e não é bom nem benéfico”.
“Todas as coisas são boas e procedem
do bem, na medida em que existem; mas não são boas nem existem,
na medida em que foram
privadas do bem”.
O que não existe,
não é totalmente mau. O que não é, nada será, a menos que seja concebido
como existindo no
bem de um modo supra-existencial. O bem, por conseguinte, quer enquanto
existe, quer enquanto não
existe, está situado numa posição incomparavelmente mais proeminente
e elevada, ao passo que o
mal não está presente nem no que existe, nem no que não existe[22].
Também
em Agostinho, as noções das doutrinas Summum Bonum e Privatio Boni
se apresentam. Numa
de suas obras contra os maniqueus e os marcionistas, dá a seguinte
explicação:...
- todas as
coisas são boas porque umas são melhores do que as outras e a qualidade
das coisas menos boas faz
crescer o valor das boas... Mas aquelas que chamamos más, são falhas
da natureza das coisas boas
e nunca podem existir absolutamente por si mesmas, fora das coisas
boas... Mas até mesmo estas
falhas testemunham a bondade da natureza dos seres, Com efeito,
o que é mau por alguma falha
essencial, é verdadeiramente bom por natureza. A falha essencial,
com efeito, é algo contra a natureza,
porque prejudica a natureza. E não poderia prejudicar, senão por
diminuição de sua bondade. Por
conseguinte, o mal nada mais é do que a ausência do bem. E por essa
razão só se encontra em
alguma coisa boa. E é por isso que as coisas boas podem existir
sem as coisas más, como, por exemplo,
o próprio Deus e todos os seres celestes superiores: não são maus...;
se, porém, prejudicam,
diminuem o bem e se continuam a prejudicar, é porque encontram ainda
algum bem que podem diminuir;
e se o consomem todo, a natureza já não tira mais nada que possa
ser prejudicado; por isso, quando
já não houver uma naturezas cujo bem diminua, ao ser prejudicado,
também já não existirá mal
algum para prejudicar[23].
O
Libe Setentiarium Ex Augustino diz que “o mal não é uma substância
(entidade autônoma): pois
não existe, porque Deus não é o seu autor”[24].
Agostinho
pergunta o
que vem a ser
o que chamamos de mal, senão a privação de um bem? [...] Todos os
seres são bons, uma vez que
o criador de todos, sem exceção, é soberanamente bom [...] O que
chamamos de mal não existe se
não existir bem algum [...] Nunca poderá existir mal algum onde
não exista nenhum bem[25].
Em
suas As Confissões, Agostinho também coloca as mesmas idéias norteadoras
do Summum Bonum
e da Privatio Boni: “... quem entra em ti, entra no gozo de seu
senhor, e não temerá e se sentirá
sumamente bem no sumo bem...”[26].
Quando
fala sobre Deus e o mal, Agostinho diz que: “Refletia: ‘Quem me
criou? Por acaso não foi Deus,
que não é só bom, mas a própria bondade?...!”[27].
Ao
comentar sobre a substância de Deus em suas As Confissões, Agostinho
se vale novamente do
conceito de Summum Bonum: “Nosso Deus, porque ele é Deus, [...]
não pode querer senão o que
é bom, e ele próprio é o sumo bem...”[28].
E
ainda em suas As Confissões, em “sobre o mal e o bem da criação”,
diz que “tudo o que existe é bom;
e o mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância, porque,
se fosse substância, seria um bem”[29].
Até
Tomás de Aquino, com seu aristotelismo diferenciado do platonismo
agostiniano, mostra influências
da Privatio Boni. Ele diz que “é impossível que o mal signifique
algum ser, ou alguma forma
ou natureza. Portanto, é necessário que com a palavra “mal”, se
designe alguma carência de
bem”[30]. E, logo em seguida, que “o mal não é um ente; o bem, sim,
é um ente”[31].
Johannes
Hirschberger, reconhecido historiador da filosofia, ao comentar
sobre a questão de Deus e o
bem em Tomás de Aquino, diz que “Deus é o ser pelo qual somos o
que somos, nosso ser e o nosso
bem”[32].
Atualmente,
depois de séculos, a Teologia Cristã continua embebida nas doutrinas
do Summum Bonum
e da Privatio Boni, pois o Concílio Vaticano II afirma que “O homem,
olhando o seu coração, descobre-se
também inclinado para o mal e mergulhado em múltiplos males que
não podem provir do seu
Criador que é bom”[33]. Como também que Na Sagrada Escritura,
portanto, manifesta-se, resguardada sempre a verdade e santidade
de Deus, a admirável “condescendência”
da eterna sabedoria, “a fim de que conheçamos a inefável benignidade
de Deus”[34].
Pelo
que apresentamos, somos levados a crer que a Teologia Cristã teve
grande influência das doutrinas
do Summum Bonum e da Privatio Boni através da sua história, com
relação à problemática
do mal. No que pudemos perceber, segundo estas doutrinas, Deus é
um ser que é o bem supremo,
o soberanamente bom, o sumo bem que, por assim ser, só produz o
bem. Ele é o Summum Bonum.
Entendemos
que a Teologia Cristã, ao adotar para si estas doutrinas, enfatiza
a seguinte lógica: Deus
produz só o bem e o mal não foi criado por Ele, porque Ele é o Summum
Bonum e d’Ele só pode vir
o bem, já o mal vem do homem sendo este uma privação ou diminuição
do bem – Privatio Boni.
Segue-se,
pelo que expusemos, que a realidade do mal foi, há bastante tempo,
negada pela Teologia
Cristã, visto que, segundo ela, o mal é posterior ao bem, não possui
substância, existência própria
e assim até não existe.
Refletindo
estas questões com base na Psicologia de C. G. Jung e resguardando
os respectivos
campos epistemológicos, tentaremos analisá-las de outro ponto de
vista. Seria então válido saber
o que esta Psicologia Junguiana tem a dizer quando estas questões
caem no seu campo de atuação.
3 – PRIVATIO
BONI E SUMMUM BONUM – UMA ABORDAGEM PSICOLÓGICA
Antes
de entrar na questão da Privatio Boni e do Summum Bonum em relação
ao mal e à psicologia,
pensamos ser necessário que o leitor se familiarize com alguns dos
conceitos da Psicologia de
Jung.
O
primeiro que se verá é o de individuação.
O
conceito de individuação ou de processo de individuação é de fundamental
importância para a teoria
de Jung. Nise da Silveira[35] diz que o eixo da Psicologia Junguiana
é o processo de individuação[36].
Isto quer dizer que, qualquer coisa que se pense ou se diga desta
teoria psicológica, deve-se ter
sempre em mente este conceito como referencial.
Em
diversos momentos da obra de Jung é ressaltada a importância do
conceito da individuação:
para ele, individuação “é uma exigência psicológica imprescindível”[37]
e “não é apenas um problema
espiritual e, sim, o problema geral da vida”[38]. Mas o que seria
este conceito de vital importância?
Todo
ser tende a crescer, a realizar e a completar o que existe nele
em germe. Assim também é para
o homem, tanto para o seu corpo quanto para a sua psique. Pois todo
indivíduo possui uma tendência
para o autodesenvolvimento ou individuação.
A
individuação é uma necessidade natural e o seu objetivo é o desenvolvimento
da personalidade
individual. Seu impedimento causará ao indivíduo sérios prejuízos[39],
pois a tarefa da individuação
é obrigatória do ponto de vista da saúde psicológica[40].
Mas,
apesar do desenvolvimento das potencialidades do homem ser impulsionado
por forças instintivas
inconscientes, neste mesmo homem há uma característica importante
e peculiar: “ele é capaz
de tomar consciência desse desenvolvimento e influenciá-lo”[41].
Jung diz que
- a nossa consciência
está [...] inclinada a engolir o inconsciente, e, se isso não se
provar possível, nós tentamos engoli-lo
[...] Porém se nós (nossa consciência) entendermos alguma coisa
do inconsciente, nós (nossa consciência)
saberemos que é perigoso suprimi-lo, porque o inconsciente é vida,
e essa vida se volta
contra nós se for suprimida, como acontece na neurose [...] consciência
e inconsciente não fazem o
todo quando um deles é suprimido e prejudicado pelo outro[42].
Esta pecularidade
do homem (consciência) de influenciar na relação com o seu inconsciente
e no processo de
individuação, possibilita, ao mesmo tempo, o confronto de opostos.
É na diversidade da personalidade
que há uma união e amadurecimento numa síntese, num indivíduo específico
e inteiro. Pois “individuação
significa torna-se um ser único”[43]. Único porque na união dos
contrários é que encontramos
a unificação do homem e a sua individuação[44].
Mas
o processo de individuação não segue uma linha reta[45]. Faz um
movimento de circunvoluções,
buscando um novo centro da personalidade. Jung diz quetal centro é
designado pelo nome de “Si-mesmo”, que deve ser compreendido como
a totalidade da esfera psíquica.
O Si-mesmo não é apenas o ponto central, mas também a circunferência
que engloba tanto a consciência
como o inconsciente. Ele é o centro dessa totalidade, do mesmo modo
que o eu é o centro da
consciência[46].
O
processo de individuação conduz, inexoravelmente, à experiência
do “Si-mesmo” e, como se viu,
“um mysterium coniunctionis (mistério da unificação), dado que o
“Si-mesmo” é percebido como
uma união nupcial de duas metades antagônicas”[47] que constitui
a “quintessência da individuação”[48].
Apesar
do processo de individuação ser um processo instintivo, que independe
da vontade ou da consciência
do homem, seria mais fácil para ele se tivesse consciência e não
se opusesse a este processo,
pois a consciência é muito frágil diante de uma determinação do
inconsciente. A individuação
não é uma escolha, mas seria melhor se assim o fosse, e muito menos
uma atividade agradável, pois
a integração de opostos causa muitos sofrimentos àquilo que o ego
acredita ser. Jung diz que Só aquele que
é íntegro por experiência sabe o quanto o homem é insuportável para
si mesmo. Por isso nada havrá
a objetar [...] (a que) a tarefa da individuação e do reconhecimento
da totalidade ou integralidade,
que a natureza nos impôs, (é) obrigatória. Se o indivíduo efetuar
isto de maneira consciente e
intencional, evitará todas as conseqüências desagradáveis que decorrem
de uma individuação
reprimida, isto é, se o assumir de livre e espontânea vontade e
inteireza, não será obrigado a sentir
na carne que ela se realiza dentro dele contra a sua vontade, ou
seja, de forma negativa[49].
Quando
se amplia um pouco mais o conceito de processo de individuação,
vê-se que ele é “uma espécie
de tendência reguladora ou direcional oculta”[50], cujo centro organizador,
de onde emana esta ação organizadora, parece ser uma espécie de
“núcleo atômico” do
nosso sistema psíquico. Poder-se-ia denominá-lo também de inventor,
organizador ou fonte das imagens
oníricas. Jung chamou a este centro o self (Si-mesmo) e o descreveu
como a totalidade absoluta
da psique, para diferenciá-lo do ego (eu), que constitui apenas
uma pequena parte da psique[51].
Então, o “Si-mesmo”
é o objetivo da individuação e também, ao mesmo tempo, o que engendra,
organiza e orienta
essa individuação. Coisa paradoxalmente simples para algo que é
a totalidade e ao mesmo o centro
da totalidade. Um conceito que certamente “transcende a consciência”[52]
humana.
Individuação não é sinônimo de perfeição, pois Aquele que busca individuar-se não tem a mínima pretensão de tornar-se perfeito. Ele visa completar-se [...]. E para completar-se terá que aceitar o fardo de conviver conscientemente com tendências opostas, irreconciliáveis, inerentes à sua natureza, tragam estas conotações de bem ou de mal, sejam escuras ou claras[53].
Confundir
individuação com individualismo é também outra deturpação comum
e absurda, pois para Jung
“semelhante propósito (extremo individualismo) é patológico, natural
e francamente contrário à
vida”[54]. A individuação é um processo
evolutivo que conduz ao “Si-mesmo”, é o oposto da individualização;
o primeiro (processo evolutivo) tende
para uma “saída do ego”- para o oblativo; o segundo, para a exaltação
do ego, para o egocentrismo[55].
Jung frisa que,
vindo a ser
o indivíduo que é de fato, o homem não se torna egoísta no sentido
ordinário da palavra, mas meramente
realiza as particularidades de sua natureza e isso é enormemente
diferente do egoísmo ou individualismo[56].
O
processo de individuação não é um conceito simplesmente teórico
ou abstrato; ele é “descrito em
imagens nos contos de fada, mitos, no opus alquímico, nos sonhos
e nas diferentes produções do
inconsciente”[57]. E principalmente com os sonhos é que podemos
perceber as idas e vindas complexas
do processo de individuação. Jung analisou milhares de sonhos e
verificou sempre a mesma emergência
de imagens análogas ou parecidas que se sucediam, podendo, por assim
dizer, traçar um mapa
de um itinerário percorrido e descrever as principais etapas do
processo de individuação.
Evidentemente
falaremos aqui apenas de duas etapas que interessam para não nos
perdermos no
propósito deste trabalho. Estas etapas seriam a retirada de uma
máscara, a Persona, e o encontro com
uma face desconhecida, a Sombra.
Quando
o homem estabelece contatos com o mundo externo e procura se adaptar
às exigências do
meio em que vive, uma aparência que não corresponde à sua maneira
de ser é assumida. “Apresenta-se
mais como os outros esperam que ele seja ou ele desejaria ser do
que realmente é”[58].
A esta falsa aparência Jung denominou de Persona.
Jung
baseou seu conceito de Persona na máscara que os antigos atores
utilizavam[59] para caracterizar
o papel que estavam representando. O padre, o médico, o pai, o militar,
por exemplo, mantêm uma fachada
de acordo com as convenções coletivas, que ditam o que devem fazer,
falar, vestir, etc.
Segundo
Jung, Persona “é um complexo funcional a que se chegou por motivos
de adaptação ou
de necessária comodidade. Mas nada tem a ver com a individualidade[60].
E é justamente aí
que reside o seu grande perigo, quando o indivíduo se confunde com
a imagem das expectativas
das pessoas quanto ao seu papel social e à educação que recebeu[61],
ficando reduzido a uma casca
impermeável de revestimento.
A
Persona é, de certa forma, um sistema útil de defesa. Todos possuem
ou usam uma ou várias máscaras.
O problema é que, na maioria das vezes, a Persona é inconscientemente,
mas quando se tem
consciência dela, o perigo não
é tão grande; sem dificuldades podemos tirá-la e colocá-la novamente
(como os atores antigos), de
acordo com as circunst6ancias e diante de determinadas pessoas.
Mas acontece que acabamos ficando
presos à nossa Persona e identificando-nos com ela; é este o perigo.
A Persona (segundo Jung)
não é a máscara conscientemente posta e tirada, mas a máscara inconsciente
que, pouco a pouco,
camufla o nosso verdadeiro ser[62].
Além de máscara,
a Persona é um papel. São os papéis desempenhados ao longo da história
(pai, mãe, sacerdote)
que orientam a nossa conduta. Apesar de orientadora, quando ela
se torna dominante, pode abafar
o indivíduo.
Quanto
mais a máscara da Persona aderir à pele do indivíduo, “mais dolorosa
será a operação psicológica
para despi-la”[63]. O poeta português Fernando Pessoa expressa esta
difícil atitude psicológica
de uma maneira muito profunda em “Tabacaria”:
- ... Fiz de mim
o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis
tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora
a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo...[64].
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo...[64].
Certamente
a retirada da máscara é um ato de coragem: mostra um lado obscuro
que não agrada ao ego;
agride frontal e compensatoriamente a Persona que o Ego construiu
e que se reconheceu.
Mas,
ao mesmo tempo, a identificação com a Persona, com a máscara, leva
a uma perda do contato com
o lado sombrio da personalidade e a personalidade total e real fica
distante e oculta [65]. A este
lado sombrio, Jung denominou de Sombra.
Segundo
Jung, a Sombra é “aquela personalidade oculta, recalcada, freqüentemente
inferior” [66], que em
geral tem um valor afetivo negativo[67]. É “o nosso lado escuro
onde moram todas as coisas que desagradam
em nós, ou mesmo nos assustam”, diz Nise da Silveira[68].
A
Sombra faz parte da totalidade da personalidade, é a metade obscura
da alma[69]. São as coisas que
não aceitamos em nós, é a nossa “fragilidade deplorável e condenável”,
diz Jung[70].
Para
ele,
com compreensão
e boa vontade, a sombra pode ser integrada de algum modo na personalidade,
enquanto que
certos traços [...] opõem obstinada resistência ao controle moral,
escapando portanto a qualquer influência.
De modo geral, estas resistências ligam-se a projeções[71]. “que não podem
ser reconhecidas como tais...”[72] pelo indivíduo.
As
nossas “projeções são da sombra”[73]; nós a projetamos sobre o outro,
o vizinho, o inimigo, ou
até mesmo em “uma figura símbolo como o demônio”[74]. Toda vez que
fazemos projeções, nossa
pequena consciência se protege daquilo que abrigamos dentro de nós.
Mas quando iluminamos nossos
cantos obscuros, nossa consciência se amplia e se assusta.
Jung
diz que o encontro com a Sombra
desafia a personalidade
do Eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta
realidade sem
despender energias [...] Mas nesta tomada de consciência da sombra
tarta-se de reconhecer os
aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade.
Este ato é a base indispensável
para qualquer tipo de autoconhecimento e por isso, via de regra,
ele se defronta com considerável
resistência [...] (por isso) é um trabalho árduo[75] e necessário,
pois quando a Sombra é ignorada e incompreendida ela se torna hostil.
Sendo
a Sombra uma parte que não se reconhece, ela também pode assumir
um lado positivo, quando,
raramente, o indivíduo dá livre curso ao pior lado de sua natureza,
reprimindo o que nela há de melhor.
A Sombra também possui coisas boas[76], mas o que geralmente ocorre
é que tentamos esconder
o nosso lado sombrio e não o outro.
Quanto
mais a Sombra é afastada da consciência, mais ela se torna espessa
e negra. Na neurose, a sombra
é densa e o único caminho saudável é a convivência da consciência
com a sombra [77].
Viu-se,
então, que a retirada da Persona e o encontro com a Sombra são etapas
fundamentais
para o processo de maturação psicológica, a individuação. Um processo
natural que, se negado, causará
grandes prejuízos para a personalidade do indivíduo.
Mas
o que isso tem a ver com o problema do mal?
Como
vimos anteriormente, a Teologia Cristã, quando se vale das doutrinas
da Privatio Boni e do Summum
Bonum, nega a realidade do mal. Se não nega essa realidade, o diminui,
colocando-o posterior ao
bem, sem substância ou existência própria, sendo ele apenas uma
privação do bem.
Jung
diz que
A experiência
psicológica nos mostra que o “Bem” e o “Mal” constituem o par de
contrários do chamado julgamento
moral e que, enquanto tal, têm sua origem no próprio homem. Como
sabemos, só se pode emitir
um julgamento quando é possível o seu oposto em termos de conteúdo.
A um Mal aparente só
se pode contrapor um Bem igualmente aparente, e um Mal não substancial
só pode ser anulado por
um Bem igualmente não substancial. Um existente se contrapõe a um
não-existente, mas nunca um Bem
existente pode contrapor-se a um Mal não-existente, pois este último
é uma contradictio
in adjeto [uma contradição nos próprios termos] e gera uma desproporcionalidade
em relação ao bem
existente: de fato, um Mal não-existente (negativo) só pode contrapor-se
a um Bem igualmente não-existente
(positivo). Dizer que o Mal é mera privatio boni nada mais é do
que negar a antinomia Bem-Mal.
Como se poderia falar de um “Bem” se não existisse igualmente um
“Mal”? Como falar de um
“claro” sem um “escuro”, de um “em cima” sem um “embaixo”? A conclusão
inevitável é a de que, se atribuímos
um caráter substancial ao Bem, devemos também atribui-lo ao Mal.
Se o Mal não é substancial,
o Bem não passa de algo vago, porque não tem de defender-se de um
adversário substancial,
mas unicamente de uma sombra, de uma privatio boni. Uma concepção
desta espécie dificilmente
se ajustará à realidade observável. Não se pode evitar a impressão
de que tendências apotropaicas
tenham influído na formação destas opiniões, com a compreensível
preocupação de resolver de
maneira mais otimista possível o espinhoso problema do Mal...[78].
Mediante
o exposto, tende-se a concluir que, em nível psicológico, a substancialidade
do mal é existente.
O sistema psíquico humano não comporta um conceito de que o mal
é uma Privatio Boni.
O
mal é uma realidade psíquica[79] que não podemos negar. Ao contrário,
“devemos considerá-lo
tanto quando o bem”[80], pois toda vez que o ego tenta orgulhosamente
negar uma realidade psíquica,
ele sai perdendo. O mal é uma realidade inevitável da vida (psíquica),
uma realidade que não pode
e nem deve ser extirpada[81], pois, a qualquer tentativa de retirá-lo
desta realidade, retira-se também
a vida.
Partindo
do conceito de persona dado anteriormente, se é levado a crer que
ela é formada por ideais ou
padrões de nossa educação familiar, de nossos grupos sociais ou
regras religiosas que atuam diretamente
sobre nós – na maioria das vezes inconscientemente – frutos de nossa
cultura e de nossos padrões
judaico-cristãos[82].
Seguindo
estes padrões, a persona é forçada a ser tolerante, amável, sexualmente
casta e portadora de
mansuetude. Este padrão de persona é reforçado pelo ponto de vista
da Privatio Boni, onde o mal é
negado na sua realidade e só o bem é aceito como existente. Pois,
como vimos, a persona é adaptável
e, para se adaptar num mundo onde a realidade do mal é negada, ela
só poderá ser boa.
Outro
aspecto que se viu também anteriormente é o problema da identificação
com a persona. Se
isto ocorrer, “o contato com o lado sombrio e obscuro da personalidade
é certamente perdido [...]
(levando) ao artificialismo, falsidade e superficialismo da personalidade”[83].
Normalmente,
a identificação e manutenção de uma persona leva a uma negação da
sombra. Este
problema se torna mais complexo quando a visão que o ego identificado
com a persona tem de si e
do mundo é sob o prisma da Privatio Boni, pois em nível psicológico,
o mal é freqüentemente
visto, vivenciado e identificado com a sombra[84].
Se
a Privatio Boni diz que o mal não é real e eu aceito isso como verdade,
a minha visão interna é de
que eu não possuo sombra. Esta falsa constatação é extremamente
prejudicial para a economia psíquica,
pois, visto que para o processo instintivo de individuação, é necessário
o encontro com a sombra,
e se ela é identificada com o mal e o mal é negado como realidade,
nunca haverá um reconhecimento
da sombra como tal e nunca haverá qualquer encontro real com a sombra,
um encontro que
tem que ser pleno[85].
John
A. Sanford comenta que
Uma razão pela
qual o problema da sombra tem sido ignorado pela Igreja é que ele
nos leva a situações paradoxais
e nos confronta com a necessidade de uma ética paradoxal. Não gostamos
de paradoxos e
a tradicional consciência cristã em particular prefere que as coisas
sejam traduzidas no preto e no branco.
Infelizmente, a aceitação do nosso lado sombrio não permite isso,
pois a sombra, com todo o seu
potencial para o mal, também contém o que é necessário para o bem...[86].
Em outra passagem,
Sanford diz que
Com o passar
dos séculos a Igreja não caminhou significativamente neste ponto
(conscientização da sombra). Tendo
isto em vista, a Igreja não alcançou a consciência mais elevada
de Jesus, mas permaneceu num
nível psicológico inferior. O resultado foi a perpetuação e agravamento
da divisão do homem, em vez
da solução do problema da sombra[87].
Aquele
que, em nível psicológico, assume para si a doutrina da Privatio
Boni, ficará dividido – como disse
Sanford – e estará levando para a estagnação o processo de individuação,
cuja meta é justamente a
união aos opostos[88], que é o “Si-mesmo”. A sombra é a metade do
“Si-mesmo” e a outra metade
é apenas a consciência do Eu[89].
Segundo
Jung,
Só o autoconhecimento
mais amplo e severo possível, que olhe o mal e o bem numa relação
correta e seja capaz de
ponderar todos os aspectos, oferece uma certa garantia de que o
resultado final não será muito ruim[90].
Com
base na Teologia Cristã, poder-se-ia dizer que não há nenhuma negação
da sombra no homem. Ao
contrário, poder-se-ia dizer que o homem é o grande portador da
sombra, visto que Deus, como vimos
acima, e o Summum Bonum, que só cria o bem, e o homem (com sua sombra)
macula com o
seu pecado a obra do criador. Reconhecendo-se como pecador, o homem
se estaria reconhecimento
como portador da sombra e, assim, a Teologia estaria reforçando
a necessidade do encontro com
a sombra. Esta visão teológica é válida quando se parte do princípio
de que Deus é o Summum Bonum.
Mas, em nível psicológico, a questão do Summum Bonum é vista de
uma maneira diferente.
Com
relação à concepção de que Deus seja o Summum Bonum, Jung diz que
Ignorava-se,
e parece que ainda se continua a ignorar (com algumas honrosas exceções),
que a “hybrus”(soberba)
do intelecto especulativo já havia induzido os antigos a ousarem
uma definição filosófica de
Deus, ao obrigá-lo, de certo modo, a assumir o papel de “Summum
Bonum”. Um teólogo [...] teve até
mesmo a ousadia de dizer que “Deus só pode ser bom!”. O próprio
Javé, por si só, já bastaria para
convencê-lo do contrário a este respeito, caso ele mesmo não percebesse
sua intrusão intelectual
no confronto com a onipotência e liberdade de Deus[91].
Porque
será que Jung faz um comentário tão cáustico com relação ao Summum
Bonum”? É que, além
da Hybris pela definição da divindade, temos graves problemas psicológicos
quando Deus é definido como
o Sumo Bem.
Viu-se
acima que o processo de individuação objetiva o encontro com o “Si-mesmo”. - O
“Si-mesmo” é a unidade[92] e a totalidade da psique (consciente
e inconsciente)[93] que deve ser compreendida
como uma coincidentia oppositorum, uma união de opostos[94].
Já
paradoxal por conter em si os opostos, ele também é o todo e o centro
da totalidade [100] que orienta,
organiza e engendra esta mesma totalidade e qualquer processo que
nela ocorra [101].
Por
todas características psicologicamente empíricas[102] observadas
por Jung, ele concluiu que
o “Si-mesmo”,
é uma base psicológica
para a concepção de Deus. Deus se serve dela (base psicológica)
como seu veículo (e)
a Psicologia pode averiguar esta base. Para além disso, é a Teologia
que tem a palavra [103].
Pois o “Si-mesmo”
não é colocado no lugar de Deus.
Segundo
Jung, o “Si-mesmo” “é uma imagem divina (e não Deus), mas não se
pode distingui-lo
desta última”[104]. E “o embate com ele é um ‘mysterium tremendum’”[105].
“Na prática é impossível distinguir
entre os símbolos espontâneos do “Si-mesmo” (da totalidade) e uma
imagem divina”[106].
Para ele,
Unidade e a
totalidade (do “Si-mesmo”) se situam a um nível superior na escala
de valores objetivos, uma vez que
não podemos distinguir seus símbolos da Imago Dei (Imagem de Deus).
Tudo que se diz sobre a imagem
de Deus pode ser aplicado sem nenhuma dificuldade aos símbolos da
totalidade[107].
O “Si-mesmo”,
em virtude de
suas qualidades empíricas [...], se manifesta por fim como o “eidos”
(idéia) de todas as representações
supremas da totalidade e da unidade, que são inerentes, sobretudo,
aos sistemas monoteístas
e monistas[108].
Viu-se
acima que o “Si-mesmo” é paradoxal: é o orientador e a meta do processo
de individuação
e contém em si os opostos. O que, do ponto de vista moral, contém
em si o bem e o mal [109]. Viu-se,
então, que a base psicológica da concepção de Deus (Imago Dei que
nada tem a ver com filosofias
ou racionalismos) contém em si todos os opostos, inclusive o “bem”
e o “mal”, apesar disto ser um
julgamento moral[110] da consciência.
Poder-se-ia
dizer que a necessidade da imagem divina ser boa ou má ao mesmo
tempo é uma necessidade
psicológica do homem e Deus nada tem a ver com isso. Então, Ele
pode ser o Summum Bonum,
se quiser, e nós, humanos, nada temos a ver com a escolha divina.
Bem,
a nível psicológico, a Imago Dei (ou o Deus vivenciado) também se
transforma por causa do homem[111].
John A. Sanford comenta que A razão de encontrarmos
poucas referências a Satã no Antigo Testamento está no fato de que
aí o próprio Iahweh
é o responsável pelo mal (como pelo bem), de modo que a figura de
um demônio não é necessária[112].
Porém, quando
no Novo Testamento encontramos um Deus ligado à polaridade do Summum
Bonum, encontramos
também uma presença muito maior e freqüente do demônio[113].
Jung
vê a imagem de Cristo como o “Si-mesmo”. Porém lhe falta, para ser
completo, o lado sombrio[114].
A este respeito, Jung comenta sobre o Apocalipse, dizendo que A vinda do anticristo
não é apenas uma predição de caráter profético, mas uma lei psicológica
inexorável (que
levou São João – o homem), sem que ele soubesse, à certeza da enantiodromia
vindoura [...]
como se tivesse consciência da necessidade interior desta transformação[115].
John
A. Sanford também comenta que no Apocalipse há uma clivagem
e dualidade metafísicas entre Deus e Satã, o que reflete o problema
sem solução da própria alma
do homem. Acabada a bênção de Jesus dos Evangelhos, cuja atitude
foi capaz de unir os opostos,
temos, ao invés disto, uma representação de bondade extremamente
unilateral, que certamente constela
o seu oposto. No Apocalipse vemos revelado não a natureza última
de Deus, mas o problema
não resolvido do homem projetado no domínio metafísico[116].
Uma
outra questão que nos incomoda é a seguinte: se o “Si-mesmo” é o
orientador e o objetivo do
processo de individuação, contendo em si os opostos (mal e bem incluídos)
e é ele a base psicológica
mesclada e fundida na Imago Dei e esta Imago Dei é unilateral (Summum
Bonum), toda esta situação
seria prejudicial ao processo de individuação? A resposta é certamente
que sim, pois como se viu,
o homem, ou melhor, a sua consciência, é capaz de influenciar o
processo de individuação.
Mesmo este sendo instintivo, o homem pode influenciá-lo positivamente,
indo rio abaixo, à mercê da correnteza,
ou negativamente, condenado eternamente a nadar corrente acima e
a nunca chegar a lugar
algum.
Uma
consciência que assume o ponto de vista da Privatio Boni ou do Summum
Bonum, está psicologicamente
condenada a ficar dividida entre Deus e o Diabo. E, certamente,
distante do processo de
individuação, sofrendo por realizar um opus contra natura.
Jung
diz que
Luz e Sombra
formam uma unidade paradoxal do si-mesmo empírico. Na concepção
cristã, pelo contrário, (o
si-mesmo) está irremediavelmente dividido em duas metades inconciliáveis,
porque o resultado final
conduz a um dualismo metafísico, isto é, a separação definitiva
entre o reino celeste e o mundo de fogo
da condenação[117].
4 – CONCLUSÃO
Viu-se
que o objetivo do processo de individuação é o “Si-mesmo”, que por
sua vez é empiricamente
inseparável da Imago Dei. O “Si-mesmo” é a união de todos os opostos
(consciência e inconsciente),
é a totalidade que transcende o Eu e que abarca não só, mas também,
o bem e o mal do ponto de
vista da moral da consciência.
Sendo
o “Si-mesmo” a união de opostos, leva-se a crer que, em nível psicológico,
qualquer visão de mundo
(consciência) que unilaterialize ou que negue algum lado da totalidade,
leva certamente a
uma estagnação do processo de individuação – o que é prejudicial
à integridade do homem. Então,
se a concepção de que a Imago Dei é o Summum Bonum e que o mal é
uma Privatio Boni implica
numa polarização do bem na imagem de Deus e numa negação da realidade
do mal – o que é igualmente
prejudicial.
Levando-se
em conta que o “Si-mesmo” é também o orientador de todos os processos
da psique e que
ele se confunde com a Imago Dei, a concepção de que a Imago Dei
é o Summum Bonum polariza
a visão que a consciência tem do “Si-mesmo” orientador da totalidade
psíquica – o que também é
prejudicial.
Todos
estes aspectos levam a crer que, psicologicamente, a concepção da
consciência da Imago Dei ser
o Summum Bonum e o mal ser uma Privatio Boni é limitadora e limitada
para a psique humana e para
o seu processo de individuação.
Poder-se-ia
pensar erroneamente, como já foi dito anteriormente, que a Psicologia
está atacando a Igreja,
ou que ela está fazendo um apologia do mal. Ao contrário, a Psicologia
aponta apenas a prejudicial
visão polarizada que a consciência quase sempre tende a ter. Pois,
como se viu acima, esta
polarização acarreta prejuízos sérios, independente do lado para
que se incline.
O
problema da polarização, do ponto de vista psicológico, é amoral.
Pois, se houvesse alguma doutrina
chamada Sumo Mal ou outra que defendesse que o bem fosse uma privação
do mal, a preocupação
psicológica seria a mesma. Pois, a persona encarnaria o mal, o bem
ficaria na sombra e o processo
de individuação também seria afetado.
Ao
mesmo tempo, o problema da polarização e uma etapa natural que aparece
no processo de
individuação e que, inevitavelmente, terá que ser transcendido.
A sua transcendência é mais um desafio
de que não se pode fugir.
James
Hillman diz que o sentido da individuação é, sinteticamente, “a
relativização do ego”[118]. Pois
somente assim, em nível psicológico, o ego suportará o encontro
com o “Si-mesmo” e todas as suas
paradoxais orientações de um centro paradoxal e transpessoal da
totalidade da psique.
Acredita-se,
então, que, do ponto de vista psicológico, somente a relativização
tirará o homem da situação
de estar dividido entre Deus e o Diabo e, concomitantemente, dentro
de si mesmo.
5
– BIBLIOGRAFIA
1 – A BÍBLIA
DE JERUSALÉM. Edição em Língua Portuguesa. São Paulo: Edições Paulinas, 1981.
2 – AGOSTINHO.
As confissões. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Edameris,
1961.
3 - ------.
Obras de San Augustín. Edición bilingüe (Latim, Español). 3. ed.
Madrid: B.A.C. (Biblioteca
dos Autores Cristianos), 1946. 21 v.
4 – AQUINO,
Tomas. Summa theologica. Edición bilingüe (Latim, español). 3. ed.
Madrid: B.A.C.
(Biblioteca dos Autores Cristianos), 1959. 5 v.
5 – COMPÊNDIO
DO VATICANO II. Constituições, decretos e declarações. Introd. e
índice analítico
de Frei Boaventura Klopreoburg, O.F.N., coord. Geral Frei Frederico Viver,
O.F.M. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1977.
ETC...
[1] Psicólogo
clínico de orientação Junguiana, especialista em Psicologia Clínica
(CRP) e em Psicologia Junguiana
(Instituto de Psicologia Junguiana do Rio de Janeiro), mestre em
Ciências da Religião (Universidade
Federal de Juiz de Fora), doutorando em Psicologia Clínica (Puc/RJ),
professor Titular de Teorias
e Técnicas Psicoterápicas em Psicologia Junguiana (CES/JF) e em
Psicologia da Religião (ITASA/JF).
E.S.E - O Bem e o Mal Viver - 59 min.
Fonte:
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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