quinta-feira, 19 de março de 2015

HANNAH ARENDT E MARTIN HEIDEGGER







Estranho amor

Cartas revelam detalhes do relacionamentoentre Hannah Arendt e Martin Heidegger






O alemão Martin Heidegger foi um dos mais originais filósofos do século XX. Foi também um nazista, e uma figura patética em sua vida privada. Sobre os dois primeiros fatos, há provas bem conhecidas. Centenas de livros, escritos em várias línguas, atestam a profunda e duradoura influência cultural do autor de Ser e Tempo. Da mesma forma, a ligação de Heidegger com o nacional-socialismo está fartamente documentada. Ele filiou-se ao partido de Hitler no começo dos anos 30. Em 1933, como reitor da Universidade de Freiburg, proferiu um discurso inflamado sobre o papel da ciência nos novos tempos, e encerrou a noite com a suástica na lapela e o braço erguido, proferindo a saudação "Sieg Heil!". 


Embora pouco depois tenha se desiludido com o movimento, jamais revelou em público sinais de arrependimento. Manteve até o final da vida um silêncio orgulhoso – e imperdoável – a respeito de seu passado político. Muito mais escassas foram até agora, no entanto, as informações sobre a intimidade de Heidegger. Só nos últimos anos as primeiras biografias alentadas vieram à luz. E mesmo esses estudos tiveram de ser redigidos sem o conhecimento adequado de documentos importantes, como parte da correspondência do filósofo. 


Dentre essas cartas fundamentais, encontram-se as que Heidegger trocou com Hannah Arendt, a brilhante pensadora judia que escreveu Origens do Totalitarismo e explicou ao século XX o lado mais sombrio de sua história política. Editadas na Alemanha no ano passado e agora publicadas no Brasil, as cartas de Hannah Arendt e Martin Heidegger (tradução de Marco Antonio Casa Nova; Relume Dumará; 330 páginas; 35 reais) revelam os detalhes de um intrigante caso de amor, cultivado pelos dois ao longo de cinqüenta anos.


A correspondência divide-se em três períodos. O primeiro, que vai de 1925 a 1933, é aquele em que um romance propriamente dito se desenvolveu. O término dessa fase coincide com a ascensão de Hitler ao poder e com o início da perseguição aos judeus na Alemanha. Nesse momento, Hannah foge para a França – não sem antes ouvir os primeiros rumores sobre uma possível conversão de Heidegger ao nazismo.


 Durante os anos 30 e toda a década de 40, os antigos amantes não mais se falaram. O segundo período da correspondência começa em 1950 – data em que Hannah, que vivia exilada nos Estados Unidos, visita a Europa pela primeira vez depois da II Guerra Mundial. Ela se reencontra com Heidegger e, até 1965, os dois tratam de recompor seu relacionamento, agora sem contato físico, mas com base na convicção de que foram e continuarão sendo almas gêmeas. Por fim, o último grupo de cartas circula entre 1966 e 1975, ano da morte da filósofa. Destaca-se aí o esforço empreendido por ela para tornar conhecida a obra de Heidegger na América.


As cartas revelam que ao longo dessas várias décadas uma mesma história sempre se repetiu: a da dedicação de Hannah, contraposta ao egoísmo de Heidegger. No período inicial do namoro, por exemplo, foi ele – um homem já casado e pai de dois filhos – quem impôs todas as regras, tendo em vista a preservação de sua "dignidade". Mas talvez tenha sido na segunda fase do relacionamento, aquela iniciada em 1950, que o caráter pusilânime do filósofo se manifestou com maior clareza. Pois aí foi tanto a Hannah quanto a sua mulher, Elfride, que ele impôs sua conveniência.


 Às duas mulheres, profundamente diferentes entre si, ele impingiu a humilhação de conviver e se tornar "amigas". Vale notar ainda que nesse mesmo período Heidegger sempre esperou de Hannah a devoção de uma antiga aluna, mas demonstrou-se incapaz de dedicar aos belos livros que ela própria escreveu um átimo sequer de atenção. Talvez seja incorreto dizer que o amor de Heidegger por Hannah Arendt não foi um sentimento autêntico. Mas o filósofo jamais permitiu que esse sentimento se sobrepusesse a seus interesses. 


Ao contrário do que disse o poeta Fernando Pessoa, a correspondência entre Hannah e Heidegger demonstra que nem todas as cartas de amor são ridículas. Ao expor o lado mais íntimo dos "grandes homens", há aquelas que provocam um melancólico desapontamento, em vez de riso.




"Caro Martin,
Dirijo-me a você com a antiga certeza e com o velho pedido: não se esqueça de mim e não esqueça o quão profundamente sei que o nosso amor foi a bênção da minha vida. Nada é capaz de abalar esse saber – e isso mesmo agora, no momento em que encontrei uma pátria e um porto seguro para o meu desespero (...) Escuto às vezes algo sobre você. No entanto, tudo envolto em um tom particularmente estranho e indireto: no tom que sempre está presente na elocução dos nomes famosos. De um modo quase torturante, gostaria tanto de saber como você está, em que está trabalhando e como Freiburg o está recebendo!
Um beijo meu em sua fronte e em seus olhos.
Sua Hannah"
Trecho de carta de 1929

"Cara Hannah!
A insinuação de que não cumprimento judeus é uma difamação tão baixa que a anotarei aliás para mim futuramente. Como esclarecimento de como me comporto em relação aos judeus, cito apenas os seguintes fatos: quem me enviou há algumas semanas um trabalho extenso para uma leitura urgente é um judeu. Os dois bolsistas da sociedade beneficente que foram alocados por mim são judeus. Quem conseguiu através de mim uma bolsa para Roma é um judeu. Quem quiser chamar isso de 'anti-semitismo furioso' pode fazê-lo. De resto, sou tão anti-semita hoje em relação a questões universitárias quanto há dez anos.
Saudações cordiais.
M."
Trecho de carta de 1932

Ela judia; ele, nazista

ENTREVISTA
Talvez a melhor definição para o estado da relação teórica e afetiva de Hannah Arendt e Martin Heidegger esteja contida em uma pequena nota, na qual ela dizia que havia “permanecido fiel e infiel, ambas as coisas com amor”
Uma das relações emocionalmente mais controversas entre intelectuais definitivos para o pensamento e a história do século passado foi a dos filósofos Martin Heidegger e Hannah Arendt. Os dois se conheceram na Universidade de Mar-burg, em 1924, quando ela era uma jovem estudante de 18 anos, e ele, um professor de destaque. Um dos pensadores mais influentes do século 20, Heidegger ficou marcado também por sua ligação com o regime nazista, enquanto Arendt, judia, dedicou boa parte de sua importante obra ao estudo de regimes totalitários. Para André Duarte, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e autor de O pensamento à sombra da ruptura (Paz e Terra), no qual analisa o pensamento arendtiano, apesar da importância de Heidegger para Arendt, é um erro mostrá-la como alguém intelectualmente dependente.
CULT – Em Origens do totalitarismo, Arendt confronta Heidegger, uma vez que temas importantes no livro são o anti-semitismo (Heidegger foi acusado de perseguir alunos e professores judeus enquanto fora reitor na Universidade de Freiburg) e a comparação do nazismo com o comunismo stalinista?

André Duarte
 Não, Heidegger não é o alvo de Origens do totalitarismo, pois o que está em questão ali é a dura tarefa de compreender aquilo que Arendt denominou como o “mal absoluto” de nosso tempo, como um fenômeno de ruptura em relação à tradição política, moral e filosófica do Ocidente; em suma, como a novidade radical do presente. A questão decisiva para ela era como compreender o surgimento, no século 20, de uma forma de dominação que não pode ser adequadamente considerada como uma versão mais violenta das ditaduras, tiranias ou despotismos já conhecidos. Quer dizer, o assunto era por si só decisivo e a investigação do anti-semitismo e das identidades estruturais entre o nazismo e o stalinismo se impôs por si própria, sem que ela necessitasse tomar a Heidegger como alvo para um acerto de contas ou confronto. Aliás, fosse esse o caso, ela não teria titubeado em mencioná-lo expressamente. O que não quer dizer que Heidegger, assim como tantos outros intelectuais respeitáveis da antiga Alemanha de Weimar, que rápida e entusiasticamente aderiram ao novo regime, não sejam implicitamente mencionados em certas passagens do livro. Por exemplo, quando Arendt descreve a estranha e temporária aliança que se formou entre a intelectualidade alemã, em seu repúdio vanguardista contra os princípios e valores morais da sociedade burguesa, denunciados em sua hipocrisia, e os piores e menos respeitáveis elementos daquela mesma sociedade, denominados por ela como a ralé. Quanto à denúncia de que Heidegger odiasse e prejudicasse a alunos e professores judeus, ela é de fato mencionada na última carta que Arendt escreveu a Heidegger, logo depois de assumida a Reitoria da Universidade de Freiburg, em 1933. Heidegger respondeu-lhe ponto por ponto, negando veementemente tais acusações. Depois disso, eles só voltariam a se relacionar a partir de 1949.
CULT – Arendt explora as relações de Heidegger com o nazismo em sua obra ou ela busca referências apenas em seu pensamento e não em suas convicções políticas? Aliás, é possível separar isso em Heidegger? O pensador e autor do adepto do nazismo?
A.D.
 Com relação à segunda pergunta, não creio que seja possível dissociar o pensamento de Heidegger de suas posições políticas: fazê-lo significaria negar-lhe o caráter intrinsecamente situacional e incorrer em erro. Ademais, foi por motivos teóricos que Heidegger assumiu o Reitorado de Freiburg e não por desejo de poder ou por ser um racista convicto. A esse respeito, poucos se recordam de que Jaspers elogiou o discurso do reitorado de Heidegger e a sua própria decisão de assumir o cargo, sob o pretexto de que ao menos assim se preservaria a autonomia da universidade alemã. Contudo, e essa ressalva é fundamental, afirmar que Heidegger assumiu suas posições políticas a partir de certas considerações teóricas não quer dizer que a filosofia de Heidegger seja totalitária! É preciso entender sob quais impulsos propriamente teóricos se operou tal adesão, visto que a distância entre o pensamento heideggeriano e o jargão racista do nazismo é intransponível e apenas a má vontade intelectual não quer percebê-lo. A esse respeito, creio que Hannah Arendt soube como pensar de maneira adequada a natureza teórica desta cegueira que levou ao engajamento político de seu mestre, sem, contudo, rebaixar seu pensamento ao estatuto do inominável.
Passo então à primeira pergunta. Por um lado, o engajamento de Heidegger provocou-lhe reflexões muito sérias, sobretudo no que diz respeito à tensão constitutiva entre filosofia e política que orienta a tradição da filosofia política ocidental desde sua origem, com Platão. Por outro lado, e dado que ela nunca considerou o pensamento de Heidegger como intrinsecamente nazista, isso não lhe impediu de buscar inspiração em certos conceitos de Heidegger a fim de repensar as possibilidades da própria teoria política após a ruptura do fio da tradição. Certamente, o choque e a decepção com o engajamento de Heidegger foram importantes na definição da trajetória mesma de seu pensamento. Até 1933, ela não tinha preocupações intelectuais a respeito da política. Basta recordar que sua tese de doutoramento, defendida em 1929 sob orientação de Jaspers, mas fortemente marcada por categorias heideggerianas, versava sobre o “conceito de amor em Santo Agostinho”.
 O direcionamento de sua vida para a política só ocorreu a partir de 1933 e se deu, primeiramente, por meio da total recusa do meio intelectual e do engajamento na ação direta de resistência ao nazismo. Somente em 1946 Arendt voltaria a discutir questões estritamente filosóficas, ao publicar, já nos Estados Unidos, um texto introdutório sobre pensamento existencial alemão. Nele, ela criticava asperamente o pensamento do Heidegger de Ser e tempo, acusando o conceito de “autenticidade” de solipsista e romântico e contrapunha a ele o pensamento de Jaspers, em sua adesão ao vínculo comunicativo entre os seres humanos.
No entanto, depois do reencontro de ambos, em 1949, Arendt mudou sua avaliação a respeito do pensamento heideggeriano, chegando inclusive a referir-se aos conceitos de “mundo” e do homem como “ser-no-mundo”, de Ser e tempo, como contribuições decisivas para a renovação do pensamento político. Agora, ela avaliava que tais conceitos permitiam iluminar uma estrutura constitutiva da condição humana, o ser-com-outros, em relação à qual a filosofia já não podia mais pretender refugiar-se no isolamento solipsista que perpassa e orienta boa parte da reflexão filosófica política e epistemológica moderna. A mudança, como se vê, é total, e certamente tem que ver com o reencontro e o reatar de laços entre os dois. O que não significa que Arendt se tornasse, daí por diante, uma heideggeriana. Ela já havia percorrido a sós um longo caminho de pensamento, que culminara com a publicação de Origens do totalitarismo, em 1951, para novamente voltar a entregar-se a Heidegger, ainda que apenas teoricamente. Nesse sentido, são incorretas aquelas análises que afirmam a dependência intelectual e afetiva de Arendt em relação a Heidegger, como proposto por Elzbieta Ettinger em um pequeno panfleto que certamente lhe valeu um bom dinheiro, mas nenhum reconhecimento acadêmico. Talvez a melhor definição para o estado da relação teórica e afetiva de Arendt em relação a Heidegger esteja contido em uma pequena nota que Arendt pretendia entregar a Heidegger como dedicatória ao volume de A condição humana, mas não o fez, em que ela dizia que havia “permanecido fiel e infiel” a Heidegger, “ambas as coisas com amor”.
CULT –- Heidegger foi muito censurado por sua ligação com o nazismo. Isso atingiu Arendt de alguma forma? Sua obra foi de alguma maneira criticada por seu relacionamento com Heidegger?
A.D. – 
Sim, e com alguma frequência. É comum encontrar textos nos quais se critica Arendt como discípula de Heidegger, valendo-se daquela estranha forma de argumento que os americanos denominam de “guilty by association”, ou seja, culpa por associação. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: Heidegger é um filósofo nazista. Hannah Arendt, a despeito de ser judia, foi sua amante e permaneceu sua discípula confessa. Logo, ela é não apenas afetivamente débil, pois traiu o amor por seu povo para entregar-se duas vezes aos braços do inimigo, mas também uma pensadora cujas teorias estão marcadas pelo elitismo vanguardista da filosofia da existência alemã, devendo, portanto, ser recusada. O caráter caricatural dessa formulação expressa bem o absurdo desse tipo de avaliação da relação intelectual entre dois pensadores originais. Nenhum pensador digno desse nome se deixa simplesmente “influenciar” por outro; aliás, basta pensar seriamente sobre a própria ideia de “influência” teórica – uma troca de fluidos? – para reconhecer sua fragilidade. Pensadores de estatura pensam por si próprios, respondem à provocação e ao apelo do já pensado por outros grandes pensadores, mas jamais se contentam com a posição de discípulo.
CULT – Por que Heidegger nunca deu muita atenção à obra de Arendt? 
A.D. –
 Creio que quando ambos se conheceram, entre 1924 e 1925, o pensamento de Heidegger já havia alcançado um ponto de maturidade em vista do qual ele dificilmente viria a ter olhos para o pensamento daqueles que o sucederam no tempo. Assim, Heidegger foi o mestre que pôs a caminho o pensamento de autores tão diferentes e importantes como Arendt, Gadamer, Jonas e Marcuse, para limitar-me apenas a alguns de seus mais famosos alunos, mas nenhuma obra produzida por eles teve impacto no pensar heideggeriano. A questão fundamental do pensamento de Heidegger, a chamada questão do ser, formulada e reformulada incessantemente ao longo de mais de 60 anos de vida dedicados à tarefa do pensamento, não é uma questão do presente contemporâneo. Ela é extemporânea, ou extraordinária, como o próprio Heidegger o reconhecia; não se encaixa no rol de prioridades e urgências do mundo contemporâneo e sua relação com o tempo não se pauta pelo tempo cronológico e sequencial dos calendários. Para muitos, a obsessão heideggeriana com a questão do ser é incompreensível e mesmo uma aberração idiossincrática: como é que alguém ainda pode levar a sério a formulação de uma ontologia depois de Kant? Entretanto, que a questão do ser tenha sido esquecida e que já não tenhamos mais olhos e ouvidos para ela, não quer dizer que justamente esse esquecimento não esteja relacionado com certo diagnóstico crítico e contundente a respeito de nosso próprio tempo. Ou seja, no centro desse pensamento que se ocupa não com o eterno ou com o que estaria fora do tempo, mas com o imemorial, se encontra o nosso próprio tempo e a preparação expectante da possibilidade de um novo começo.
CULT – Como Arendt inspirou Heidegger em Ser e tempo?
A.D.
 Essa pergunta não tem como ser respondida. Arendt tinha 18 anos quando se apaixonou por Heidegger. Ele tinha 35 e estava a ponto de tornar-se um clássico do pensamento filosófico ocidental. De um ponto de vista estritamente teórico, é mais do que improvável que a bela aluna pudesse contribuir na gestação da grande obra inacabada que foi Ser e tempo. No entanto, quem conhece o texto sabe da importância conferida por Heidegger às chamadas disposições afetivas, reconsideradas de maneira a desfazer a pronta identificação tradicional entre o humor e o irracional ou o subjetivo. Humores e afetos dizem muito a respeito do ser do existente, dizem como alguém está ou se encontra aqui e agora e, se bem compreendidos, elucidam aspectos ontológicos fundamentais do próprio existir. Sabe-se a importância que a disposição afetiva da angústia ocupa no pensamento de Heidegger, dos anos 20 até o início dos anos 30. Mas não apenas ela, pois ele também reflete longamente sobre o tédio, bem como menciona, aqui e ali, o caráter desvelador da alegria, do júbilo e do próprio amor. Giorgio Agamben tem um belo texto no qual reflete sobre o modo como Heidegger pensa o amor. Heidegger teria afirmado a Arendt que ela fora a grande paixão de sua vida, a força ins-pi-radora de seu pensamento no momento em que elaborava Ser e tempo. Antes mesmo de se apaixonar por Arendt, Heidegger já se encontrava fascinado pela concretude situada e afetiva do pensamento, que jamais foi para ele uma atividade desencarnada, especulativa. Se a paixão por Arendt se encontra, de algum modo, presente em Ser e tempo, isso só pode ser pensado em um sentido muito difuso, mas não menos interessante. A despeito da frieza conceitual do tratado, tampouco se lhe pode negar ser obra de um pensamento 
apaixonado.

Fabiano CuriJornalista e professor universitário
  • Hannah Arendt 

    Selo em homenagem a Hannah ArendtHannah Arendt (Linden, 14 de Outubro de 1906 — Nova Iorque, 4 de Dezembro de 1975) foi uma teórica política alemã, muitas vezes descrita como filósofa, apesar de ter recusado essa designação. Emigrou para os Estados Unidos durante a ascensão do nazismo na Alemanha e tem como sua magnum opus o livro "Origens do Totalitarismo". 

    Biografia 
    Nascida numa rica e antiga família judia de Linden, Hanôver, fez os seus estudos universitários de teologia e filosofia em Königsberg (a cidade natal de Kant, hoje Kaliningrado). Arendt estudou filosofia com Martin Heidegger na Universidade de Marburgo, relacionando-se passional e intelectualmente com ele. Posteriormente Arendt foi estudar em Heidelberg, tendo escrito na respectiva universidade uma tese de doutoramento sobre a experiência do amor na obra de Santo Agostinho, sob a orientação do filósofo existencialista Karl Jaspers. 

    A tese foi publicada em 1929. Em 1933 (ano da tomada do poder de Hitler) Arendt foi proibida de escrever uma segunda dissertação que lhe daria o acesso ao ensino nas universidades alemãs por causa da sua condição de judia. O seu crescente envolvimento com o sionismo levá-la-ia a colidir com o anti-semitismo do Terceiro Reich o que a conduziria, seguramente, à prisão. Conseguiu escapar da Alemanha e passou por Praga e Genebra antes de se mudar para Paris, onde trabalhou pelos 6 anos seguintes com crianças judias expatriadas e onde conheceu e tornou-se amiga do crítico literário e místico marxista Walter Benjamin. Foi presa (uma segunda vez) em França conjuntamente com o marido, o operário e "marxista crítico" Heinrich Blutcher, e acabaria em 1941 por partir para os Estados Unidos, com a ajuda do jornalista americano Varian Fry. 

    Trabalhou nos Estados Unidos em diversas editoras e organizações judaicas, tendo escrito para o "Weekly Aufbau". Em 1963 é contratada como professora da Universidade de Chicago onde ensina até 1967, ano em que se muda para a New School for Social Research, instituição onde se manterá até à sua morte em 1975. 

    O trabalho filosófico de Hannah Arendt abarca temas como a política, a autoridade, o totalitarismo, a educação, a condição laboral, a violência, e a condição de mulher. 

    O primeiro livro "As origens do totalitarismo" (1951) consolida o seu prestígio como uma das figuras maiores do pensamento político ocidental. Arendt assemelha de forma polêmica o nazismo e o comunismo, como ideologias totalitárias, isto é, com uma explicação compreensiva da sociedade mas também da vida individual, e mostra como a via totalitária depende da banalização do terror, da manipulação das massas, do acriticismo face à mensagem do poder. Hitler e Stalin seriam duas faces da mesma moeda tendo alcançado o poder por terem explorado a solidão organizada das massas. Sete anos depois publica "A condição humana" e enfatiza a importância da política como ação e como processo, dirigida à conquista da liberdade. Publica depois "Sobre a Revolução" (1963), talvez o seu maior tributo para o pensamento liberal contemporâneo, e examina a revolução francesa e a revolução americana, mostrando o que têm de comum e de diferente, e defendendo que a preservação da liberdade só é possível se as instituições pós-revolucionárias interiorizarem e mantiverem vivas as idéias revolucionárias. Lembraria os seus concidadãos americanos (entretanto adquiriria a nacionalidade americana) que se se distanciassem dos ideais que tinham inspirado a revolução americana perderiam o seu sentido de pertencer e identidade. 

    Ainda, em 1963, escreveria "Eichmann em Jerusalém" a partir da cobertura jornalística que faria do julgamento do exterminador dos judeus e arquitecto da Solução Final para a The New Yorker. Nesse livro impressionante revela que o grande exterminador dos judeus não era um demônio e um poço de maldade (como o criam os activistas judeus) mas alguëm terrível e horrivelmente normal. Um típico burocrata que se limitara a cumprir ordens, com zelo, sem capacidade de separar o bem do mal, ou de ter mesmo contrição. Esta perspectiva valer-lhe-ia a crítica virulenta das organizações judaicas que a considerariam falsa e abjurariam a insinuação da cumplicidade dos próprios judeus na prática dos crimes de extermínio. Arendt apontara, apenas, para a complexidade da natureza humana, para uma certa "Banalidade do Mal" que surge quando se condescede com o sofrimento, a tortura e a própria prática do mal. Daí conclui que é fundamental manter uma permanente vigilância para garantir a defesa e preservação da liberdade. 

    Arendt regressaria depois à Alemanha e manteria contato com o seu antigo mentor Martin Heidegger, que se encontrava afastado do ensino, depois da libertação da Alemanha, dadas as suas simpatias nazis. Envolver-se-ia, pessoalmente, na reabilitação do filósofo alemão, o que lhe valeria novas críticas das associações judaicas america

Filosofia em tempos sombrios


Para compreender a terrível novidade política do século XX – o totalitarismo e o Holocausto – a filósofa Hannah Arendt elaborou conceitos inéditos


Eduardo Jardim

1/6/2013

  • Quando as teorias conhecidas se tornam incapazes de dar conta dos horrores da realidade, é preciso imaginar novas formas de pensar. Hannah Arendt foi uma das poucas personalidades da história intelectual do século XX a se propor esta tarefa. No seu caso, isto se deu de forma articulada com sua trajetória pessoal, já que ela, judia, acompanhou de perto o que se passou na Alemanha de Hitler.
    Hannah Arendt nasceu em 1906, em uma família judaica, de Koenisgberg, na Alemanha oriental. Teve uma educação laica e muito cedo se interessou por filosofia, teologia e literatura. Aos 18 anos entrou para a universidade em Marburgo, onde conheceu um jovem professor, Martin Heidegger (1889-1976), com quem teve um relacionamento e de quem ficaria próxima até sua morte, com alguns longos intervalos, inclusive por causa da colaboração do filósofo com o regime nazista. A influência de Heidegger sobre seu pensamento é enorme. Na época, ele preparava Ser e tempo, que viria a ser o seu livro mais importante, publicado em 1927. Pode-se imaginar que Hannah Arendt tenha sido uma leitora atenta do texto em elaboração.
    Ela estava em Berlim quando os nazistas tomaram o poder, em 1933. Foi presa e conseguiu escapar para Paris, onde viveu até 1940. Com a invasão da França, foi recolhida em um campo de refugiados. De novo escapou, chegando finalmente a Nova York em março de 1941.
    Foi nos Estados Unidos, em 1943, que tomou conhecimento da existência dos campos de concentração na Europa. A descoberta foi decisiva para a elaboração de toda a sua obra, como ela afirmou em uma entrevista de 1964. Explicou a certa altura: “Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós... Auschwitz não poderia ter acontecido. Lá se produziu alguma coisa que nunca chegamos a assimilar”.A filósofa constatou que não dispunha de recursos conceituais para explicar a terrível novidade. Todas as noções herdadas da tradição se mostravam inadequadas para descrevê-la. Nos anos seguintes, Hannah Arendt concentrou esforços na preparação de uma interpretação da experiência política central do século XX: o totalitarismo.
    Seu livro Origens do totalitarismo, lançado em 1951, logo chamou a atenção. Nele, mostrava que os regimes totalitários eram os únicos a explorar politicamente a situação de solidão do homem de massas surgido nas sociedades industriais. O totalitarismo é mais radical que qualquer forma de tirania ou de ditadura. Estas dependem do isolamento político dos homens, mas mantêm intactas tanto a esfera privada quanto as atividades intelectuais. O nazismo e o comunismo – as duas experiências a que Hannah Arendt aplica o conceito de totalitarismo – devassaram a vida privada e reduziram toda a produção intelectual às ideologias, explicações fechadas do mundo. Com sua lógica implacável, as ideologias têm a função de justificar o terror nos regimes totalitários.
    A interpretação de Hannah Arendt contrariava uma visão corrente que definia o totalitarismo como forma exacerbada de autoritarismo. A filósofa, muito ao contrário, entendeu que o totalitarismo surge da quebra da autoridade política. Os regimes totalitários são a expressão da crise da política, acentuada no final do século XIX com as várias formas de imperialismo.
    Nos anos seguintes, Hannah Arendt ampliou seu diagnóstico dos impasses vividos no mundo moderno. Ela afirmou que nossa civilização se funda em um tripé formado pela religião, pela tradição intelectual e pela autoridade política. Desde o século XVI, em momentos diferentes, cada uma destas bases ruiu. A Reforma Protestante provocou o abalo da religião, as descobertas científicas do século XVII puseram por terra a maneira tradicional de pensar e, por último, o surgimento dos regimes totalitários desvendou a dimensão política da crise da modernidade.
    O principal livro em que Hannah Arendt tratou da crise do século XX foi Entre o passado e o futuro (1961), no qual reuniu ensaios sobre temas tão diversos como história, autoridade, tradição, liberdade, cultura e educação. Para a autora, esses textos eram exercícios de pensamento e, por isso, apresentavam mais indagações do que respostas. O cenário do mundo contemporâneo, que surge nestes ensaios, é o de um tempo sombrio, a exigir uma severa reconsideração da história.
    Hannah Arendt alinhava-se assim a autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Walter Benjamin (1892-1942), de quem fora amiga. Como eles, avaliou com rigor os impasses da contemporaneidade e expôs sua perplexidade. Ao mesmo tempo, os três não foram filósofos negativistas. Entenderam que a experiência de crise tem também uma dimensão liberadora, e se indagaram: quem sabe, depois do colapso da tradição, poderemos ver com os olhos livres e ter acesso a novas formas de agir e de pensar?
    Há nos escritos de Hannah Arendt esta dupla preocupação: propor um diagnóstico de sua época e abrir caminho para definições inovadoras da política e da própria atividade do pensamento. Publicado em 1958, o livro A condição humana é considerado sua maior contribuição para a teoria política. Além de ter um viés histórico, presente sobretudo no último capítulo, “A Vita Ativa e a  Era Moderna”, que aponta o fenômeno da alienação como principal característica da modernidade, seu objetivo central é elaborar uma teoria da ação, a atividade humana que constitui a matéria-prima da vida política.
    vita ativa, como ela chamou, abriga todas as atividades do homem no seu contato com o mundo. Elas são três: o labor, isto é, o processo biológico responsável pela manutenção da vida; o trabalho, que cria um ambiente estável e duradouro para os homens; e a ação, que se dá quando os homens estabelecem relações entre si. É na vida política que os homens experimentam sua capacidade de agir. Hannah Arendt destacou dois aspectos centrais da ação para a conceituação da experiência política: a imprevisibilidade e a irreversibilidade. Nunca somos senhores dos processos que desencadeamos com nossas iniciativas e, diferentemente do que ocorre no contato com a natureza, não podemos desfazer as ações que começamos. Os únicos recursos para lidar com isto são a nossa capacidade de prometer e conseguir alguma estabilidade e de perdoar e estabelecer um novo começo.
    Hannah Arendt dedicou-se também a examinar a história das revoluções modernas, a francesa e a americana, em Sobre a Revolução (1963). O livro antecipa em muitos pontos a revisão do significado da Revolução Francesa, que seria feita nas décadas seguintes e abalaria o tom exclusivamente entusiástico da história oficial. Esta continua sendo uma das obras mais brilhantes sobre história moderna, apesar do tom desencantado dos últimos capítulos.
    Renomada nos Estados Unidos desde a publicação de Origens do totalitarismo, Hannah Arendt era muitas vezes chamada a debater temas daqueles tempos – o conflito racial, a corrida espacial, o movimento estudantil, a política do Pentágono, a tensão na Palestina, a situação alemã do pós-guerra, o Estado de Israel. Sua correspondência com o mestre e amigo Karl Jaspers é um precioso depoimento sobre o mundo no segundo pós-guerra.
    Em 1960, foi incumbida de uma missão inédita e histórica: como correspondente da revista The New Yorker, viajou para Jerusalém para assistir ao julgamento do nazista Adolf Eichmann. Sua série de reportagens foi reunida, três anos depois, no livro Eichmann em Jerusalém, que trazia o subtítulo Um relato sobre a banalidade do mal. A publicação provocou uma longa e tensa polêmica envolvendo basicamente o significado do subtítulo do livro. A autora foi acusada de considerar banais os crimes de Eichmann, quando na verdade o que fazia era chamar a atenção para a futilidade de suas motivações. Abatida com as reações negativas ao livro, inclusive as de amigos próximos, ela também sofreria naqueles anos a perda do marido, Heinrich Blücher, e de Karl Jaspers, seu orientador de doutorado e interlocutor de longa data.
    Nos últimos anos de vida, Hannah Arendt retornou à filosofia. Deu início à obra A vida do espírito, em que se ocuparia do pensar, do querer e do julgar. Toda atividade do espírito, especialmente o pensamento, depende da interrupção do contato imediato com o mundo. Esta postura desinteressada é fundamental para serem postos em questão os preconceitos e os hábitos mentais estabelecidos. Por isso mesmo, ela argumentava que Eichmann praticara seus crimes porque fora totalmente incapaz de tomar distância e criticar as ordens que recebia. A vida do espírito descreve um movimento em dupla direção: de um lado, o pensamento promove o afastamento do mundo, do outro, o juízo assegura uma aproximação. Hannah Arendt dedicava-se à última parte, sobre o juízo, quando morreu, em 1975, em Nova York.
    No prefácio do belo livro Homens em tempos sombrios, em que retrata algumas figuras centrais do século XX, Hannah Arendt afirma que essas personalidades são como pequenas luzes a servir de orientação em épocas de sofrimento e perplexidade. Trata-se de uma definição perfeita para ela mesma. Em nossa própria época, sua figura é iluminadora.

    Eduardo Jardimé autor de A duas vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz (Civilização Brasileira, 2007) e Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início (Civilização Brasileira, 2011)


    SAIBA MAIS - Bibliografia
    ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
    LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
    SOLJENÍTSIN, Alexandre, Arquipélago Gulag. São Paulo e Rio de Janeiro: Difel, 1976.

A Humanidade segundo Hannah Arendt

Filme retrata produção de famoso livro da filósofa alemã

 em sua busca por responder qual é o caráter principal do Homem

Nashla Dahás e Ronaldo Pelli
19/7/2013 

  • Hannah Arendt
    Dir.: Margarethe Von Trotta, Alemanha, 2013


    O longa-metragem, que, em certos momentos peca por um certo exagero dos atores, o que tira a naturalidade das cenas, não é exatamente uma cinebiografia da filósofa alemã de origem judia que migrou para os EUA para fugir da Segunda Guerra Mundial. Foca em um determinado episódio na história da autora de As origens do totalitarismo que ilumina, provavelmente, a principal discussão da sua vida: qual é A condição humana [não por acaso, nome de outro de seus clássicos]?
    Trata-se de uma tentativa desafiadora de reconstituição dos caminhos percorridos pelo pensamento da filósofa na construção do que ela chamou de “banalidade do mal”. Desafiadora, porque instalada no campo do pensamento, do “indizível”. Daquilo que exigirá do expectador não apenas a compreensão racional de um diálogo despreocupado com a incompreensão do grande público, mas uma “epistemologia do tato”, como dizem alguns estudiosos do período renascentista. O olhar cuidadoso para a singularidade do humano em um fenômeno histórico que se tornaria paradigma universal da maldade.  
    Já morando em Nova York e com a sua vida completamente estabelecida, entre aulas na universidade, amigos e um marido a quem ela demonstra muito carinho, Hannah Arendt recebe a informação de que o famoso nazista Adolf Eichmann tinha sido preso pelo serviço secreto israelense em Buenos Aires e seria levado para julgamento em Israel. Ela, mesmo que não tivesse qualquer ligação direta com o caso, envia uma sugestão para a conceituada revista “The New Yorker” se oferecendo para cobrir, por eles, o processo.
    Já na “terra sagrada”, ela assiste à dura rotina de depoimentos de testemunhas, de vítimas que passam mal em júri, e do próprio Eichmann. Em vez de admitir qualquer culpa no extermínio de milhares de homens e mulheres, o alemão se declara um mero cumpridor de ordens, um homem que simplesmente obedecia ao Führer. Mesmo que para isso tivesse que matar o próprio pai, naquele momento, ele era um soldado sem direito a retrucar as ordens enviadas. Hitler era a lei.
    Para o julgamento, a diretora optou pelas imagens de época, absolutamente impactantes. Toda a vasta historiografia sobre o nazismo se vê confrontada com a espontaneidade do sujeito gripado, enjaulado diante do júri a dizer que sua função era fazer os vagões que traziam os judeus apenas seguirem seu curso. Através dos olhos fixos de Arendt não se vê a História do nazismo em julgamento, a tragédia humana do assassinato dos seis milhões de judeus em discussão, mas um homem, um burocrata, expropriado de sua capacidade de pensar.
    Hannah Arendt fica impressionada, com o argumento e com o aspecto do réu. Ele parece tão normal, tão comum, tão banal, tão humano... E se ele não é o autor da ordem, seria ele o responsável pelas mortes dos judeus nos campos de concentração? Se ele é apenas o instrumento da ação de um Estado totalitário, ele seria igualmente culpado pelos crimes?
    “As perguntas precisam ser feitas”, ela diz. Hannah Arendt passa a maior parte do tempo buscando a origem do incômodo que aquele sujeito provoca nela. A ausência de soberania do homem e não o julgamento da ilegalidade do Estado que ele poderia, naquele momento, representar. Na contramão da cultura ocidental que criou os conceitos de universalidade, identidade e homogeneidade, ao ponto de permitir a formação do totalitarismo, Arendt nos leva ao estranhamento do óbvio, do mais simples cálculo histórico que gerou a dicotomia demonização/vitimização como explicativa das catástrofes do século XX.
    A resposta para todas as questões apresentadas até o momento neste texto é a mesma, e é insinuada logo no início do filme.
    No início de sua vida intelectual, ainda bem antes da Segunda Guerra, Arendt decide ir estudar com um dos maiores filósofos do século XX, o igualmente alemão Martin Heidegger. Mesmo que anos depois Heidegger tenha colaborado com o regime nazista, os dois se aproximam e tem um caso de amor. Apesar das diferenças no campo político, os dois mantém uma relação bastante próxima durante toda a vida, “depois de 46 anos, como desde sempre”, ela diria em uma das inúmeras cartas trocadas entre ambos.
    Na cena em que a jovem Hannah se encontra com o já renomado professor, ele lhe pergunta: Então você quer aprender a pensar? Com a confirmação de Hannah, ele responde: O pensamento é algo solitário, e não é apenas racional, mas envolve as mais variadas emoções.
    A filósofa, já de volta a Nova York, se instala sobre o divã, fumando. Fica pensando o caso. Pensando o que tinha visto no julgamento, pensando as conversas que tinha tido com o seu mentor: “a morada do pensamento é um lugar de silêncio”.
    Em fins de 1969, ela chega a escrever sobre a importância da recordação para a história do pensamento. É o “aproximar-se da distância” que garante, segundo a filósofa, a possibilidade do pensar como uma aptidão mental.
    Hoje, talvez, a “distância” de Arendt em relação aos fatos possa ser considerada um tanto precoce. Foram apenas 15 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial até que ela pudesse afirmar, entre outras coisas, que a estratégia nazista consistiu em despersonalizar a sociedade e desumanizar suas vitimas ao ponto de criar uma zona ambígua entre a colaboração e a resistência, dentro e fora dos campos de concentração. Exemplos de como esse processo acontecia em todos os lugares, e não apenas nos campos, são os casos da maior parte dos países latino-americanos que criaram legislação para impedir a entrada de refugiados judeus. Ou a França de Vichy, que discute incansavelmente e sofre até hoje com suas dores de consciência.
    Com essa pequena “distância” de tempo, mas já tendo estourado o seu prazo, e demonstrando arrogância com as pessoas de fora do seu círculo de amizade, uma atitude quase exótica àquela personagem dócil de dentro de casa, Arendt entrega o texto final. Logo depois, esta obra seria transformada no livro "Eichmann em Jerusalém" e causaria a provável maior controvérsia na sua vida.
    Fazendo uma reportagem filosófica, digamos assim, Hannah Arendt não apenas desenvolve teses sobre o que viu ou pensou, mas também descreve o cotidiano do julgamento. Em uma de suas descrições, ela fala que houve uma espécie de conivência entre as lideranças judias e os comandos nazistas. Conivência essa que talvez tenha sido vista como uma forma de sobrevivência num primeiro momento, mas que, para ela, causou mais mortes no fim das contas.
    Essa passagem, que não era nem próximo do ponto principal a que ela se agarrava, lhe causou uma inundação de cartas e ameaças. Judia, ela era acusada de trair o movimento sionista. Mesmo que ela dizia que sua pátria não era a Alemanha, Israel ou os EUA, mas os seus amigos. “Nunca me senti como uma mulher alemã e já deixei há muito de me sentir como uma mulher judia”, afirmava desde os anos de 1950.
    Ao que parece, o pensamento construído por Arendt não resulta de um conflito de consciência, ou de um dever moral, mas de uma questão existencial. O que a filósofa queria deixar claro era que, para ela, Eichmann, assim como todos os homens e mulheres afetados diretamente ou indiretamente pelo nazismo, tinham perdido o dom mais precioso de suas vidas: a humanidade. Pensar não é uma atitude contemplativa, “é um ofício austero, longo e rigoroso”, é o que torna o ser Humano. E o totalitarismo tinha retirado a capacidade dos homens e mulheres de pensar, do jeito que Heidegger sugeriu. Essa é uma das características principais do totalitarismo.
    Fossem nazistas ou judeus, alemães ou poloneses, os homens e as mulheres se transformaram em seres sem vida, que ou repetiam ordens sem refletirem sobre, ou lutavam única e exclusivamente por sua sobrevivência. Para Arendt, o homem não sobrevive, o homem vive. Daí, de uma maneira geral, o totalitarismo nazista teria atingido a todos, sem determinações geográficas.
    O filme sugere que o que torna um homem, Homem é o ato de pensar, não no sentido de repetir automaticamente as decisões racionais, mas se envolver com as questões de maneira mais profunda, mais emotivamente, em suma, de maneira mais humana.
    Em uma carta de Hannah Arendt para Martin Heidegger datada de setembro de 1969, ela parece confirmar esse raciocínio:“Estamos tão habituados à antiga contraposição entre razão e paixão, espírito e vida, que nos espantamos em certa medida com a representação de um pensamento apaixonado, no qual pensar e viver se unificam. Este pensamento que se alça enquanto paixão a partir do simples fato de ter-nascido-em-um-mundo e então ‘procura seguir com o pensamento o sentido que vige em tudo o que é’ comporta tão pouco uma meta derradeira - o conhecimento ou o saber – quanto a própria vida.”
    E completa em seguida:
    “O fim da vida é a morte, mas o homem não vive por causa da morte. Ele vive porque é uma essência vital; e ele não pensa por causa de um resultado qualquer, mas porque é uma essência ‘pensante, isto é, meditativa’”.
    Ao fim, à janela, e fumando e pensando, como sempre, o ciclo do pensamento se fecha com o que parece ser mais próprio da filosofia partilhada por Hannah Arendt e Martin Heidegger. “De todas as críticas que recebi, ninguém foi capaz de me fazer aquela única que eu respeitaria. O mal não pode ser banal e radical ao mesmo tempo”.  Esta é a “qualidade cáustica” do pensamento: “ele deve se comportar em relação aos seus próprios resultados de maneira caracteristicamente destrutiva ou crítica
  • O que torna um homem, Homem? Seriam os aspectos biológicos, uma junção de células que criam carnes, ossos, tendões, tecidos dos mais variados? Ou haveria algo além da mera questão evolutiva? Um caráter de humanidade, que diferencia o homem dos demais animais? Uma das mais importantes discussões que perpassa toda a história da filosofia, esta questão é o tema principal do filme “Hannah Arendt”, da diretora alemã Margarethe Von Trotta.


Fontes: 
Wikipédia
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/filosofia-em-tempos-sombrios
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/ela-judia-ele-nazista/
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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