Autora do capítulo sobre povos indígenas do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), trazido a público em dezembro de 2014, encaminhou ontem, terça-feira, uma carta a todos os ministros do Supremo Tribunal Federal para sensibilizá-los sobre o equívoco da tese do “marco temporal” e o entendimento enviesado do que significa “o renitente esbulho”. Dada a importância do conteúdo dessa manifestação, reproduzimos abaixo o texto integral da carta – disponível no site da Mobilização Nacional Indígena em PDF. (Henyo Barretto)
São Paulo, 9 de Abril de 2015
Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, Membro do Supremo Tribunal Federal
Na condição de cidadã brasileira e ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – órgão de Estado criado por meio da Lei nº 12.528, de 18 De Novembro De 2011, e cujo mandato terminou no dia 16 de dezembro de 2014 – escrevo mui respeitosamente, para fazer chegar às mãos de Vossa Excelência cópia integral do capítulo denominado “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”, que compôs o Volume II do Relatório Final apresentado pela CNV como resultado de cerca de 2 anos e 8 meses de pesquisas a respeito das graves violações de direitos humanos praticadas sob o patrocínio do Estado Brasileiro contra diversos setores da população brasileira, no período de 18 de setembro de 1946 até a 5 de outubro de 1988.
Acredito que as conclusões da CNV consubstanciadas no capítulo que aqui encaminho – e que são resultado das pesquisas do Grupo de Trabalho por mim presidido, criado por meio da Resolução nº 5/2012, com o objetivo de investigar “violações de direitos humanos, praticadas por motivação política, relacionadas à luta pela terra ou contra os povos indígenas” – são de extrema importância para o Judiciário Brasileiro, que nesse momento se encontra com a responsabilidade histórica de arbitrar diversos conflitos relacionados a processos de demarcação de terras indígenas.
Embora os povos indígenas tenham tradicionalmente sido pouco considerados nas discussões sobre o processo de justiça transicional brasileiro, a CNV contabilizou uma estimativa inicial de que “ao menos 8.350 indígenas [foram] mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”, reconhecendo ainda que o “número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada, e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”. Mesmo que não tenha sido possível individualizar essas vítimas letais, pelo curto tempo que tivemos para dar conta de tarefa tão ampla, é importante sublinhar que esse número de mortos indígenas ultrapassa em quase vinte vezes aqueles que puderam ser individualizados para contabilizar na lista oficial dos mortos e desaparecidos políticos.
Não obstante, números não podem dar conta da descrição dos horrores a que o Estado Brasileiro submeteu os povos indígenas durante esse período, que incluíram genocídio de povos inteiros para a abertura de rodovias e outros projetos de colonização, torturas dos mais variados tipos, proibição do uso das suas línguas maternas, desagregação deliberada de povos inteiros, e, sobretudo, remoções forçadas e esbulho territorial. Com farta base documental e testemunhal, a CNV pode concluir que “os diversos tipos de violações dos direitos humanos cometidos pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas no período aqui descrito se articularam em torno do objetivo central de forçar ou acelerar a ‘integração’ dos povos indígenas e colonizar seus territórios sempre que isso foi considerado estratégico para a implementação do seu projeto político e econômico.”
Foi por esse motivo, Vossa Excelência, que no último parágrafo do capítulo mencionado, pôde-se afirmar que “o Estado brasileiro, por meio da CNV, reconhece a sua responsabilidade, por ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum”, recomendando ainda, dentre outras coisas – além de um “pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas” – a “regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial, aqui relatados, conforme o determinado na Constituição de 1988″.
Embora não exerça mais o mandato de integrante da CNV, e por isso não tenha em meu poder nenhum instrumento capaz de realizar as recomendações que essa importante Comissão de Estado formulou, não posso deixar de manifestar-me enquanto cidadã brasileira, no sentido de expressar enorme preocupação com recentes decisões proferidas pela eminente 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que resultaram na anulação de processos de demarcação de terras indígenas realizados pela União em cumprimento de seu dever constitucional.
Duas dessas decisões, aquelas relacionadas às Terras Indígenas Guyraroka(1) (do povo Guarani Kaiowa) e Limão Verde(2) (do povo Terena), incidem no Estado do Mato Grosso do Sul, região amplamente estudada pela CNV e onde pudemos comprovar a responsabilidade direta do Estado Brasileiro no processo de confinamento territorial que foi imposto a esses dois povos durante o período investigado pela CNV (1946-1988).
Após conhecer com mais profundidade a realidade e a história de violência para com os povos indígenas do nosso país, Vossa Excelência, e por acreditar firmemente que a anulação desses processos de demarcação só vai eternizar um conflito cujo acirramento – senão em alguns casos a origem mesma – se deu no período de investigação da CNV, é que através dessa carta faço um apelo para que o Supremo Tribunal Federal não penalize uma vez mais os indígenas que lutam por suas terras originárias, em um impasse humanitário que tem o Estado brasileiro como o principal responsável histórico.
Preocupa-me, especialmente, a forma mecânica através da qual a 2ª Turma do STF buscou aplicar o chamado “marco temporal de 1988”, em sede de mandato de segurança, e, portanto, sem a possibilidade de produção de provas e tampouco análise pormenorizada das situações concretas em jogo. E considero arriscada a concepção do que foi considerado “esbulho renitente” em voto do eminente Ministro Teori Zavascki, no recurso impetrado contra a demarcação da Terra Indígena Limão Verde.
A história mostra que são múltiplas as formas de resistência indígena diante de situações de expropriação territorial e, na maioria dos casos que analisamos na CNV, pudemos verificar que os indígenas expulsos ou impedidos à força de ocuparem seus territórios foram obrigados a adotar estratégias para evitar o confronto direto a fim de conseguirem permanecer usufruindo de suas terras tradicionais, mesmo que de maneira precária. Exemplos disso são os recorrentes e documentados casos de permanência nos fundos das fazendas, como ocorreu na Terra Indígena Guyraroka e também no Limão Verde.
Como imaginar que pudesse ser de outra maneira, diante de adversários que detinham tão evidente superioridade bélica, além do Estado a seu serviço para a expulsão dos indígenas? Entender “o renitente esbulho” como apenas aquele que envolve resistência violenta e continuada por parte dos índios tem como consequência uma incitação a que esses povos optem por estratégias de enfrentamento guerreiro, o que me causa enorme consternação ao vislumbrar o futuro próximo desses conflitos. É isso que desejamos para o país?
Da mesma maneira, Vossa Excelência, como exigir para a caracterização de renitente esbulho a permanência de “controvérsia possessória judicializada” até 1988, como no caso do julgado sobre a Terra Indígena Limão Verde, conhecendo o contexto de exceção do Estado Brasileiro que precedeu a data da promulgação da Carta Magna. Como exigi-lo para verificação de um direito originário quando é apenas a partir de 1988 que os povos indígenas passaram a ser considerados sujeitos dotados de personalidade jurídica própria para defesa dos seus direitos, pois até então eram tutelados juridicamente pelo mesmo Estado que assumiu, através da CNV, sua responsabilidade direta no esbulho destas terras indígenas?
O “constitucionalismo fraternal” do Artigo 231 da nossa carta magna, que fez referência o eminente Ministro Carlos Ayres Britto em seu voto sobre a PET 3388 tem certamente o mesmo espírito reparatório para com os povos indígenas do qual se revestiu a CNV ao propor suas recomendações. Se reconheço a complexidade histórica dos conflitos que envolvem hoje boa parte dos processos de demarcação de terras indígenas que vêm sendo debatidos no âmbito do Poder Judiciário, parece-me evidente que os povos indígenas merecem do Estado a reparação devida pelas graves violações de direitos humanos das quais têm sido vítimas, e não a negação de um direito que conquistaram com muito sangue e que constitui uma das principais bases de um Estado Democrático de Direito que queira superar suas origens colonialistas.
Na esperança de que o capítulo “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”, parte integrante do Relatório Final da Comissão da Verdade, possa trazer novos elementos fáticos que subsidiem futuras decisões desta Suprema Corte a respeito dos processos envolvendo terras indígenas, envio cópia anexa.
Meus mais profundos votos de respeito e consideração.
Maria Rita Kehl
Psicanalista - Ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade
Notas:
1 Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29087
2 Recurso Extraordinário com Agravo nº 803462
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Henyo Barretto.
Fontes:
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http://racismoambiental.net.br/2015/04/15/carta-de-maria-rita-khel-ex-cnv-aos
-ministros-do-stf-sobre-os-direitos-indigenas/
Sejam felizes todos os seres.
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