sábado, 20 de novembro de 2010

SARTRE - O PENSADOR DA ANGÚSTIA


SARTRE, O PENSADOR DA ANGÚSTIA

Francisco Fernandes Ladeira[1]
Resumo: O objetivo deste trabalho é tecer alguns comentários sobre as ideias filosóficas de Sartre com relação à experiência negativa, à duvida, à experiência da náusea, ao vazio existencial ou o nada do ser.
Palavras-chave: Sartre, náusea, existencialismo, dúvida, fenomenologia.

Introdução

Sartre é, talvez entre os filósofos contemporâneos, o que melhor soube exprimir perplexidade e os anseios do homem do nosso tempo, de uma civilização que, marcada por dois conflitos mundiais, vive ainda as consequências funestas de uma desordem e de um desastre, do qual o homem é, em grande parte, culpado.
        
    Sartre, em seus romances, em suas peças de teatro e, em suas obras filosóficas, de modo especial em O ser e o nada, onde expõe sua ontologia fenomenológica, soube expressar com o talento que lhe era inerente, ainda que de maneira radical, a experiência do desengano e de fracasso vivido pelo ser humano, que se vê abandonado em um mundo hostil e contraditório, e que não encontra apoio senão em si mesmo e em sua liberdade, a qual, não obstante, lhe escapa continuamente de suas próprias mãos.

            O homem vive, assim, sua própria existência num mundo adverso, no qual ele é atirado e o qual lhe surge diante dos olhos qual bloco opaco e maciço que não possui nenhuma fresta que esteja a possibilitar a passagem de uma nesga de luz para iluminar a própria existência e que lhe abra a possibilidade de ascender a uma realidade verdadeiramente transcendente.

            Voltando-se para o interior de si mesmo a fim de encontrar aí a razão e o remédio para os seus mais íntimos anseios, a existência humana não encontra, senão, o vazio e o nada do ser. Eis que experimenta seu próprio ser como algo a fugir-lhe continuamente, na medida em que se esforça por conhecer-se e experimentar-se como existência.

A negação, a dúvida, a náusea e o nada do ser

            A experiência negativa pode processar-se dentro de duas posturas básicas. Numa, o indivíduo se entrega a um comportamento passivo, limitando-se a assistir ao que lhe acontece. Esta passividade, por sua vez, pode-se dar em um plano intelectual ou em um plano existencial.
Na outra postura, o indivíduo acede a um comportamento ativo, fazendo da negação o objetivo de sua conquista. Aqui também, esta conquista pode processar-se dentro de uma modalidade tanto intelectual, como existencial.
Obviamente, esta classificação não pretende uma divisão em compartimentos estanques; trata-se muito mais de predominância em um sentido passivo ou ativo, existencial ou intelectual.

Passemos à análise destas posturas. A experiência negativa apresenta-se como passividade intelectual na consciência da própria ignorância. Não se trata da ignorância em si mesma, mas da ignorância que se sabe ignorante. Esta experiência consiste, portanto, em não conhecer a realidade em viver dentro de uma realidade que lhe permanece alheia, estranha. Quando o homem toma consciência deste estranho da realidade, rompe-se, em certa medida, a sua postura dogmática, pois esta tomada de consciência provoca um sentimento de separação, de isolamento. Encontramos aqui uma modalidade de experiência negativa, porque o sentimento do real – das coisas ou de mim mesmo – como que se esfuma dando origem a um sentimento de perda de si dentro da realidade. O homem não sabe ou sabe apenas que é ignorante.

Através de um exemplo poderemos compreender melhor esta experiência. A eficiência de um operário depende de uma certa familiaridade com o instrumento de seu trabalho, a ponto de poder reduzir o seu comportamento a um certo automatismo. Sua eficiência deriva, pois, da segurança do seu agir. Se o seu instrumento, contudo, vier a falhar a sua segurança fica comprometida. Deverá interromper o seu trabalho e deter-se em seu instrumento. Neste deter-se talvez descubra que não domina algo em seu instrumento, que este lhe esconde qualquer coisa. Se isto acontecer, o operário passa de um estado de ignorância à consciência da ignorância, fazendo com o que desapareça sua familiaridade com o instrumento.

Na experiência da ignorância o homem se descobre fundamentalmente passivo, no sentido de que a sofre, podendo ou não reagir contra ela. Porém existe uma modalidade de experiência negativa intelectual que é ativa: a dúvida.
A dúvida em um sentido não niilista, nós a encontramos em Husserl. Se a tese geral supõe um homem perdido no mundo dos objetos, a filosofia deve, segundo Husserl, salvar o homem desta perda, iniciativa que só processa através de uma dúvida.

Suspende-se a existência do mundo, não o negando, mas pondo-o “entre parênteses”, com a finalidade de fazer com que o homem se volte para si através de uma reflexão radical. Assim, o “objetivismo” da postura dogmática desaparece, é abandonado, instaurando-se a filosofia, pois o caminho que leva à perda do mundo é invertido e orientado para a subjetividade do sujeito. O processo de redução permite voltar ao fundamento subjetivo de todas as coisas.

Por mais diversas que sejam as modalidades de dúvida, há um traço comum que as aparenta: em algum sentido se verifica um desligamento do mundo e uma queda em si do sujeito, reduzindo-se a realidade (de modo provisório ou não) a um eu voltado de costas para o real.

A experiência negativa pode dar-se num comportamento de passividade existencial, na qual o sentido da realidade se esvai como que a despeito do homem, independente de seu querer: ele sofre a perda do mundo. Verifica-se uma espécie de passividade, na qual o indivíduo se torna apático e até mesmo abúlico com uma intensidade maior ou menor. Todo o comportamento do homem tende a perder a sua razão de ser, na medida em que a realidade perde sentido.
“[...] Se nada me impede de salvar a minha vida, nada me impedirá de precipitar-me para o abismo” (SARTRE, 1983, p. 97), diz Sartre. E continua: “[...] o suicídio fará cessar a angústia” (SARTRE, 1983, p. 99).

Qual a causa – próxima ao menos – deste estado de prostração existência? Em certos casos ela pode ser reconhecida. Um estado de desespero é provocado, por exemplo, por uma doença grave ou incurável, ou pelo descontrole que pode acompanhar a perda de um ente querido: a saúde ou a pessoa amada davam à existência uma dimensão que ela agora veio a perder.

A própria consciência da morte ou, simplesmente, da brutalidade da condição humana podem estar na raiz de um comportamento de recusa, de desilusão ou de um conformismo que esconde a face do desespero.
Outras vezes, a causa deste estado negativo não chega a ser tão claramente reconhecida, e lucidez é substituída pela vivência da agressividade sofrida, por um sentir-se roubado em sua razão de ser, cujas raízes escapam à consciência. De qualquer maneira, o negativo avassala o homem independentemente de sua vontade.

Jean-Paul Sartre, em seu romance A Náusea, descreveu com um requinte excepcional a experiência da náusea – umas das modalidades de experiência negativa existencial passiva.
Inicialmente, o personagem do romance, Roquentin, vive em um mundo pleno de sentido, mas fundamentalmente dogmático. Retira-se para uma pequena cidade de província a fim de dedicar-se ao estudo biográfico de um político de estatura menor.
Toma essa atitude porque o seu trabalho e todos os seus pressupostos tem sentido: a história humana tem sentido.

Em determinada altura, contudo, sem que ele saiba porque, é invadido pela experiência da náusea. A princípio sente-a de maneira fraca e pouco considerável, mal atingindo as suas pesquisas. Mas, aos poucos, estas experiências, repetindo-se, tomam vulto, chegando a abalar profundamente, totalmente, o mundo dogmático em que até então Roquentin vivera. A náusea termina por invadir sua própria substância, motivando a instauração nele de uma nova visão da realidade.
Em certo momento o personagem tem uma “iluminação” e escreve: 
Gostaria tanto de me abandonar, me esquecer, dormir. Mas não posso, eu sufoco: a existência me penetra de todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca… E de repente, num instante, o véu se rasga, eu compreendi, eu vi. Não posso dizer que me sinta aliviado ou contente; ao contrário, isso me esmaga. Mas minha finalidade foi atingida: eu sei o que queria saber; tudo o que me aconteceu depois do mês de janeiro, eu compreendi. A náusea não me abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não sofro, não é mais uma doença ou uma febre passageira, eu sou a náusea. (SARTRE, 1958, p. 159).
            A náusea sempre é sofrida; mas no início ela acontece sem ser compreendida, para, em certa altura, tornar-se lúcida, uma espécie de revelação: a náusea como sendo o próprio do homem, embora não seja exclusividade sua, pois além da existência humana, invade também a história e o próprio mundo exterior, da natureza.
Éramos um monte de existente constrangidos, embaraçados de nós mesmos, sem a mínima razão de estarmos aí, nem uns nem os outros, cada existente, confuso e vagamente inquieto sentia-se demais em relação aos outros. Demais: esta é a única relação que posso estabelecer entre estas árvores, estas grades, estes seixos. [...] e eu – frouxo, enfraquecido, obsceno, digerindo, agitando mornos pensamentos – eu também era demais (SARTRE, 1958, p. 161-162).
Donde também o absurdo:
E sem nada formular com clareza; compreendi que tinha encontrado a chave da existência, a chave de minhas náuseas, de minha própria vida. Em verdade, tudo que passei a aprender se reduz a esta absurdidade fundamental. [...] Mas eu, há pouco, fiz a experiência do absoluto, do absoluto ou do absurdo. (SARTRE, 1958, p. 190-191).
          
E sobre a história afirma: “A história fala do que existiu – jamais um existente pode justificar a existência de outro existente”. Assim, tudo se transforma em náusea, e eu estou na náusea, ela se identifica com meu próprio ser.  A realidade toda, portanto, perde o seu sentido, e eu mesmo me perco dentro deste sem-sentido, restando apenas a amargura do meu próprio vazio, a compreensão de que eu sou contingência radical, um nada de ser. Com as palavras do próprio Sartre:
“O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não é uma necessidade” (SARTRE, 1958, p. 193). A óbvia conclusão é que “todo existente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso” (SARTRE, 1958, p. 228). E assim o absurdo é o ponto final da realidade.

Conclusão

O importante a observar em experiências como a da náusea ou a da angústia é precisamente esta perda de sentido do real, que faz com que o próprio homem sofra como que uma diminuição, destruindo a tese geral da existência dogmática. O sentido de familiaridade é substituído pela experiência da separação, da ruptura.
            A nosso ver, a passividade existencial negativa pode ser transcendida por dois itinerários básicos.
No primeiro, o homem pode entregar-se e sucumbir diante da experiência negativa adotando, então, uma visão pessimista da realidade ou assumindo, simplesmente, a indiferença, a neutralidade diante de tudo e de todos.

Mas o homem também pode enveredar pelo itinerário oposto, isto é, buscar a superação da experiência negativa na medida em que isto depender de suas forças. E nesta superação, ou bem ele volta ao mundo familiar e dogmático, ao mundo das sombras, neutralizando o efeito daquela experiência radical; ou então, contrariamente, emprenha-se naquela experiência buscando extrair de sua dimensão existencial todo o significado humano que possa oferecer.
A angústia e náusea são sofridas pelo homem a despeito de si, pois o homem prefere o mundo em que vive, e por isso estas experiências se tornam insuportáveis. No mais, o homem não pode controlá-las ou pode-o somente em parte.

Há ainda outra modalidade de experiência negativa, também existência, na qual nós encontramos um homem, não dominado e passivo, mas ativo e lúcido: trata-se do “homem revoltado”.
Realmente o “homem revoltado”, não sofre apenas a perda do mundo; porém, muito mais, ele não quer o mundo, recusa-o, revolta-se contra o mundo, combate-o. O comportamento, neste caso, não se reduz somente a um sentir-se isolado, mas a um querer-se isolado, a uma espécie de teimosia na separação, que implica, em última análise, numa vontade de destruição, de “nadificar e de ser nadificado”, “sartreamente” falando.

Enfim, a consciência do homem revoltado supõe o mesmo processo básico das demais experiências negativas já descritas. O homem vive em um mundo feito, suficiente em sua organização e fundamentalmente adaptado à ela, até que um dia se ergue o “por que?”, donde pode decorrer um sentimento de dissonância com este mundo, a vivência de uma ruptura, a rebeldia que traz como consequência o isolamento, a separação, a até mesmo a experiência do absurdo, da perda de sentido da realidade.


REFEFÊNCIAS

  • SARTRE, Jean-Paul. El Ser e La Nada: Ensayo de Onotología Fenomenológica. Traducción de Juan Valmar. 7. ed. Editorial Losada S.A: Buenos Aires, 1983.
  • SARTRE, Jean-Paul. La Nausée. Paris. Gallimard. 1958. Tradução Thiago Adão Lara. 
Fonte:
CONSCIENCIA:ORG

[1] Especialista em “Brasil, Estado e Sociedade” pela UFJF.
Professor de Geografia do Centro Educacional Aprendiz.
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

Nenhum comentário: