domingo, 22 de julho de 2012

A PEDRA E O CAMINHO :




No meio da pedra havia um caminho

  
publicado em
 
Como justiça poética,
 foi justamente o poema da “pedra no meio do caminho” 
que se tornou emblemático da obra de Drummond
 

Continuação de


Cor age no burilar
a pedra que somos
- filhos de Titãs.
ade.

Porta o louco
o peso do muito pesar
mil pensamentos .
ade.
Cama de pedra
- destino do indolente
fugido de si.
ade

Esconde na carne
Verde idade preciosa
- pedra humana.
ade
 

Nos olhos dos homens
dois faróis infalíveis
faísca de estrelas .
ade
 

"O processo de individuação tem dois aspectos fundamentais: por um lado, é um processo interior e subjetivo de integração, por outro, é um processo objetivo de relação com o outro, tão indispensável quanto o primeiro. Um não pode existir sem o outro, muito embora seja ora um, ora o outro desses aspectos que prevaleça. Há dois perigos típicos inerentes a esse duplo aspecto: um, é que o sujeito se sirva das possibilidades de desenvolvimento espiritual oferecidas pelo confronto com o inconsciente, para esquivar-se de certos compromissos humanos mais profundos e afetar uma "espiritualidade" que não resiste à crítica moral; o outro, consiste na preponderância excessiva das tendências atávicas, rebaixando a relação a um nível primitivo. O caminho estreito entre "Scila e Caribdis", para cujo conhecimento a mística cristã medieval e a alquimia tanto contribuíram, passa por aí."  C.G.Jung

Quem é o “indivíduo” em Drummond? Não por certo o sujeito dissoluto de Foucault, que nunca existirá, mas possivelmente um eu sintético que representa a voz de um inteiro tempo e linguagem, que amadurecem ambos na palavra do poeta. “Minha matéria é o nada...” “o tempo é minha matéria”. Não são declarações humanas – nenhum homem pode reinvidicar tal autonomia sobre a realidade - mas locuções de um arquétipo, divindade que fala pela boca do poeta mesmo que, como Drummond, ele não acredite em um “Deus”. Um pagão entre cristãos como foram os dois Carlos – Drummond e Jung - pode se permitir certas licenças morais imperdoáveis pelo Deus cristão, tais como o adultério, o incesto ou os versos eróticos publicados depois de morto.

 “O Amor Natural” de Drummond foi escrito em idade em que o amor já não parece assim tão natural por ter-se tornado carícia constrangida entre idosos. Os poemas já representavam o gozo como memória por terem sido mostrados ao mundo quando o próprio autor já se revelara naquilo que ele sempre fora: mnemosis. 

Sobre Fernando Pessoa imperava Netuno tridentino, o espírito do mar que é símbolo do inconsciente; em Carlos Drummond de Andrade, como em João Cabral de Melo Neto, é Saturno, o Senhor da Estrutura, regente do tempo, da burocracia, da tradição, da justiça, do destino e essencialmente dos metais e da pedra; enfim, da realidade, a fantasia concreta que é o ambiente imediatamente situado antes do sonho e da imaginação, que é um Nirvana ao alcance do homem ocidental. Saturno educa pela pedra (Cabral). 

É essa imagem arquetípica que está retratada no Moisés de Miguelangelo, representado como um sátiro pagão  que adorna a sepultura de um papa renascentista, exatamente porque o legislador judeu foi a personificação do próprio Saturno, ainda hoje o regente de Israel.

Como justiça poética, foi justamente o poema da “pedra no meio do caminho” que se tornou emblemático da obra de Drummond, nascido em Itabira (“pedra empinada” em tupi), conhecida como cidade do ferro, metal associado simbolicamente a Saturno, tendo sido a cidade o sítio da criação da Companhia Vale do Rio Doce em 1942.

No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Individuação: o indivíduo frente ao seu “destino”.

O indivíduo de Drummond é o da individuação e não o do individualismo. A individuação, conforme descrita por Jung, é um processo mediante o qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação com a cultura para um estado de maior diferenciação em relação a ela, o que implica numa ampliação da consciência mediante a emergência no nível consciente dos conteúdos do inconsciente pessoal e coletivo. Como um deus esquecido, um Dioniso irado que volta para exigir as merecidas reverências, oferendas e sacrifícios, o inconsciente virá, por volta da meia-idade, bater ao portal da consciência levando o individuando a uma identificação com o coletivo. Todavia, mais freqüentemente do que bater palmas ao portão como um mendigo suplicante, o inconsciente tenderá a irromper como um ladrão pelo telhado anunciando o reino de um salvador temerário como aquele descrito por Yeats no poema “A Segunda Vinda”:
“... e que rude fera, chegada finalmente sua era,
Arrasta-se trôpega a Belém para nascer?”
...

“No meio do caminho da nossa vida
Perdido o caminho verdadeiro
Encontrei-me numa selva escura...”
(Primeiros versos da Comédia de Dante Alighieri)

O processo da individuação é dolorosamente paradoxal, podendo ser mal-interpretado como um surto psicótico, pois realizar a individualidade em seu sentido pleno consiste na realização dos valores coletivos, não entendendo-se esta palavra como coletivo social, mas como uma esfera hipotética e pré-humana que produz toda a cultura e civilização. O indivíduo se vê emparedado entre os conteúdos emergentes do inconsciente – o universo interior- e a realidade exterior. As agruras desse processo vividas pelo próprio Jung são relatadas em seu livro “Memórias, Sonhos e Reflexões”. Segundo a psicologia de Jung, que tinha uma abordagem vitalista, o inconsciente coletivo é um dado a priori, pré-categorial a toda realização humana, sendo pré-existente  ao surgimento da própria consciência humana como nós a entendemos modernamente: “entender” ou tentar entender a consciência e a realidade é um ato urubórico, já que o universo como tal é uma manifestação da própria consciência que o estuda e tenta interpretá-lo. 

Assim, filosoficamente, a consciência produz a cultura e a civilização no esforço de se entender a si própria, sendo ela de fato o único objeto e sujeito de toda nossa experiência. Analisemos, como exemplo, o mito moderno da tecnociência; ela não deve ser confundida com as máquinas, artefatos e o modus operandi do cientista e do tecnólogo, mas como uma Weltenschaung ou paradigma, um modo de abordagem da realidade, que não substitui os modos arcaicos do homem dito primitivo, pois a tecnociência estava prefigurada na mitologia, como enxergou o filósofo Schelling (Filosofia da Mitologia). A tecnociência representa o reinado de Atena e Vulcano (Efesto) sobre o Mundo. “Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim”.

"Até o ponto que podemos compreender, o único propósito da existência humana é acender a luz do SENTIDO na escuridão do mero SER.".  (Carl Jung)

Por meio desse processo, o indivíduo, se sobreviver ao embate com o inconsciente, passa a identificar-se menos com as condutas e valores encorajados pelo meio no qual se encontra – o que Jung chamava desdenhosamente de “moedinhas de troco” da cultura  e mais com as orientações emanadas do “Self” ou Si-mesmo, o arquétipo que, segundo a psicologia analítica, representa a totalidade da consciência, mero capítulo do inconsciente e um fruto nascido por último na árvore da alma. A individuação leva-nos a realizar nossos valores essenciais individuais obrigando-nos, sob a pressão do inconsciente, à identificação com o arquétipo da totalidade. A jornada para dentro é uma jornada para fora. Esse princípio está descrito com sensibilidade nos versos do poeta norte-americano Robert Frost:
“Duas Estradas se bifurcam na floresta;
Eu escolhi a trilha menos percorrida.
E isso fez toda a diferença”.

Todavia, a escolha dessa trilha menos percorrida não nasce do arbítrio individual, porque nos vemos empurrados para ela por um sentido de destino algo dramático e mesmo trágico e só quem percorre esse caminho cheio de pedras pode testemunhar a respeito em algum diário de bolso. O “Self”, segundo Jung, é uma “imago dei” grafada ao mesmo tempo na psique de cada homem como no psiquismo coletivo. Conceitos  propostos por ele como “Si-mesmo(Self)” e “inconsciente coletivo” se aproximam da idéia de “anima mundi” ou do Eidos platônico, sugerindo que a psique individual, em seu estrato mais íntimo, é coletiva. Se o conceito de inconsciente coletivo ainda é alvo de polêmica deve-se ao fato de que a coletividade é inconsciente de seu inconsciente.

Entenda-se “totalidade” ali como o conjunto de instâncias psíquicas tais como persona (máscara social), sombra (conteúdos energéticos reprimidos no processo de adaptação do indivíduo ao processo social e cultural) e o “self” ou si-mesmo (em minúscula), que representa a instância profunda da personalidade individual proposta pela natureza. Jung entende que o alcance da consciência dessa totalidade é a meta de desenvolvimento da psique e que eventuais resistências em permitir o desenrolar natural do processo de individuação são causas do sofrimento e da doença psíquica, uma vez que o inconsciente tenta compensar a unilateralidade do indivíduo através do princípio da enantiodromia (termo proposto pelo filósofo pré-socrático grego Heráclito que consiste na suposta tendência que têm as coisas de se tornarem automaticamente no seu contrário).

No caso ocidental judaico-greco-romano-cristão, uma cultura que supervaloriza a razão apolíneo-prometéica, haverá, é previsível, uma tendência compensatória no surgimento de bolsões de irracionalidade estruturada da qual são exemplos a obra de Nietsche e o movimento nazista.

Jung ressaltou que o processo de individuação não entra em conflito com a norma coletiva do meio no qual o indivíduo se encontra, uma vez que esse processo, no seu entendimento, tem como condição para ocorrer que o ser humano tenha conseguido adaptar-se e inserir-se com sucesso dentro de seu ambiente, tornando-se um membro ativo de sua comunidade. Todavia, Jung também descreveu esse processo de um ponto-de-vista menos iluminista e otimista: “o anjo representa destino. Quando ele se apresenta ao indivíduo só lhe resta aceitar ou sucumbir”. O psicólogo suíço afirmou que poucos indivíduos alcançavam a meta da individuação de forma mais ampla, sendo a loucura uma das tragédias possíveis no caminho, caso o indivíduo não tenha uma estrutura de ego consolidada. Esse pode ter sido o caso de Nietsche pai de uma filosofia heróica, mas um pequeno-burguês típico cuja consciência foi engolfada por um tsunami de conteúdos arquetípicos com os quais ele se identificou para fatalidade de sua consciência.  

Segundo Schelling, a mitologia de um povo antecipa seu futuro. Para nossa sorte, nossa civilização judaico-greco-romana e cristã vive num universo que, segundo o nosso mito de origem, nasceu do Verbo, do Significado, enquanto outros mitos primais menos promissores de outros povos falam de uma origem a partir do caos. Por isso mesmo a herança do ocidente concluir-se-á fatalmente com o eclipse de outras culturas pela nossa razão ocidental dominante e antropófaga. Na mitologia germânica, esperava-se um regresso ao caos, quando os próprios deuses morreriam. A obra criativo-criadora raramente nasce de um paraíso de luzes e a contribuição de raros homens como foram Hölderlin e Nietsche mostra que a desrazão é uma razão desconsiderada. A meta de todos os processos da existência se encaminha teleologicamente ao sentido, e esse sentido pode estar escondido além da palavra, como parece ter descoberto o filósofo Wittgenstein em sua aventura na floresta de vidro da linguagem, que acabou por concluir que o sentido do mundo só poderia estar fora do mundo. Finalizando e como homenagem a Drummond modifico alguns dos seus versos no seguinte poema:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

E, como quem pendurasse um desnecessário boné sobre a cabeça da escultura de Drummond, eu tomo emprestados estes últimos versos e contradigo o poeta, para redizê-lo e confirmá-lo:

“Não. As coisas lindas,
Muito mais que findas,
Essas é que ficarão”.

1 Jung afirmava não ter “conceitos”. O extenso léxico que sua psicologia produziu serviria como um dicionário de “nomes e palavras, como para sinalizar uma importante experiência interna – nós precisamos desses nomes para compreender de modo mais ou menos aproximado essas experiências básicas”. 
POR  
 
 EM 10/11/2008 ÀS 06:27 PM 
 i *O autor é poeta com os livros publicados 
-“O Ano do Macaco” pela Editora Navégus, Brasília (1980), 
-“O Vinho Antigo”, pela Editora Céu dos Índios (1995). 
- Tem em preparo “A Rosa do Futuro”. Observação: 
para o conceito junguiano de “individuação”
-foi consultada a Wilkipédia, 
que estava perfeitamente ao alcance da mão. 
O conteúdo, todavia, foi modificado.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjerFq__PI6CmoQGAIyX850VeNBaEdekiXA9WTG6Dsl49qtoJRyd9QXEh1hKV7oSVvszi9u_rJuDF5XxAHsxlfMsd8NTl0yaa8vN5QMa4YfHkdz0ZAqsBXx-M90HPMiq-Ft9c480Udw5ssF/s1600/@raminhoPicasso..bmp
Pablo Picasso

Li-Sol-30
 Fonte:
 http://www.revistabula.com/posts/ensaios/no-meio-da-pedra-havia-um-caminho
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres. 
 Sejam abençoados todos os seres.
 

Nenhum comentário: