Estrutura
Interior do Si-mesmo
Autor: Frederico Eckschmidt (1)
Em "Aion - Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo" Jung teve uma de suas mais brilhantes idéias. De acordo com seus estudos sobre a manifestação do Cristo em "Resposta a Jó", ele desenvolveu finalmente uma fórmula que conecta o arquétipo do Si-mesmo com a estrutura espaço-temporal vivida pela consciência. Seu modelo retrata o dinamismo interior e exterior do Si-mesmo dentro de uma estrutura enantiodrômica, ou seja, ela demonstra como o tempo eterno e arquetípico do Si-mesmo se manifesta no contínuo espaço-tempo.
A partícula enanti(o) vem do grego "enantíos" e significa 'oposto' ou 'contrário'. A formulação permite a visualização do processo onde uma dada posição eventualmente se desloca na direção ao seu oposto e retorna novamente à sua origem. Com isso, nota-se da parte de Jung uma tentativa de fazer, em duas dimensões, uma fórmula que indicasse a união dos opostos ou hierosgamos (núpcia sagrada dos opostos irreconciliáveis).
Dentro da Psicologia Analítica, este conceito indica o processo de individuação onde ocorre a integração dos conteúdos inconscientes e conscientes em um indivíduo ou em toda uma cultura. Individuar-se significa tornar-se quem você verdadeiramente é, ou seja, você realizar (ou encarnar) algo só cada um de nós podemos ser: nós mesmos. Neste difícil processo, o indivíduo deve harmonizar sua personalidade com a estrutura coletiva de sua cultura, integrando seus valores espirituais que geralmente estão em oposição aos desejos do ego individual. Simbolicamente este drama é retratado na antiga tetrametria alquimista que culmina na extração do ouro filosófico.
Para chegar à sua correta compreensão, devemos lembrar que o quatérnio espaço-tempo abaixo é a condição básica para a formação da consciência.
Jung o define
como "a condição
e a possibilidade arquetípica
do conhecimento físico em geral".
É possível observar empiricamente essa manifestação na prática clínica onde ocorre uma desintegração dessa estrutura. Em casos de surtos psicóticos, geralmente ocorre nos pacientes os sintomas de desorientação halopsíquica (espacial e temporal), ou seja, ele não sabe onde está, onde mora, nem o dia da semana ou a hora do dia que ele se encontra.
É importante observarmos aqui que o tempo se comporta de maneira oposta e complementar à tentativa da consciência de estaber uma ordem a um objeto em movimento, ou seja, espacialmente. Para Jung "a relação três: um aparece freqüentemente nos sonhos e nos desenhos espontâneos dos mandalas". Segundo sua teoria:
Desta maneira, para que o objetivo da fórmula enantiodrômica seja atingido, é necessário que estes elementos que estão separados em quatro sejam unificados através de seus opostos. Para isso, duas estruturas devem ser integradas: de um lado a vivência da consciência e do ego (o indivíduo em estado de vigília), estruturado pelo arquétipo espaço-temporal e de outro o espaço-tempo relativo ou inexistente presente no inconsciente (percebido nos transes místicos, por exemplo)."Se considerarmos esta quaternidade sob o ângulo da tridimensionalidade do espaço, o tempo pode ser concebido como uma quarta dimensão. Se, pelo contrário, considerarmos a quaternidade sob o ponto de vista dos três atributos inerentes ao tempo (passado, presente e futuro) então acrescenta-se o espaço estático, no qual se produzem as mudanças de estado, como unidade e como quarto fator. Em ambos os casos, o quarto fator representa algo de incomensuravelmente diverso, o qual, entretanto, é necessário para determiná-los, um em relação ao outro. Assim é que medimos o espaço por meio do tempo e o tempo por meio do espaço. Nas quaternidades gnósticas o correspondente do outro, isto é, do quarto fator, é o 'theos pyrinos' ('o quarto na ordem numérica'), a dupla esposa de Moisés (Séfora e a etíope), o duplo Eufrates (o rio e o Logos), e, no quatérnio dos elementos dos alquimistas, o fogo" (Jung).
Podemos, portanto, expressar uma série de quatérnios em forma de uma equação na qual designamos por A o estado inicial e por A1 o estado final. B, C e D serão os estados intermediários. Nesta fórmula também, A será chamado Anthropos, já que este mitologema é um símbolo perfeito do Si-mesmo. Por ser um mito do ser original que encarnou na união com sua sombra (psicologicamente a manifestação do Si-mesmo), ele também acaba repetindo o movimento do desenvolvimento da consciência e a revolução da concepção de mundo que aconteceu nos últimos dois mil anos.
Portanto, para completar a fórmula _já que também é necessário indicar uma mudança da situação psicológica_, é preciso incluir a noção de equivalência ou correspondência da Física moderna, considerando a ação sincrônica em oposição complementar à causalidade. Como afirma Jung:"Designamos as respectivas figuras discriminativas pelas correspondentes minúsculas 'a' 'b' 'c' 'd'. No que tange à construção desta fórmula, convém termos presente que se trata de um processo de transformação progressiva de uma só e mesma substância. Esta substância (e seu respectivo estado de transformação) produz sempre o seu semelhante, isto é, de A surge 'a' e de B surge 'b'; de igual modo 'b' gerará B, e 'c' gerará C. Pressupõe-se, outro tanto, que 'b' se segue a 'a' e que a fórmula seja escrita da esquerda para a direita. Estes pressupostos são legítimos para uma fórmula psicológica.
Esta fórmula, naturalmente, não pode ser disposta de maneira linear, mas unicamente em um círculo, o qual, precisamente por este motivo, corre da esquerda para a direita. De A se origina o semelhante 'a'. De 'a', o processo avança, por contingência, para 'b', do qual provém o estado B. A transformação se processa da esquerda para a direita, acompanhando o movimento do sol; quer dizer: trata-se de um processo de tomada de consciência ao qual já se refere a discriminação de A B C D em quatro grandezas qualitativamente distintas. Nossos atuais conhecimentos de Ciências naturais, porém, não se baseiam em uma quaternidade, e sim em uma trindade de princípios (espaço, tempo e causalidade)" (Jung).
Assim a quaternidade gnóstica proposta por Jung acaba representando um processo de desenvolvimento da consciência e suas quatro funções de orientação. É importante frisar que este processo de desenvolvimento da esquerda para a direita "constitui a expressão de uma discriminação consciente e, portanto, de uma utilização das quatro funções que formam a essência de um processo de conscientização"."Para atendermos, porém, ao julgamento da totalidade a respeito de A, expresso por 'a' 'b' 'c', devemos completar nossa maneira de pensar influenciada e determinada pela época contemporânea, com um princípio: o da correspondência ou da sincronicidade. Em outras palavras: nossa maneira de descrever a Natureza é imperfeita, sob um certo aspecto, e, conseqüentemente, exclui fatos observáveis do conhecimento ou os expressa de maneira injustificadamente negativa, como, por exemplo, mediante o paradoxo do 'efeito sem causa'".
Segundo Jung, esse curso circular retorna obrigatoriamente ao seu começo, no momento em que D _o estado mais distante de A, no que se refere à contingência_ passa a a3, correspondendo a uma espécie de enantiodromia. Dessa maneira se apresenta a seguinte fórmula:
"Esta fórmula exprime, com precisão, as qualidades essenciais do processo de transformação simbólico: ela mostra a rotação do mandala, o jogo dialético de processos complementares ou compensadores, e, seguidamente, a apocatástasis, isto é, a reconstituição de um estado de totalidade primitivo que os alquimistas expressavam por meio do símbolo do uróboros [grifo meu]; por fim, a fórmula repete a antiga tetrametria dos alquimistas que é dada pela estrutura quaternária do Uno, ou seja:
O que a fórmula indica é apenas o patamar mais alto atingido pelo processo de transformação ou de integração. A 'elevação' ou progresso ou a mudança verificada na qualidade, consistem em um desdobramento da totalidade, constituído de quatro partes e repetido quatro vezes, e isso significa a tomada de consciência. Quando conteúdos psíquicos se dividem em quatro aspectos, é sinal de que foram submetidos a uma discriminação, por parte das quatro funções de orientação [grifo meu]. Só a determinação destes quatro aspectos nos garante uma descrição global. O processo expresso por nossa fórmula, transforma a totalidade originariamente inconsciente em uma totalidade consciente.
O Anthropos (A) desce, através de sua sombra B, ao interior da Physis (C = serpente) e se eleva, de novo, por uma espécie de processo de cristalização (D = Lapis, pedra), que indica a ordem estabelecida no seio do principio caótico, ao estado original, que, no entretempo, de inconsciente que era passou a consciente, graças ao desdobramento acima mencionado. A consciência ou o conhecimento surge pela diferenciação, isto é, pela análise (dissociação) e por uma síntese subseqüente, processo este ao qual se refere, simbolicamente, a sentença alquímica: "Solve et coagula". A correspondência é representada pela identidade das letras a1, a2, a3 etc. Em outras palavras: trata-se sempre do mesmo fator, que na fórmula apenas troca de posição, enquanto, psicologicamente, muda de nome e de qualidade.
Aqui Jung está comentando a grande transformação posicológica que ocorria na Alquimia. Seu processo resultava na obtenção do Lapis Philosophorum, a Pedra Filosofal. Segundo comentário de Jung, o "lapis" resulta, por seu turno, da divisão e recomposição dos quatro elementos. Esta pedra também é representada pelo elemento "rotundum" [redondo], que é uma idéia abstrata e transcendente relacionada ao Homem Primordial [o Anthropos] devido à sua rotundidade e totalidade.
Dessa maneira, os alquimistas buscavam resgatar a substância arcana do mundo representado pelo Anthropos-Rotundum perdido na matéria. Em "Timeu", Platão comenta que este Anthropos (o 'Filho do homem' e símbolo do Si-mesmo), possui uma forma esférica: "o redondo é a alma do mundo e um deus bem-aventurado".
Ele desceu à physis (Natureza), ou seja, foi materializado (solidificatio) pelo abraço de sua sombra (Homo) com os quatro elementos (matéria), dando origem à serpente, que representa a natureza vegetativa dos instintos e dos movimentos inconscientes. A redenção do Anthropos, para que ele entre no mundo espiritual, se dá através do Lapis (a Pedra Filosofal), como expresso na fórmula abaixo:
Quando estes fatos são transportamos para nossa História dos últimos dois mil anos, é possível verificar que na primeira fase do desenvolvimento da consciência, a situação psicológica do homem existia num estado indiferenciado, interpretado como uma "raça sem rei" (isto é, livre de moral [inconsciente]). Jung cita o cálculo do astrólogo D'ailly quando ele diz que no ano 11 a.C. encerrou-se o período de Saturno e esse evento permitiu o aparecimento de Cristo. Isso possibilitou ao ego uma melhor estruturação e sua diferenciação do Si-mesmo, pois ainda estava relativamente 'inconsciente'. Já sob o éon de Peixes (que indica a confrontação dos opostos), encarna o Cristo na figura do Homem-Deus, demonstrando a dualidade advinda do surgimento da consciência.
Para demonstrar esta afirmação, Jung cita um importante texto em sua epígrafe. Em Elenchos está escrito:
"Isto aconteceu, afirmam eles,
para
que Jesus se tornasse a primeira vítima do processo
de diferenciação
das coisas que foram misturadas".
Na segunda quaternidade, a sombra representa o homem demasiadamente humano (em alusão a Nietzche). "No ano 289 termina também um outro destes períodos. O maniqueísmo é colocado em relação a este fato" (Jung). Aqui, a situação psicológica do homem discriminava apenas o que era bom em oposição ao mal, sem integrá-los.
O terceiro quatérnio é representado pelo advento do islamismo no ano de 589 até a importante época de Inocêncio III, em 1189. Jung tece o comentário de que neste estado, é quando o Paraíso fala em favor do próprio homem.
O quarto quatérnio surge com a cisma da igreja, em 1489, possibilitando o desenvolvimento do materialismo iluminista, em 1789 (Jung). Neste momento ocorreu a cisão do homem com as alturas e ele passou a caminhar horizontalmente sobre a Terra, como nas grandes navegações. Neste momento surgiu o espírito da contrafação [o Anticristo], que ameaça esmagar o mundo.
E é esta a nossa situação atual. Estamos à beira de um colapso ambiental e social. Por isso esse é o momento da transformação, do ponto de mutação, em busca de uma sociedade mais humana, justa socialmente e que não se criem desigualdades nem desperdício de matérias primas que geram toneladas de lixo ambiental e atmosférico.
Portanto, é necessário urgentemnete o surgimento de um ser humano mais ético e espiritualmente mais elevado é uma questão fundamental para a sobrevivência de nossa espécie.
Esta transformação na História dos últimos dois mil anos confirmaria a tese da fórmula enantiodrômica proposta por Jung, que demonstra a dinâmica interior do Si-mesmo e sugere o desenvolvimento da consciência de forma cíclica e espiralada ascendente, tendendo a uma ampliação motivada pela integração dos opostos diante dos dilemas morais.
Assim, esta fórmula acaba representando, simbolicamente, o dinamismo do Si-mesmo e sua estrutura interna, pois, segundo Jung, o Si-mesmo "não é apenas uma grandeza estática ou uma forma persistente, mas também um processo dinâmico" (Jung). É por isso também que quando a situação arquetípica prevalece, podem ser esperados eventos sincrônicos, pois eles consistem em um "arranjo paralelo" do tempo.
Isso porque o tempo arquetípico é o tempo eterno e cósmico, enquanto que o mundo da percepção espaço-temporal é o tempo do ego, organizado pelas estruturas quaternárias que servem como referência às quatro funções de orientação psicológica, como expresso por Pauli.
No mundo psíquico não existem corpos movendo-se no tempo, ele é atemporal. Mas, como o arquétipo é sempre um complexo oppositorum, no interior do Si-mesmo também acontece um fenômeno de eterna encarnação através da morte e renascimento que obedece o padrão da tetrametria como proposta por Jung. Segundo von Franz, ela acaba representando a estrutura básica da vida física e psíquica.
Uma outra representação dessa situação pode ser visto no diagrama abaixo, mas deve-se ter em mente que esses modelos esquemáticos podem clarificar algumas coisas, mas encobrir outras:
Quando essas imagens se constelam na consciência, elas expressam configurações que indicam a existência do tempo, como demonstrado por diversos deuses nas vários mitologias, tais como: Aion na Grécia, Vishnu ou Shiva (Mahâ-Kâla) na Índia, etc.
No nível abaixo, ocorre o movimento de auto-renovação no interior do Si-mesmo, que é demonstrada pela fórmula enantiodrômica acima. No centro do círculo estão as estruturas arquetípicas eternas que demonstram esse padrão de criação contínua ou incarnatio continua. Nesta área não existe tempo algum e o Si-mesmo encontra-se em sua 'múltipla-unidade', livre de qualidades e formas, mostrando-se 'vazio' como uma bolha ou um buraco negro.
Quando a estrutura interna do Si-mesmo é associada à percepção do tempo e sua imagem mitológica (Deus em seu aspecto dinâmico, criativo e ativo), isso parece indicar que o Si-mesmo contenha um elemento temporal, que se manifesta como energia, emanação e movimento. Ou seja, é essa atividade do Si-mesmo que cria para a consciência a experiência do tempo.
Esse movimento parece estar em profunda sincronia com nosso relógio biológico e mantém, portanto, relação direta com o período circadiano e toda produção endógena. Ainda não se sabe como, mas muitos desses ritmos estão sincronizados com o cérebro.
Para os hindus, o centro do círculo é conhecido como sat-cit-ananda (eterno, cheio de conhecimento e bem-aventurança) e, através dos passatempos (lîlâs) imutáveis e eternos de Govinda (a vigraha = forma), ocorre toda a manifestação e a dissolução causal.
Portanto, a sincronicidade demonstra a relação dessa classe de fenômenos especiais que acontecem fora do espaço e do tempo com a impressão de causalidade produzida pelo cérebro. Mas nem ela e nem os arquétipos são a causa desses eventos, senão incorreríamos novamente na própria causalidade.
O fenômeno que acontece no centro é indescritível, por não possuir realmente nenhuma definição compreendida pela consciência. O arquétipo é apenas a estrutura que pode ser percebida introspectivamente desse ordenamento psíquico a priori. Mas quando um evento sincrônico é associado por sua própria manifestação a um arquétipo, como às vezes acontece externamente, isso traz um significado, portanto consciência, para quem o percebe.
Por isso sua melhor expressão é a mandala. A sincronicidade interconecta todos os fenômenos, tanto os que estão nas extremidades, como os que acontecem no centro; tanto no mundo da realidade espaço-temporal, quanto o mundo espiritual e eterno, criando a diferenciação entre ambos e permitindo o surgimento da consciência.
Nota
(1) Frederico
Eckschmidt
- Psicólogo clínico, formado pela Universidade
Mackenzie.
©
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- Este material faz parte do livro "Oriente-se
- Uma análise sobre a estrutura e a dinâmica do Si-mesmo"
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sem a autorização
expressa do autor.
-Aguardando aprovação do Autor.
Pablo Picasso
Li-Sol-30
Fonte:
http://www.psicoanalitica.com.br/estrutura.htm
http://www.psicoanalitica.com.br/estrutura.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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