domingo, 13 de março de 2011

ASSIM (TAMBÉM) FALAVA NIETZSCHE - ( Outra Polêmica )


 Assim   (também)  Falava   Nietzsche    
(Outra Polêmica)

                    Por: Nelson Castelo Branco Eulálio Filho 
                                                                                                                             
                      Fortaleza (CE), maio de 2007
                    


   Moro em minha própria casa               
         Nada imitei de ninguém    
            E ainda ri de todo mestre    
             Que não riu de si também[1]


Apresentação

A quadrinha acima, que Nietzsche fez constar como epígrafe a Gaia Ciência (1881–1882), com a anotação complementar: “SOBRE MINHA PORTA”, diz bem do espírito deste meu escrito. Até mesmo a ácida ironia presente em cada página não é, como eventualmente possa parecer (já fui “acusado” disso!) uma imitação de Voltaire. É antes o nascimento de um escrito a partir do espírito (cortantemente irônico) de Voltaire, com o mesmo sentido que Nietzsche usou no título de sua obra de juventude, O nascimento da Tragédia [a partir] do espírito da música, isto é, aquela nascendo do “espírito” desta. Quem leu, por exemplo, o Dicionário Filosófico e o Cândido do Iluminista francês, percebe bem o que estou falando.

Por outro lado, embora sem a pretensão de ser dinamite (considero-me apenas um traque) tenho consciência que provocará choro e ranger de dentes em mais de um iluminado ou iluminando[2] nietzscheano. Trazendo para aqui “espírito” de Têmis devo dizer que entre os “iluminandos”, isto é, aqueles em (ativo) processo de iluminação nos segredos de Nietzsche, estão incluídos também os simples “simpatizantes”. 

Afinal de contas, toda “iluminação” é apenas uma questão de grau e esse “grau”, aqui, não tem nem valor nem teleologia. Afinal, brasa e chama são apenas aspectos diferentes do mesmo fogo; uma questão de gradação no mesmo sentido do nome de certo bloco de carnaval de Ipanema, Rio de Janeiro: “Simpatia é quase amor”. O pouco original subtítulo “Uma nova polêmica”, além de remeter, numa obviedade desavergonhada, ao subtítulo da Genealogia da Moral, é também uma profecia – uma profecia peba, previsível, mas ainda assim uma profecia. Os tempos dirão.

Meu escrito é do começo ao fim uma crítica a umas polêmicas posições de Nietzsche e mais ainda aos seus seguidores enviesados que, ou por simples ignorância (menos provável) ou (mais provável) para evitar a evidência de contradições entre theoria e praxis, discurso e prática, tentam escamotear essas posições do filósofo. 

É até compreensível; afinal, as posições reacionárias, de direita, de Nietzsche evidenciam de forma inescapável a contradição flagrante entre essas posições do filósofo e a postura pretensamente de vanguarda da enorme maioria de seus seguidores: anarquistas, socialistas, democratas, feministas, defensores da “democracia racial”, dos fracos e oprimidos, dos pobres, etc.  – a fina flor, enfim, de todas as vanguardas. Pedindo licença a Paulo César de Souza, quero deixar registrado aqui um comentário seu no Posfácio da edição de Humano, Demasiado Humano da editora Companhia das Letras:

 “A idealização dos heróis e seres superiores transparece no § 81, no qual a distância entre um príncipe e um plebeu é considerada tão grande quanto aquela entre um ser humano e um inseto… Deparamo-nos como o modo de pensar antiigualitário por excelência. A glorificação da força, já presente no adolescente Nietzsche (no fascínio pelas sagas nórdicas, que o levou a esboçar um longo ‘poema sinfônico’ sobre o rei Ermanarique), permaneceriam em toda a sua obra – de modo que não foi inteiramente descabido o uso que os nazistas fizeram de suas teorias. Thomas Mann, um grande admirador e herdeiro espiritual de Nietzsche, seria um dos poucos a reconhecer isto, no ensaio ‘A filosofia de Nietzsche à luz da nossa experiência’, de 1947”. 

Complementarmente e, por desnecessário, sem pedir licença ao autor, registro aqui uma das opiniões polêmicas de Nietzsche que mais aprecio (para meus fins): Em Crepúsculo dos Ídolos[3], falando sobre seu conceito de liberdade, e sintetizando seu “anti” tudo aquilo tão caro a seus iluminados e iluminandos seguidores, diz o filósofo: “Liberdade significa que os instintos viris, que se alegram com a guerra e a vitória, têm domínio sobre outros instintos, por exemplo, sobre o de ‘felicidade’. O homem que se tornou livre e, ainda mais, o espírito que se tornou livre, calca sob os pés a desprezível espécie de bem-estar com que sonham merceeiros, cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas. O homem livre é um guerreiro”. 

Finalmente, meus caros e improváveis leitores, guardem sempre em mente o alerta do filósofo já no ocaso de sua vida lúcida (1888) e como que numa espécie de canto de cisne: “a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus contemporâneos, alcançou sua expressão no fato de que nem me ouviram, nem sequer me viram. Vivo de meu próprio crédito, e quem sabe é um mero preconceito dizer que vivo?… Basta falar com algum homem ‘culto’ [...] para me convencer de que não vivo… Nessas circunstâncias há um dever, contra o qual se revolta, no fundo meu hábito, e mais ainda o orgulho de meus instintos, ou seja, de dizer: Ouçam! Pois eu sou tal e tal. Não me confundam, sobretudo![4]  Logo a seguir[5], afirmou que “a última coisa que eu me prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade. Por mim não são erigidos novos ídolos; os velhos que aprendam a ter apenas pernas de argila. Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, já faz parte do meu ofício.” Guardem, também, o melhor presente que Nietzsche poderia lhes dar:

“Sozinho vou agora meus discípulos! Também vós, ide embora, e sozinhos! Assim quero eu. Afastai-vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! E, melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado. O homem do conhecimento não precisa somente amar seus inimigos, precisa também poder odiar seus amigos. Paga-se mal a um mestre, quando se continua sempre a ser apenas aluno. E por que não quereis arrancar minha corroa de louros? Vós me venerais, mas, e se um dia vossa veneração desmoronar? Guardai-vos de que não vos esmague uma estátua. Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra! Sois meus crentes, mas que importa todos os crentes! Ainda não vos havíeis procurado: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso importa tão pouco toda crença. Agora vos mando me perderes e vos encontrardes; e somente quando me tiveres todos renegado eu retornarei a vós.”  (Ecce Homo – Prólogo, § 4).

Notícias de um filósofo que está na moda

“Nesse dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre minha vida: olhei para trás, olhei para a frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez. Não foi em vão que enterrei hoje meu quadragésimo quarto ano, eu poderia enterrá-lo – o que nele era vida, está salvo, é imortal. O primeiro livro da Transvaloração de todos os valores, as canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos Ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo – tudo isso são presentes deste ano e, aliás, de seu último trimestre! Como não haveria eu de estar grato a minha vida inteira? – E por isso conto minha vida.”[6]

 Nascido em 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade próxima a Leipzig na Alemanha, e morto em 25 de agosto de 1900 em Weimar, na mesma Alemanha, o filólogo, filósofo, poeta, músico e professor da Universidade da Basiléia aos vinte e quatro anos, Friedrich Nietzsche, está na moda. Nas palavras de Georg Lukács, que o colocava entre os representantes filosóficos da Destruição da Razão (Die Zerstörung der Vernunft), Nietzsche é o “fundador do irracionalismo do período imperialista”.[7] 

Martin Heidegger, que apesar da resistência de alguns nietzscheanos em admitir qualquer forma de ontologia no filósofo, achou que o pensamento de Nietzsche merecia ser examinado pelo prisma da ontologia existencial. Para ele, Nietzsche foi o “último metafísico do Ocidente”. Mas deixemos os epítetos para lá e falemos do homem.

Nietzsche era filho de Karl Ludwig e Franziska Oehler. Seu pai era pastor em Röcken, e tanto ele como sua esposa, mãe do filósofo, eram por sua vez filhos de pastores luteranos. Segundo consta de alguns dados biográficos Nietzsche foi uma criança feliz, aluno modelo, dócil e leal a quem os colegas de escola chamavam de “pequeno pastor”. Após o falecimento do pai, em julho de 1849, com apenas 36 anos (por “amolecimento do cérebro” segundo o diagnóstico da época) quando o futuro filósofo não ainda não completara cinco anos, teve de mudar-se com a família para Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, em companhia da mãe, da irmã, duas tias e da avó paterna Erdmuthe Krause. 

No famoso § 3 de Ecce Hommo Nietzsche informa, talvez influenciado por uma evidente mitomania, que sua avó paterna passou toda a sua juventude “na velha e boa Weimar, não sem relação com o círculo de Goethe”, que seu tio-avô, “o catedrático de teologia Krause, de Königsberg, foi chamado a Weimar como superintendente geral, após a morte de Herder”, e que “não é impossível” que sua bisavó paterna “seja a que aparece no diário do jovem Goethe sob o nome de ‘Muthgen’”. Provavelmente, a partir de uma visão psicanalítica (pobre), essa convivência desde tenra idade num ambiente eminentemente feminino, possa de alguma forma ter influenciado o seu difícil relacionamento com as mulheres, pois Nietzsche é também o misógino que declarou que “a primeira e última ocupação [da mulher] é gerar filhos robustos”[8] e que “quando uma mulher tem inclinações eruditas, geralmente há algo errado com sua sexualidade”[9]. Raiva das mulheres? Ressentimento? Freud explica? Vai saber…

A verdade é que no universo das relações com as mulheres na fase adulta de sua vida, a experiência do filósofo não chegou nem perto daquilo que se pudesse chamar de bem sucedida. Em 1875, quando já tinha 31 anos, numa carta a Malwida von Meysenburg, datada de 25 de outubro de 1875, Nietzsche escreveu: “Agora gostaria, falando confidencialmente, de ter em breve uma boa mulher…”[10] Já no ano seguinte propõe casamento a uma certa Mathilde Trampedach, em Genebra e é recusado.

Nesse particular, seus biógrafos registram pelo menos outros dois exemplos sintomáticos: O primeiro aconteceu por volta de 1870 (antes, portanto, da tal Mathilde) quando Nietzsche apaixonou-se por Cosima, a bonita e inteligente filha de Lizt (1811-1886) que então vivia com seu amigo e ídolo, Wagner, o genial compositor de Tristão e Isolda que ele conhecera em 1868 e que, tão festejado em O Nascimento da Tragédia no espírito da Música, de 1871, tornar-se-ia a decepção visceral a quem o filósofo dirigiu palavras muito duras ao longo de sua obra posterior depois de o célebre músico tornar-se cristão e admirar o pessimismo de Schopenhauer (outro ídolo caído).

Em 1878 havia sido publicado Humano, Demasiado Humano e Nietzsche enviara um exemplar a Wagner com o seguinte comentário: “Este livro é obra minha. Nele trouxe à luz minha mais íntima percepção dos homens e das coisas, e pela primeira vez delimitei os contornos do meu próprio pensamento”.[11] O livro foi mal recebido pelos Wagner que atribuíram o “novo modo de pensar” do antigo admirador à influência “do judeu” Paul Rée. Wagner publicou um ataque a Nietzsche sem, no entanto, mencionar seu nome. Nietzsche não deixou por menos, pois nas “Obras incompletas” da Editora Abril Cultural podemos ler as seguintes palavras constantes do “Prefácio” datado de 1886:

“(…) Richard Wagner, aparentemente o mais triunfante, na verdade um romântico em desespero que murchava, prostou-se subitamente, desamparado e alquebrado, aos pés da cruz cristã… cansado pelo nojo do que há de efeminado e fanaticamente indisciplinado nesse romantismo, de toda a mendicidade idealista e seu amolecimento da consciência, que aqui mais um vez triunfou sobre um dos mais bravos; cansado, enfim, e não em último lugar, pelo desgosto de uma inexorável premonição – de que eu, depois dessa desilusão, esteja condenado a desconfiar mais profundamente, a estar mais profundamente sozinho do que nunca antes… comecei por proibir-me a fundo e fundamentalmente toda música romântica, essa arte equívoca, grandiloqüente, abafada, que tira o espírito de seu rigor e alegria e faz crescer toda espécie de obscura nostalgia, de anseio esponjoso… tal música desenerva, amolece, efemina, seu ‘eterno feminino’ nos atrai – para baixo!” [12]


 Talvez seja o caso de perguntar aqui, a respeito da acusação de que Wagner teria se prostrado, subitamente, “desamparado e alquebrado, aos pés da cruz cristã”, por que Nietzsche deu à sua autobiografia o título de Ecce Homo; por que, além das incontáveis alusões implícitas ou explícitas ao Novo e ao Velho Testamentos, como, por exemplo, nas belíssimas palavras iniciais do Prólogo de A Genealogia da Moral: “Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão alguém disse: ‘onde estiver teu tesouro, estará também o teu coração’..”  Esse “alguém” a que se refere Nietzsche é Jesus Cristo (Mateus 6, 21). Por que escreveu o Zaratustra no estilo dos Evangelhos e deu a alguns capítulos deste livro títulos como “Da redenção”, “No monte das oliveiras”, “A ceia” e “Do imaculado conhecimento” e por que, no limiar da loucura que finalmente o acometeu, assinava textos estranhíssimos ora como “Dioniso” ora como “O crucificado”? Dizei-me vós, ó nietzscheanos de quatro costados!

Na época da paixonite pela mulher do (então) amigo Wagner, Nietzsche e Cosima tinham quase a mesma idade: ela 30 anos e ele um pouco menos que isso (Wagner já tinha quase 60). A tentativa, frustrada, de seduzir Cosima talvez tenha sido o primeiro sério abalo na sua autoconfiança – desconsiderando a recusa da tal Mathilde de Trampedach. O segundo episódio pós-Mathilde, aconteceu em 1882 quando Nietzsche conheceu Lou Salomé (1861-1937), em Roma, através de Paul Rée. Nietzsche se apaixona e quer fazer dela sua discípula e companheira; propõe-lhe casamento e é, mais uma vez, recusado. Ele e Rée rivalizam no amor de Salomé que, no entanto, só queria amizade. Os três passam a viajar juntos e forma-se entre eles um “ménage à trois platônico”, na expressão de R.J. Hollingdale[13]. Nessa época a irmã de Nietzsche intervém com intrigas e falso moralismo; Nietzsche age mal para com Salomé e Rée e é por eles abandonados.

 Na esteira desse quiprocó, Nietzsche briga seriamente com a mãe e a irmã e ao final de tudo, em novembro, está física e emocionalmente exausto, à beira do suicídio – dizem alguns. Em carta de 25 de dezembro de 1882, a Overbeck, escreveu sobre seu sofrimento: “Se não invento a alquimia de transformar esta imundície em ouro, estou perdido”. A verdade é que, se no início do relacionamento Lou ficou impressionada com a inteligência do filósofo, no que diz respeito às coisas do amor (philia) preferiu continuar com Paul Rée frustrando, assim, uma vez mais, a autoconfiança de Nietzsche. Mais tarde Lou Salomé se tornaria brilhante discípula de Freud e mulher do poeta Rainer Maria Rilke. Por coincidência ou não – sabem os deuses – o fato é que a partir de Humano Demasiado Humano, de 1878, cuja redação havia começado, como anotações, em 1876 – portanto, o mesmo ano da recusa da tal Mathilde Trampedach à proposta de casamento - Nietzsche passou a escrever muito sobre as mulheres quase sempre numa atitude de machismo explícito, ao vivo e em cores (fortes).

Talvez seja possível, nos fazendo uma vez mais de psicanalista de meia tigela, interpretar essa insistência de Nietzsche em dar em cima da mulher dos outros, de tomar a mulher dos outros, como uma manifestação – inconsciente, talvez – da “nobreza” que o filósofo julgava ter; o “príncipe” que julgava ser; e a quem seria dado esse “direito” pelo simples fato de ser um “nobre”, um “príncipe”, conforme se pode observar da leitura do § 81 do Capítulo II, do Primeiro Volume (“Para a história dos sentimentos morais”) de Humano, Demasiado Humano,[14] onde se pode ler o seguinte: “Quando o rico toma do pobre um bem (por exemplo, o príncipe toma do plebeu a amada), nasce no pobre um erro; ele pensa que aquele tem de ser totalmente celerado para tomar dele o pouco que ele tem. Mas aquele não sente tão profundamente o valor de um único bem, porque está habituado a ter muitos: assim não pode se pôr na alma do pobre e está longe de fazer tanta injustiça quanto este acredita.” A despeito – ou por isso mesmo – de os “outros” de cujas mulheres Nietzsche dava em cima, ser nada mais nada menos que Wagner e Paul Rée, e não simples “plebeus”.

A propósito dessa “mania de nobreza” a que me referi acima, vale registrar aqui uma passagem de Ecce Hommo[15], onde o filósofo escreve: “[...] meus antepassados eram nobres poloneses: deles tenho muito instinto de raça no corpo, quem sabe até mesmo ainda o liberum veto[16]. Em nota (nº 10), de Ecce Hommo (op. cit.) Paulo César de Souza nos informa que a pesquisa genealógica traçou a ascendência de Nietzsche até o século XVI, “encontrando apenas alemães”. Um pouco antes (Nota nº 8), nos informara que o texto original desse famoso terceiro parágrafo de “Por que sou tão sábio”, seria parte das modificações pretendidas por Nietzsche, nos últimos dias de dezembro de 1888. Nos informa, a propósito, que o texto da primeira edição baseava-se numa cópia do manuscrito feita por Peter Gast, que sempre fizera este serviço para Nietzsche. Ele (Peter Gast) omitiu algumas passagens que lhe pareceram excessivamente “exaltadas”, ou injustas e desrespeitosas para com amigos e parentes. Estas passagens omitidas por Peter Gast foram depois destruídas pela irmã de Nietzsche. O parágrafo original tem a seguinte redação:

“Vejo como um grande privilégio haver tido tal pai: os camponeses aos quais pregava – pois nos últimos anos foi pastor, após ter vivido alguns anos na corte de Altenburg – diziam que um anjo teria aspecto semelhante.-E como isso toco no problema da raça. Eu sou um nobre polonês pur sang; não há, em minhas veias, uma gota sequer de sangue ruim, para não falar de sangue alemão. Quando busco a mais profunda antítese de mim mesmo, a mais incalculável vulgaridade de instintos, encontro sempre minha mãe e minha irmã – crê-me aparentado a tal canaille seria uma blasfêmia à minha divindade.

O tratamento que até agora me dispensaram minha mãe e minha irmã inspir-me um horror indizível: aí trabalha uma máquina perfeitamente infernal, que conhece com infalível segurança o instante em que posso ser mais cruelmente ferido – em meus instintos supremos… pois então falta qualquer foca para defender-me contra vermes venenosos… A proximidade fisiológica torna possível uma tal disharmonia praestabilita… Confesso que a mais profunda objeção ao “eterno retorno” , que é o meu pensamento verdadeiramente abismal, são sempre minha mãe, e minha irmã. – Mas também como polonês sou um imenso atavismo. 

Seria preciso retroceder séculos para encontrar esta raça, a mais nobre que já existiu na Terra, com a mesma pureza de instintos com que eu a represento. Frente a tudo o que hoje se chama nobless abrigo um soberano sentimento de distinção – ao jovem imperador alemão eu não concederia a honra de ser meu cocheiro. Há apenas um caso em que reconheço meu igual – confesso-o com profunda gratidão. Madame Cosima Wagner é de longe a natureza mais nobre, e, para não calar uma palavra seque, direi que Richard Wagner foi, de longe, o homem mais próximo a mim…

O resto é silêncio… Todos os conceitos vigentes acerca de graus de parentesco são um insuperável contra-senso. É com os pais que se tem menos parentesco: estar aparentado com eles seria o signo extremo da vulgaridade. As naturezas superiores têm sua origem em algo infinitamente anterior, e para chegar a elas foi preciso acumular, reter, reunir, durante muitíssimo tempo… As grandes individualidades são as mais antigas: eu não entendo, mas Júlio César poderia ser meu pai – ou Alexandre, este Dioniso que se fez homem… No momento em que escrevo, o correio me traz uma cabeça de Dioniso…” [17]

O Nietzsche que está na moda é também o filósofo que decretou a morte de Deus e o advento do além-homem.[18] Que se insurgiu contra o cristianismo, a democracia e o socialismo. Inimigo de toda e qualquer “moralina”[19] e de toda “verdade” racional, também era músico, pois como nos informam os estudiosos e o próprio filósofo nos faz saber no Ecce Homo[20], um seu Hino à Vida para coro e orquestra sobre letra de ninguém mais ninguém menos que da russa de São Petersburgo,[21] Lou Salomé, foi publicado em 1886 pelo editor E.W. Fritzsch. 

Em Ecce Homo, Nietzsche diz textualmente: “O texto, seja expressamente notado, porque corre um mal-entendido a respeito, não é meu: é assombrosa inspiração de uma jovem russa com quem então mantinha amizade, a srta. Lou von Salomé. Quem souber extrair sentido das últimas palavras do poema perceberá por que eu o distingui e admirei: elas têm grandeza. A dor não é vista como objeção à vida: ‘Se felicidade já não tens para me dar, pois bem!, ainda tens a tua dor…’ Talvez também a minha música tenha grandeza nesse trecho”.

É o mesmo homem que pretendeu que um dia seu nome estaria ligado “a qualquer coisa enorme, a uma crise como nunca houve na terra”, como disse na obra, já referida, a que deu o título pouco modesto de Ecce Homo. É também o admirador de Goethe, de Byron e de Hölderlin e, como este último, também poeta, pois como nos ensina Mario da Silva, “No mesmo ano de Ecce Homo, Nietzsche reuniu algumas de suas poesias sob o título Ditirambos de Dioniso (Dionysos-Dithyrambem), que dedicou ao ‘poeta de Isoline”, ou seja, o poeta francês Catulle Mendes; três dessas poesias acham-se em Assim falou Zaratustra: a que o feiticeiro canta quando Zaratustra o encontra, a que ele entoa a som da harpa no capítulo intitulado ‘O canto da melancolia’ e o ‘salmo’ intitulado ‘Entre as filhas do deserto’, cantado pela sombra de Zaratustra após a ceia”.[22] É curioso observar o fato (a coincidência) de o poeta Friedrich Hölderlin (1779-1843), que Nietzsche tanto admirava, além de ter o mesmo prenome do filósofo ter sido vítima, também, do trágico destino da loucura[23] que, manifestando-se inicialmente em forma de grave crise, tornou-se depois estado permanente a partir de 1806, vale dizer, durante cerca de metade de sua vida.

Devo registrar por oportuno, que imediatamente antes deste trecho que citei, Mario da Silva, após citar Nietzsche em Ecce Homo [‘Essa obra (Zaratustra) é um caso inteiramente a si’] nos informe que nela atuou o conceito de Nietzsche sobre o que seja ‘dionisíaco’. Explica que Nietzsche, “após estender-se sobre esse conceito”, pergunta-se, referindo-se ao espírito de Zaratustra: ‘que linguagem falará um tal espírito, quando falar consigo mesmo? A linguagem do ditirambo. Eu [Nietzsche] sou o inventor do ditirambo’. A propósito dessa afirmação de Nietzsche, Mario da Silva ressalva que “não vale opor-lhe [a ele, Nietzsche] uma crítica do gênero daquelas que Wilamovitz, um dos mais conhecidos filólogos clássicos dos tempos de Nietzsche, movia contra Aristóteles, o primeiro que fez a tragédia grega derivar do ditirambo: ‘explicar a tragédia grega como proveniente do ditirambo [aqui ele está citando Wilamovitz] ‘parece antes de mais nada oferecer escasso auxílio, pois uma coisa pouco clara é explicada por outra totalmente desconhecida’.

Esclarecendo que tirou a citação de Einleitung in die grieschiche Tragödie, “citada por Mario Untersteiner em Le origini della tragédia e del trágico”, Mario da Silva afirma que: “Nietzsche não diz em certos momentos de Assim Falou Zaratustra, que adotou o ditirambo; declara que o inventou”. Logo a seguir, Mario da Silva acrescenta, entre parênteses, que “Na época, 1888, bem como no ano de 1990, em que se publicou a referida obra [de Wilamowitz], as afirmações de ambos [de Wilamowitz e de Nietzsche] não eram descabidas; pois “foi somente em 1897 que o British Museum deu a conhecer o papiro egípcio, adquirido no ano anterior, que continha seis ditirambos de Baquílides”. 

Nietzsche é também o homem que, na minha pouco erudita opinião, botou a comportada filosofia (de até então) de pernas para o ar, despiu-a e martelou-a. Fez dela uma filosofia para “espíritos livres”, para andarilhos solitários – jamais para modistas ou modeiros. Assim, o problema é que, como em toda moda, seus adeptos são, por definição de moda, adeptos de momento, não sabem bem por que a adotaram. Como ocorre na (controvertida) estética do vestuário, também aqui na “moda Nietzsche” quase não há reflexão sobre aquilo que, literalmente, se consome – livros, revistas, “cadernos”, palestras, seminários. Até mesmo algumas figuras “globais” sempre encontram um tempinho para, entre um e outro brilho da tal “Vênus platinada”, dar uma lidazinha em alguma coisa do filósofo. Aqui eu me apresso a esclarecer que estou me referindo à atriz global Luana Piovani, que “deitadinha de bruços” na sua cama descobriu que “Nietzsche é o fim da culpa” (ver revista IstoÉ/Gente, de 16.04.07). E não – valha-nos Apolo! – à professora-doutora Márcia Tiburi que, apesar de aparentemente, numa verdadeira “saia justa”, ter sucumbido aos brilhos da “Vênus platinada” continua, nas horas vagas das labutas globais, sendo uma competente professora de filosofia e figura de destaque nos mais doutos ambientes nietzschianos.

Como não podia deixar de ser, em todo esse contexto da “moda Nietzsche” há uma multidão de nietzscheanos de “ouvir dizer”, isto é, aquela forma de conhecimento sobre a qual Espinosa (para Nietzsche “o mais puro dos sábios”[24]) dizia que “além de ser [uma coisa] muito incerta, não se percebe nenhuma essência da coisa”.[25] Entretanto, até por um dever de justiça, é imperioso constatar que a culpa, se culpa houver, não deve ser creditada apenas aos novéis nietzscheanos. A maioria destes, é verdade, sofre de uma quase natural dificuldade de leitura; são os filhos da “década perdida”, isto é, a década de 1980, o oco criativo entre os estertores da ditadura militar e o prenúncio do novo incerto. A época em que toda uma juventude estéril de idéias e numa “rebeldia” movida a “sexo, drogas e rock and roll”, sofrendo de um niilismo totalmente anti-Nietzsche, desacreditou de tudo e buscou novos ídolos que lhes amenizasse o tédio insuportável que sobrara do vazio de sentido que a ideologia fardada, os sacerdotes do “deus mercado” financiadores da “Operação Bandeirantes” (OBAN), e os políticos de ocasião, lhes legaram como a “parte que lhes cabe desse latifúndio” (Salve, João Cabral de Melo Neto!). Pobres moços! Pobres moças!

Para piorar ainda mais a problemática existencial-sociológica dessa juventude – na verdade aliados a ela – alguns professores, invertendo o sentido do termo e talvez por acharem, erroneamente, que “a coisa mais obscura e inexplicada é vista como mais importante do que a clara e explicada”[26] ou, quiçá, por concordarem com Nietzsche na apreciação deste de que “a juventude é desagradável, porque nela não é possível ou não é razoável ser produtivo em qualquer sentido”,[27] mais dificultam que esclarecem as coisas para eles. Não percebem que “o mais inequívoco indício de menosprezo pelas pessoas é lavá-las em consideração apenas como meio para nossos fins”,[28] e estão mais preocupados com fama e autopromoção que na promoção de seus alunos; esquecendo-se, inebriados, da sentença de Virgílio (Eneida, 4, 174) segundo a qual, “Fama, malum qua non aliud velocius ullum” (Fama, nenhum outro mal é mais veloz), como registra Renzo Tosi no seu Dicionário de Setenças Latinas e Gregas.[29] Nesse afã, pensando ser oráculos de todos os segredos, não se dão conta de que se trata apenas de “oculto segredo de gabinete ou inofensiva tagarelice entre anciãos acadêmicos e crianças”,[30] e omitem de seus alunos-discípulos, quiçá por mera ignorância, tudo o que possa de alguma forma ofuscar o seu próprio brilho, como por exemplo, o monumental Tratado de Carl Kerényi sobre o deus Dioniso[31], onde o autor afirma, dentre outras coisas, que:

 “Nietzsche acreditava que, seguindo uma tradição incontestável, as formas mais antigas da tragédia grega, tratavam de um modo exclusivo, dos sofrimentos de Dioniso, e por muito tempo Dioniso foi o único herói da tragédia. Tal suposição é falsa, pois nunca houve essa tradição direta. Semelhante tese reflete também uma incompreensão da forma trágica, forma que implicava o caráter fundamentalmente contraditório de zoé, a base de sua dialética. O mais antigo herói dos palcos era um inimigo de Dioniso. A fim de que o próprio deus pudesse encarnar-se em seu inimigo, tal como num animal representante, vítima de sacrifício, esse representante tinha de morrer – e, antes de morrer, tinha de tentar matar o próprio deus. E por isso tinha de pagar”.[32]

Na mesma obra, um pouco mais adiante, o professor Keréniy nos informa que “Não foi pura e simplesmente Dioniso, como pensava Nietzsche, mas sim Penteu o primeiro herói da tragédia. O Dioniso sofredor foi outrora chamado ‘Penteu’, ‘o homem das dores’.”[33] Na mesma página (282) dessa última citação que fiz o autor informa, em nota de rodapé, que “no parágrafo 10 de A Origem da Tragédia, Nietzsche chega a essa conclusão [Dioniso como primeiro herói da tragédia] a partir do provérbio Oudèn pròs tòn Diónyson.” Estas e muitas outras são informações indispensáveis a todos quantos se pretendem conhecedores de Nietsche – ou pelo menos no que tange à figura do deus Dioniso em sua obra.

Na obra do professor Kerényi ficamos sabendo, também, que “os relevos de um pedestal de mármore que se encontra no Vaticano, talhados provavelmente, com base em um modelo do século II a.C., parecem representar os preparativos para uma cerimônia dionisíaca mais secreta, um rito de sacrifício”.[34] Ficamos sabendo, ainda, que “a existência de uma maciça religião não-grega de Dioniso na área entre o lago de Genesaré e a costa fenícia foi atestada pelo fundador do cristianismo, que andou por aquela região, chegando até Tiro. Ele extraiu muitas de suas metáforas da vida dos vinicultores, tal como os poetas e profetas do Velho Testamento haviam feito antes” e que [Jesus] disse de si mesmo: ‘Eu sou a videira da verdade’.”[35] Mas, “em tal mundo da uniformidade exterior forçada, [a filosofia] permanece monólogo erudito do passeador solitário, fortuita presa de caça do indivíduo [...], uma época em que “todo filosofar moderno está política e policialmente limitado à aparência erudita, por governos, igrejas, academias, costumes e covardia dos homens…”[36] - Palavras de Nietzsche!

Fazer o quê? Nesse meio, é um empavonamento só! Cada um mais digno que o outro da sentença de Ovídio constante das Matamorfoses[37]: “Laudato pavone superbior” (Mais Orgulhoso do que um pavão louvado). E ai de quem se atrever a dizer qualquer coisa por mais leve que seja, que contradiga de alguma forma as doutas e transcendentes “certezas” dos mestres nietzschianos. Longe de mim tal temeridade! Antes disso, e humildemente, repito o brado de Platão: Valha-nos Apolo! Que transcendência tão divinal![38] Mas também fiéis ao espírito dos tempos modernos – sapere aude e de omnibus est dubitandum (“ousar saber” e “deve-se duvidar de tudo”) – que significou a quebra dos paradigmas “transcendentais” da Idade Média teológica, teocêntrica e teocrática a nós, os sem medo[39] das fogueiras acadêmicas e da danação eterna em todos os doutos ambientes nietzschianos, só nos resta dizer, com pretensão de paráfrase, nada mais nada menos que umas palavras do “mais nobre dos homens”[40], o Cristo: Perdoai-os Nietzsche, eles não sabem o que fazem!

Mas… Alvíssaras! Quiçá por obra, graça e inspiração do deus-filósofo Dioniso, de quem Nietzsche dizia ser “discípulo”[41], acontece todos os anos em Fortaleza o “Simpósio Internacional de Filosofia Nietzsche/Deleuze”. Não é pouca coisa. Para quem gravita em torno da “mais verdadeira de todas as ciências, a honrada deusa nua, a filosofia”[42], é um acontecimento de grande importância – aqui e alhures. Não sei se surgidas do “caos” a que se refere Nietzsche quando afirmou que “é preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante”[43] - ou acreditando na afirmação de Nietzsche que completa a citada frase: “Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós” – a verdade é que ali brilham estrelas de variadas grandezas: locais, nacionais e de além-mar. Nesse ambiente de rara erudição e revelação de todos os segredos, “como que se abre diante de nós a montanha mágica do Olimpo, e mostra-nos suas raízes”.[44] Desvelam-se ali (quase) todos os segredos do discípulo de Dioniso e eu, simples meteorito desgarrado nessa luminosa Via Láctea de conhecimento, e embora admitindo minha monumental burrice, sempre arranjo um jeito de beber, sôfrego, a sabedoria que jorra como luz de tantos sóis resplandecentes – desconsiderando, displicentemente, a possibilidade, real, de morrer empanzinado com tanto saber. 

Talvez esteja esquecendo a advertência de um meu amigo, o professor Bosquinho da UECE, segundo quem “mais vale um jumento vivo que um filósofo morto!” Com a licença do Edinardo eu imploro a todos os pavões (misteriosos ou não) que me poupem do vexame de morrer tão moço! Ou, mais grave ainda, a possibilidade, real, de eventualmente me ver na situação retratada em uma sentença medieval (anônima), segundo a qual “Asinus in scamno se vult similare magistro” (Um asno na cátedra quer passar por mestre). Que, a exemplo dos pavões do Edinardo, os deuses me poupem de tamanho vexame! Até porque, como Nietzsche, eu posso dizer[45]: “Todos nós sabemos, alguns até por experiência, o que é um bicho de orelhas longas. Pois bem, ouso afirmar que possuo as menores orelhas que existem [...] Eu sou o antiasno par excellence…”

Afinal, ó iluminando nietzscheano, ninguém está livre das vicissitudes da Academia, e nos mais doutos ambientes ocorrem situações bem esquisitas. Narro-te uma recente: Na última vez que fui beber a sabedoria dos referidos sóis resplandecentes, assim que meio escondido numa platéia não menos solar, presenciei uma situação no mínimo trágica (considerando o ambiente). Sucedeu de um professor doutor (estrela forasteira) proferir uma interessante palestra sobre a nossa querida – e para moralistas em geral, maldita – poetisa Hilda Hilst. Após uma boa hora de falação prá lá de erudita – e competente, sejamos justos -, o professor-doutor-palestrante-forasteiro dá por encerrada sua palestra e, em meio a calorosa salva de palmas, entre “bravos”, “falou e disse” e “muito bem”, coloca-se à disposição para as perguntas da doutíssima platéia. Tchan, tchan, tchan… (“ouça” aqui a 5ª de Beethoven).

 Ato contínuo, um professor doutor (estrela nativa) pergunta ao palestrante com a intimidade própria dos pares: “O que você me diz de a Hilda Hilst estar escrevendo na Veja, essa revista reacionária, ao lado de uma figura como Diogo Mainardi?!!!”  Ouvem-se muitos “oh!”, “e agora?”,  “danou-se…!”  Doutas cabeças da platéia viravam-se em direção ao professor-doutor-inquiridor-nativo em embasbacados gestos de apoio representados em dulcíssimos sorrisos de admiração e respeito por tão pertinente pergunta-observação-com-intuito-de-colocar-cascas-de-banana na brilhante fala da luminosa estrela forasteira. Eu… gelei! Mas nem precisava, pois o professor-doutor-palestrante-forasteiro empertigou-se, tomou do microfone e falou uns bons cinco minutos para a doutísima platéia sobre o “fato” inusitado. Não me contive. Convenhamos, aí também era demais! 

E como todo meteorito tem lá seu dia de cometa (loucura), dirigi-me ao professor-doutor-palestrante-forasteiro e disse-lhe com aquela voizinha tímida, típica dos inseguros e incompetentes como eu: “Mas professor, quem escreve na Veja é a Lya Luft! A Hilda Hilst, não somente nunca escreveu para essa revista como já está morta faz algum tempo!” Impávido, o professor-doutor-palestrante-forasteiro disse apenas: “Ih rapaz, é mesmo!” Questionado por mim, o professor-doutor-inquiridor-nativo, disse simplesmente: “Troquei as bolas”! Foi tudo o que obtive como resposta à minha observação. Mas, reconheço: douto, é douto – e, afinal, quem sou eu para questionar tão luminosas estrelas…

Para a doutíssima platéia, devo vos esclarecer, ficou apenas a “mais que pertinente” pergunta do professor-doutor-inquiridor-nativo e a não menos “pertinente” resposta do professor-doutor-palestrante-forasteiro sobre o “fato” de a (enorme, grandiosa, retumbante) poetisa Hilda Hilst estar escrevendo para uma “revista reacionária tipo Veja”. Devo esclarecer-te, ó iluminando nietzscheano, que me dirigi a um e outro dos professores-doutores (palestrante-forasteiro e inquiridor-nativo) de forma particularíssima, quase num sussurro. Fiz de tal forma que ninguém na doutíssima platéia ouviu meus comentários. Mas não é difícil imaginar – eu mesmo presenciei alguns – os calorosos “muito bem”, “parabéns” e que tais, dirigidos, no intervalo, ao professor-doutor-inquiridor-nativo. Pobres doutos! Perdoai-os Hilda Hilst, eles nem sabem nem que tu morreste![46] Perdoai a má fama que te puseram e que permanecerá com verdade “incontestável” na lembrança daquela doutíssima platéia.  Mas vamos pra frente que atrás vem gente – para palestrar!  

Espera; não vos revolteis ainda, pois vou contar-vos outra: Certa vez, os organizadores do “Simpósio” resolveram, sabe Deus por quais ecológicos motivos, homenagear uns índios tapeba que vivem perto de Fortaleza numa situação de dar dó! É uma miséria só! Exangues, desnutridos, alguns bêbados, meia-dúzia de “índios” cambaleia entre lama e mosquitos na “reserva”. Fitando o céu que se desdobra em auriverdes e fulgurantes lampejos, crianças esfomeadas, catarro escorrendo… Choros convulsos… “Meu Deus salvai-as!” (diria Vinicius de Moraes). Índias mulheres suspendendo às tetas, magras crianças cujas bocas pretas, regam o sangue das mães. Outras, moças, mas nuas, espantadas, no turbilhão de espectros arrastadas, em ânsia e mágoas vãs. (diria Castro Alves). E dá-lhes, FUNAI!

Pois bem, lá pelas tantas, entre uma palestra e outra de uma estrela dançante, adentra o palco a indialhada decrépita, dançando também – posto que aqui também estrelas – ao som de tambores e maracás. Dava pena de ver – era um sonho dantesco aquele palco! Devo dizer-te, para que bem entendas o espírito da coisa, que a maioria dos “índios” que ali estavam era formada de velhos e velhas desdentados, com as pelancas despencando, olhares desesperançados, costelas à mostra… (Oh, Marechal Rondon, onde estás que não respondes?!) Mas, louve-se isso, em estado de graça por estarem se exibindo (ou sendo exibidos) – a palavra é essa! – para tão douta platéia. Entretanto, ó iluminando nietzschiano, se numa situação hipotética, numa alucinação própria do estado de miséria, uma daquelas (velhas) “nativas” visse o espectro de Nietzsche e, pensando-o real, lhe pergunta-se: “Sei que o senhor escreve senhor professor. Não poderia emprestar-nos um de seus livros?” 

Certamente, ó iluminando nietzschiano, a pobre tapeba ouviria a mesma resposta que certa senhora companheira de pensão de Nietzsche, de saúde combalida, que passava horas estendida numa chaise-longue, segundo conta Daniel Helévi em seu estudo biográfico Nietzsche (Paris, 1944): “Não, responderia o espectral filósofo, não quero que os conheça. Se devesse acreditar-se no que eu escrevo, uma criatura enferma como a senhora não teria nenhum direito à existência!” – Dá-lhes, Nietzsche!

Uma das estrelas mais cintilantes do Simpósio escreveu um artigo no jornal O POVO de Fortaleza (CE) edição de 10.06.07, intitulado “Surfar é criar movimento” onde diz:

“O mar com mil direções possíveis, não tem começo nem fim; eis porque ele se torna lugar de errância, espaço no qual o surfista, navegante do efêmero, pode cultivar devires conjugando-os e assumindo-os perfeitamente.

Nada mais sublime que partilhar com um surfista o experimento do movimento de captura (Kick out), saída de onda pela crista se jogando atrás da onda, movimento utilizado quando a onda fecha; ou ainda, quando ele passa por uma onda grande, subindo pela frente e descendo por trás, (Elevador). Ver o corpo, as contrações do rosto, para além do gênero, a alegria estampada atestando uma jubilação sem alarde, é como assistir às núpcias entre os elementos e o corpo dançarino do surfista, em um balé de fogo, pássaro prateado, onde o limite torna-se a própria falta de limite.

Algo é precioso para ele: saber pegar a onda em pé numa prancha, pois dá rapidez ao indivíduo que a monta, como se monta um cavalo indomável. Aqui o estilo é soberano. O estilo é a linha-artista do surfista, seu charme, seu feitiço, que não exclui o experimento radical, quando o encontro com o mar é entregue às turbulências atmosféricas, ao mesmo tempo em que ondas e tubos gigantes confluem num leito comum engendrando um surfe tempestade, um surfe por vir: forças positivas da invenção. O charme do estilo não pode, porém, levar o surfista à imprudência radical: o cuidado de si é sua força maior.

O surfe é a arte do deslocamento, uma cartografia da bela carne em movimento; e os surfistas atravessam os ares perigosos como um ritual público, mesmo quando não há platéia. Surfar é dançar, é se deixar imergir pelo sonambulismo virtual, por um estado drogado abstêmio numa solidão habitada pelas ondas. Pico à vista, local ideal para ser freqüentado.

Surfar é ter o sentido do equilíbrio/desequilíbrio como guia que faz com que os acontecimentos da vida, que são as ondas e suas flutuações, não sejam considerados obstáculos, mas amparo sobre o qual apoiar a prancha e que vai permitir de se manter em pé e de ficar na crista da onda. Aqui, não há maus acontecimentos. Tudo é ganho ou onda! Ao olhar os surfistas em mar liso, eles caem, se levantam na prancha e depois caem, se levantam; e nunca têm medo de cair, pois sabem que caindo não correm perigo, o único risco é o de se molhar.

O surfe contribui à desconstrução de alguns pontos de vista de Platão: "O corpo é inimigo do esporte e deve, pois, ser afastado do caminho do desportista". O corpo é no surfe exatamente o contrário do que afirma Sócrates em Fédon, de Platão: ele não atrapalha o surfista, não é um obstáculo que se deve afastar de seu caminho.

O corpo é seu devir, embora haja aqui e ali um culto da performance e dos números, ou um fetichismo do quantitativo abstrato: mar, ondas, ressaca, ventos, tempestades. O corpo abre caminhos, inclusive para a filosofia, contrariando, aqui também, as idéias de Sócrates. O ideal surfista, ao oposto àquele de Platão, é ter um corpo pleno, não dividido entre corpo para o esporte e corpo para a vida. Essa dualidade interfere negativamente naquilo que é para o surfista uma ecologia do espírito.

Para além do mercantilismo de alguns e dos efeitos perversos de uma profissionalização e competição aceleradas, o surfe, máquina para fabricar sonhos, é sobremaneira um jogo fabuloso entre o homem e a onda, uma produção, uma criação do inútil, perfeita definição da arte.

O surfista, deus que brinca com os deuses aquáticos,
é alguém que diz sim à vida.

O surfista é um movimento no movimento, dedicado a um certo abandono da idéia de sua pessoa em detrimento de uma percepção conduzida pela onda. De modo algum a onda é uma conquista para o surfista. Se ele ganha a onda é que ela aceita recebê-lo em seus movimentos.

O surfe é um jogo. Mas, se ele é a emancipação de uma condição do corpo, é sobremodo equipado de um aspecto lúdico intrínseco ao próprio surfe. O surfe só pode se emancipar mediante duas condições: o surfe é desenvolvimento da alegria pelo corpo; surfar é criar movimento.

Comunidade bem específica, pensada sobre a recusa de certas regras clássicas sociais, os surfistas criam um individualismo coletivo que rompe com a tradição burguesa e se opõe às práticas racionais e mecânicas gerando a seu modo uma individuação, que é o oposto do individualismo careta, gestor de uma solidão acompanhada. No surfe, o individualismo é coletivo. O outro não é "meu pecado original", é a possibilidade de acontecimento, festa!

Para os surfistas, a referência proprioceptiva – sensibilidade própria aos ossos, tendões, que fornece informações sobre a estática, o equilíbrio, o deslocamento do corpo no espaço – parece ocupar o lugar da referência social, e a "física das nuvens", de Popper, substitui a física  dos relógios!

O oceano é o livro do surfista, 
sua prancha uma caneta, 
e cada onda um poema”.

(os negritos são meus).

Ai de ti, Filosofia!

O articulista – verdadeira Eta Carenae no ambiente do Simpósio -, qual um Camões extemporâneo, surfou em ondas nunca dantes surfadas. Assim, “a mais verdadeira de todas as ciências, a honrada deusa nua, a filosofia” exige os devidos reparos. Desconsiderando a enorme diferença entre pranchas de surfe e tratados de metafísica, o articulista afirma que Platão teria dito no Fédon que “O corpo é inimigo do esporte e deve, pois, ser afastado do caminho do desportista” (sic). Nada poderia ser mais contrário ao pensamento de Platão sobre a relação do corpo com a atividade física (ginástica) e, por extensão, do corpo com o esporte e do corpo com o desportista.

É verdade que Platão, na obra citada pelo articulista, fala muito mal do corpo como entrave ao verdadeiro conhecimento; mas o faz no estrito sentido epistemológico e em perfeita consonância com suas doutrinas metafísicas: o corpo, aprisionando a alma (psyquê, intelecto), impede esta última de atingir o verdadeiro conhecimento (o “mundo inteligível”). Mas em nenhum momento do Fédon diz que o corpo é “inimigo do esporte” e que deva “ser afastado do caminho do desportista”. Até por uma absoluta falta de uma boa lógica argumentativa. Talvez apenas a Física Quântica possa explicar em que circunstâncias um desportista pode praticar seu esporte tendo o corpo – condittio sina qua non para o esporte – afastado “do seu caminho”. Afinal, seria o mesmo que dizer que os olhos são inimigos da leitura e que devem ser afastados do caminho dos leitores…

 No primeiro caso, “o corpo é inimigo do esporte” (sic), implicaria acusar Platão de estar cometendo, além de uma enorme bobagem, também uma enorme contradição, pois em várias de suas obras, o filósofo – como de resto toda a Paidéia grega - faz uma verdadeira apologia de um corpo bem cuidado pela ginástica – vale dizer, pelo esporte. Nesse sentido, é significativa uma passagem de sua obra maior A República, onde Platão diz (pela boca de Sócrates), dentre outras, as seguintes palavras a propósito da formação dos “guardiões” de sua cidade ideal: “Então que educação há de ser? Será difícil achar uma que seja melhor do que a encontrada ao longo dos anos – a ginástica para o corpo e a música para a alma” (A República, 376-e). No segundo caso citado, “o corpo deve ser afastado do desportista”, aqui, talvez, somente a doutrina espírita possa explicar isso melhor. Uma maratona de almas… Almas fazendo ginástica – coisas assim.

Que o articulista faça sua homenagem à moda de Caetano Veloso (“Menino do Rio”) aos surfistas é compreensível e louvável. Mas daí a afirmar que “o surfe contribui à desconstrução de alguns pontos de vista de Platão” (os citados pelo articulista), vai uma enorme diferença que, até em respeito à reputação do jornal e aos seus leitores jovens (a maioria dos surfistas é jovem) deve ser esclarecida. Até para que os surfistas, “ases” no seu esporte, não se tornem “asnos” em Platão e possam passar incólumes e ao largo da referida advertência medieval (anônima) segundo a qual “Asinus in scamno se vult similare magistro” (Um asno na cátedra quer passar por mestre).

Mas deixemos isso para lá. Não vos importa a vós, homens do mais puro conhecimento nietzscheano. Devo dizer-te quanto aos filósofos que o “Simpósio” homenageia que, relativamente a Deleuze, reduz um pouco a minha quase total ignorância o fato de sabê-lo um filósofo francês recentemente falecido (1995); o que aprendi sobre ele na leitura de um excelente especial da revista “Cult” (novembro de 2006) e algumas leituras fragmentárias dos Mil Platôscapitalismo e esquizofrenia[47] (Mille plateaux – Capitalisme et schizophrénie) escrito em parceria com Félix Guattari, do qual dizem[48] ser “o mais profundo trabalho político” da dupla. 

De sua obra, de resto, tenho apenas “notícias”. Aguçou minha curiosidade, por exemplo, o fato de Michel Foucault[49] considerar duas das obras de Deleuze, a saber, Diferença e Repetição e Lógica do Sentido, dois livros “grandes entre os maiores”. “Tão grandes – diz Foucault – que sem dúvida é difícil falar deles e muito poucos o fizeram”. Incluindo-se entre “os poucos”, sobre Lógica do Sentido Foucault anota que “deve ser lido especialmente como o mais audaz, o mais insolente dos tratados de metafísica – com a simples condição de que em lugar de denunciar uma vez mais a metafísica como o olvidamento do ser, a encarregamos desta vez, de falar do extra-ser”. E completa, esclarecendo seu comentário: “Física: discurso sobre a estrutura ideal dos corpos, das misturas, das reações, dos mecanismos do interior e do exterior; metafísica: discurso acerca de materialidade dos incorporais, – dos fantasmas, dos ídolos e dos simulacros.”

Em relação a Nietzsche considero-me apenas um neófito. Não sou especialista em sua obra. Somente comecei a me interessar por ele a partir de um acontecimento fortuito, ocorrido há mais de vinte anos, quando li, em um muro de Brasília, duas inscrições. Uma (mais antiga) dizia: “Deus está morto”. – assinado Nietzsche. Logo abaixo, um espírito de porco escreveu:

“Nietzsche está morto” 
– assinado Deus.
  Pensando bem…

Pensei bem!

Detive-me em frente daquelas inscrições como um Nietzsche olhando para certa formação rochosa denominada “pedra de Surlei”, em 1881, nos bosques à margem do lago de Silvaplana, na Engadina (Suíça). Mas, ao contrário do poeta-filósofo não tive ali a intuição do “eterno retorno”. Nem a de Nietsche nem a de Empédocles, pois como vós sabeis, ó iluminando nietzschiano, os estudiosos de Nietzsche nos ensinam que o filólogo e helenista Ettore Bignone, que verteu para o italiano todos os fragmentos de Empédocles e os testemunhos que nos chegaram a seu respeito, faz notar que o princípio nietzschiano do ‘eterno retorno’ já podia encontrar-se em Empédocles, não referido ao plano individual, como em Nietzsche, mas ao cósmico”.[50] Quiçá tenha tido, antes, a intuição de um por assim dizer, para além de bem e mal que me encorajou a conhecer melhor o homem que, em pleno século XIX, o século de Hegel, dizer da Filosofia da História deste[51], de forma jocosa, ser “a perambulação de Deus sobre a terra”.

O homem que num tempo em que ainda se podia ouvir, ao longe, o crepitar das fogueiras da Inquisição; o tempo da efervescência do socialismo “utópico” (de Saint-Simon, Fourrier e Orwel) e “científico” (de Marx e Engels); o século da pregação a respeito da “emancipação” das mulheres; o homem, eu dizia, que em todo esse contexto teve a coragem de decretar a morte do Deus cristão[52], tratar o socialismo como “doença superada”[53] e dizer sobre as mulheres (como já ressaltei) que “sua primeira e última ocupação é gerar filhos robustos.”[54] O homem que, apesar de ter morrido no mesmo ano em que nascia a psicanálise[55], e de cujas leituras de suas obras Freud disse ter evitado “por muito tempo” porque seu pensamento [de Nietzsche] concorda “da forma mais surpreendente” com os achados da psicanálise.[56] Que havia negado a si mesmo [a ele, Freud] “o enorme prazer da leitura das obras de Nietzsche”[57], e a quem creditou a paternidade da expressão [alemã] “das Es” (o id da psicanálise)[58].

Isso tudo sem falar – e já falando – de pelo menos duas frases de Freud[59] (a segunda sintomaticamente entre aspas) que são, inegavelmente, uma clara alusão ao conceito nietzschiano de “eterno retorno” como consta da última parte do Zaratustra e, ainda, a observação que fez [ele, Freud] num conhecido escrito[60] de que Nietzsche mais uma vez antecipara descobertas da psicanálise, bem como as três alusões que fez ao filósofo na obra que “fundou” a psicanálise[61].  

Daí em diante, ó luminando nietzschiano, foi um duro e sofrido aprendizado para mim. Senti acontecer no mais recôndito de minhas “convicções”, o crepúsculo de tantos ídolos queridos: a democracia, o socialismo, o anarquismo, o meu alto conceito sobre as mulheres, as revoluções… O que, até aqueles dias, a mim me parecia “sólida convicção”, se desvanecia como bolha de sabão – desfeita não com um sutil alfinete de prata, mas com o ribombar de toneladas da mais pura dinamite nietzschiana. Tudo o que era sólido se desmanchava no ar, como já dissera Marx[62] a propósito da ascensão da burguesia e que eu não havia dado a atenção devida.

Naquela época eu também não conhecia a advertência de Nietzsche constante de Ecce Homo: “Conheço minha sina. Algum dia meu nome estará ligado a qualquer coisa enorme – a uma crise como nunca houve na terra, ao mais profundo conflito de consciência, a uma decisão invocada contra tudo aquilo que, até aqui, se acreditou, se estimulou, se santificou. Eu não sou um ser humano, sou dinamite.” Putz grila, Nietzsche! Honesta e premonitória advertência – minhas bolhas de sabão que o digam.

Quanto a vós, ó iluminandos (e iluminados) nietzschianos, o que chama minha atenção piscando que nem luz de neon é o fato de uma parcela considerável de vocês – talvez mesmo a maioria – ser composta de pessoas ditas de “esquerda”: feministas, socialistas, democratas, anarquistas, etc. – a fina flor, enfim, de todas as vanguardas. Pessoas para quem a Revolução Francesa (“essa farsa horrível e, observada de perto, desnecessária”;[63] essa “última grande rebelião de escravos”[64]), foi assim como uma espécie de redenção da humanidade com seu lema “liberté, egalité, fraternité”. (Qual liberdade, qual igualdade, qual fraternidade? - dizei-me vós ó deslumbrados cara-pálidas pós-modernos, considerando a situação dos imigrantes mulçumanos na França?).

A propósito dessa “ultima grande rebelião de escravos”, vale notar que no capítulo “De grandes acontecimentos” de Assim Falou Zaratustra há uma alusão a uma estátua derrubada. (“E essas palavras digo ainda aos derrubadores de estátuas: ‘Não há estultície maior do que atirar sal no mar e estátuas no chão’.”). Essa frase, segundo nos informa Mario da Silva, remete à “estátua de Napoleão Bonaparte em trajos de Júlio César, que encimava – e encima – a coluna Vendôme, em Paris. Durante os dias da Comuna, em 1871, um grupo de communards, instigados pelo pintor Gustave Coubert, resolveu deitar por terra coluna e estátua; que voltaram, porém, a ser erguidas, no mesmo lugar, em 1874, e, portanto, lá estavam de novo quando Zaratustra aludia ao caso. E sabe-se que Nietzsche tinha profunda admiração por Napoleão”.[65] Nem tanto pela Revolução Francesa, acrescento eu.

São as mesmas pessoas que aplaudiram, num entusiasmo quase histérico, a adesão incondicional de Michael Foucault (outro ícone “osmótico” da juventude sem rumo da década perdida) ao regime dos aiatolás. O mesmo regime e os mesmos aiatolás (dá-lhes, Khomeiny!) que, pouco depois de chegar ao poder, provocou uma guerra fratricida contra o Iraque, com um saldo de mais de um milhão de mortos, que deixou o deserto coalhado de carcaças – de tanques e de homens. Uma teocracia dirigida por sacerdotes (no caso, mulçumanos xiitas), ou seja, o mesmo tipo de casta de quem Nietzsche diz[66] ser “os mais terríveis inimigos porque são os mais impotentes”, pois na sua impotência “o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa”, ressaltando por fim que “na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes”. Mas, “como turba de infantes inquietas”[67] os luminandos nietzschianos, apenas riem…

São pessoas que, tirando sabe Deus de onde, e confundindo conceitos derivados dos deuses com os próprios deuses, pretendem uma situação antitética irreconciliável entre Apolo (para vós, o “careta”) e Dioniso (o “doidão”), sem vos dar conta do que alertou um comentador de Nietzsche (tão a vosso gosto) segundo o qual “do mesmo modo que, na epopéia [na Ilíada], Apolo, o deus brilhante, solar [...] torna, por sua luz, a existência digna de ser vivida, a saudação ao sol, que abre o Zaratustra, funciona como um hino de louvor a Apolo, apresentando seu personagem título como indivíduo [naquele momento] apolíneo”.[68]

Pessoas que não se deram à estafante tarefa de ler o que o próprio Nietzsche tem a dizer sobre ambos os deuses ou, melhor dizendo, sobre os seus (dele, Nietzsche) conceitos de “dionisíaco” e “apolíneo”, o que faz nos seguintes termos:

“Com a palavra ‘dionisíaco’ é expresso: um ímpeto à unidade[69], um remanejamento radical sobre pessoa, cotidiano, sociedade, realidade, sobre o abismo do parecer: o passionalmente doloroso transporte para estados mais escuros, mais plenos, mais oscilantes; o embevecido dizer-sim ao caráter global da vida como aquilo que, em toda mudança, é igual, de igual potência, de igual ventura; a grande participação panteísta em alegria e sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as mais terríveis e problemáticas propriedades da vida; a eterna vontade de geração, de fecundidade, de retorno; o sentimento da unidade entre a necessidade do criar e do aniquilar.

Com a palavra ‘apolíneo’ é expresso: o ímpeto ao perfeito ser-para-si, ao típico ‘indivíduo’, a tudo o que simplifica, destaca, torna forte, claro, inequívoco, típico: a liberdade sobre a lei.

Ao antagonismo desses dois poderes artístico-naturais está vinculado o desenvolvimento da arte, com a mesma necessidade que o desenvolvimento da humanidade está vinculado ao antagonismo dos sexos. A plenitude de potência e o comedimento, a suprema forma de auto-afirmação em uma fria, nobre, arisca beleza: o apolinismo da vontade helênica.

Essa contrariedade do dionisíaco e do apolíneo no interior da alma grega é um dos grandes enigmas pelo qual me senti atraído, frente à essência grega. Não me esforcei, no fundo, por nada senão adivinhar por que precisamente o apolinismo grego teve de brotar de um fundo dionisíaco: o grego dionisíaco tinha necessidade de se tornar apolíneo: isso significa quebrar sua vontade de descomunal, múltiplo, incerto, assustador, em uma vontade de medida, de simplicidade, de ordenação a regra e conceito. O desmedido, o deserto, o asiático, está em seu fundamento: a bravura do grego consiste no combate com seu asiatismo: a beleza não lhe foi dada de presente, como tampouco a lógica, a naturalidade do costume, – ela foi conquistada, querida, ganha em combate – ela é sua vitória.”[70]

A propósito do “dionisíaco” nietzschiano, vale registrar aqui, por oportuno, uma opinião de C.G. Jung:

“Todos nós fomos surpreendidos por certas tendências paganizantes da Alemanha contemporânea, pois ninguém fora capaz de interpretar a íntima experiência dionisíaca de Nietzsche. Nietzsche – diz Jung – não foi senão um dos casos entre milhares e milhões de alemães – que na época ainda não haviam nascido em cujo inconsciente se desenvolveu, no decurso da Primeira Guerra Mundial, o primo germânico de Dioniso: Wotan. Nos sonhos dos alemães que tratei naquela época pude ver, com clareza, o surto da Revolução de Wotan, e em 1918 publiquei um trabalho no qual assinalava o caráter insólito do novo desenvolvimento que se deveria esperar na Alemanha. Aqueles alemães não eram de modo algum, pessoas que haviam lido Assim falava Zaratustra, e seguramente os jovens que celebravam sacrifícios pagãos de cordeiros, ignoravam as experiências de Nietzsche. Por isso deram a seu deus o nome de Wotan e não o de Dioniso.

Na biografia de Nietzsche – continua Jung – encontramos testemunhos irrefutáveis de que o deus ao qual ele se referia, originariamente, era na realidade Wotan; mas como filósofo clássico dos anos setenta e oitenta do século XIX, denominou-o Dioniso. Confrontados entre si, ambos os deuses apresentam muitos pontos em comum.”[71]

Por outro lado, nos ensina o professor Kerényi[72], que o adjetivo “dionisíaco” era usado pelos próprios gregos como um substantivo, no plural, para designar festivais em que eles faziam, ou experimentavam, coisas condizentes com o deus celebrado: o ‘dionisíaco’ era vivenciado nas “‘Dionísia”. O singular – diz o professor – era empregado para a designação de qualquer das particularidades concretas que constituíam o elemento dionisíaco do festival. O termo fundava sua pertinência tanto na linguagem com na realidade dos gregos. Entretanto o professor ressalta que Nietzsche foi o primeiro a introduzi-lo na história do pensamento.

Por não conhecer a citada obra do professor Kerényi, vós talvez não conheceis também o Prefácio à mesma, feito pelo competentíssimo professor Ulpiano T. Bezzera de Meneses, professor titular de História Antiga da Universidade de São Paulo – USP, para quem:

“As interpretações contemporâneas de Dioniso fazem paralelo com o quadro multiforme [do deus] e se multiplicam escolhendo este ou aquele traço ou assinalando as polaridades. Nem se contem as mobilizações ideológicas, de que serva de exemplo a apresentação do ritual dionisíaco como protótipo sacramental e até mesmo como prefiguração da Eucaristia cristã. Note-se que todas as correntes no campo dos estudos da religião, do mito e da mitologia possuem o seu Dioniso. Aqui, porém, só vale apontar uma dessas leituras, pelo efeito profundo e generalizado que teve, ao provocar, no entender de muitos especialistas, uma verdadeira ‘destruição de Dioniso como deus’, para transformálo num feixe de abstrações psicológicas. 

Trata-se da formulação de Friedrich Nietzsche (1872), que gira, aliás, mais em torno do dionisíaco do que de Dioniso propriamente dito. A antítese que ele estabeleceu entre o dionisíaco, como pulsão irruptiva, desestruturadora, destruidora, e o apolíneo, princípio de luz, ordem e criação, está hoje desgastada e, como se pode ver, ignora as polaridades essenciais que estão no interior do próprio Dioniso. Mas contribuiu, juntamente com alguma colaboração da Psicanálise, para instituir essa ‘internalização de Dioniso’ como projeção da psique humana”. [73]


São pessoas, ó iluminando nietzschiano, que a exemplo (mau exemplo) de alguns dos seus mestres professores-doutores, apesar do discurso em contrário pretensamente de vanguarda, formam guetos acadêmicos (no caso, guetos pretensamente iluminados – se me permitem a contradição) onde se reúnem, amiúde, para comparar, na verdade, não a solidez de conhecimentos, mas os seus próprios limites. Aqui brilham poucos sóis (de quinta grandeza) falando, solenes, a partir de seus limites para discípulos mais limitados ainda, dando razão ao dito popular segundo o qual “em terra de cego quem tem um olho é rei”. Nesse terreiro acadêmico (ai de ti, filosofia!) somente podem cantar os “doutores” amigos do rei para embasbacados e compungidos discípulos, fazendo lembrar a parábola do sabiá e dos urubus contada pelo eminente professor Rubem Alves.[74] 

Pessoas (professores-doutores e discípulos) sempre prontas a pespegar, em qualquer desavisado que ousar falar ou escrever alguma coisa contrária às suas doutas convicções, algo parecido a um trecho do texto de excomunhão de Espinoza promulgada pela comunidade judaica de Amsterdã a 27 de julho de 1656.[75] Pessoas que, deliberadamente, omitem o “anti” tudo aquilo (socialismo, democracia, feminismo…) que Nietzsche era – e se orgulhava de ser – e que hoje deve ser calado sob pena de danação eterna no sacrossanto altar do “politicamente correto” em relação ao qual, aliás, Nietzsche não estava nem aí.

Entretanto, apesar das tentativas de escamotear – como se nódoas fossem – as posições, digamos, pitorescas do filósofo, minha neófita cabeça acha – melhor, tem certeza – que Nietzsche é “anti” tudo aquilo. Pelo menos é o que pude deduzir de minhas parcas leituras do “discípulo do filósofo Dioniso” que prefere “antes ser um sátiro que um santo”.[76] Essa minha afirmação sobre o “anti” tudo isso que Nietzsche era pode ser constatada nos trechos a seguir ou, mais completamente, nas citações in totum constantes do “apêndice” no final deste texto:

“O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer herdar; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo, reacionárias”.[77]

“O povo está longíssimo do socialismo como doutrina da alteração do modo de adquirir a propriedade: e se alguma vez, pelas grandes maiorias de seus parlamentos, tiver nas mãos o controle do imposto, ele investirá com o imposto progressivo contra o principado do capitalismo, do comércio e da Bolsa, e de fato criará lentamente uma situação intermediária, que se pode esquecer o socialismo como uma doença superada”.[78]

“[...] o movimento democrático é o herdeiro do cristão. Que, porém, sua cadência, para os mais impacientes, para os doentes e maníacos (…) ainda é muito lenta e sonolenta, disso testemunha o clamor que se torna cada vez mais furioso, o cada vez menos oculto arreganhar de dentes dos cães anarquistas, que agora vagueiam pelos becos da civilização européia”.[79]

“Nós, que somos de uma outra crença, – nós, para quem o movimento democrático não é meramente uma forma de degradação da organização política, mas uma forma de degradação, ou seja, do apequenamento do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor”.[80]

“A degeneração geral do homem, até chegar àquilo que hoje aparece aos broncos e cabeças rasas do socialismo como seu ‘homem do futuro’, como seu ideal! – essa degeneração e apequenamento do homem em completo animal-de-rebanho (ou, como eles dizem, em homem da ‘sociedade livre’)” [81]

“[o anarquista] é porta-voz das camadas declinantes da sociedade que reclamam com bela indignação por ‘direito’, ‘justiça, ‘direitos iguais’ e com isso ele está apenas sobre a pressão de sua incultura, que não sabe conceber por que propriamente ele sofre – de que ele é pobre, de vida. Apenas um impulso causal tem potência sobre ele; alguém tem de ser o culpado por ele se sentir mal. Também a própria ‘bela indignação’ já lhe faz bem; para todos os pobres-diabos é um contentamento xingar – dá uma pequena embriaguez de potência”. [82]

“… o lamentar em nenhum caso presta para algo: provém da fraqueza. Imputar seu mal-estar a outros ou a si próprio – como fazem, respectivamente, o socialista e o cristão – não faz propriamente nenhuma diferença. O que em comum, e dizemos, também, o que há de indigno nisso é que alguém tem de ser culpado de que sofra – em suma, que o sofredor se receita, contra seu sofrer, o mel da vingança”. [83]

“O cristão e o anarquista são ambos décadents. Mas também quando o cristão condena, calunia, conspurca o ‘mundo’, ele o faz pelo mesmo instinto pelo qual o trabalhador socialista condena, calunia, conspurca a sociedade: mesmo o ‘Juízo Final’ é ainda o doce consolo da vingança – a revolução, tal como a espera também o trabalhador socialista, só que pensando um pouco mais longe…”[84]

“Quando uma mulher tem inclinações eruditas, geralmente há algo errado com sua sexualidade…[85]

“Comparando no todo o homem e a mulher, podemos dizer: a mulher não teria o gênio para o ornamento, não tivesse o instinto para o papel secundário.”[86]

“A mulher quer ser independente: [...] este é um dos piores progressos no enfeamento geral da Europa. Pois o que não revelarão essas grosseiras tentativas de cientificidade e autodesnudamento femininos! [...] há tanta coisa pedante, superficial, sabichã, mesquinhamente arrogante, mesquinhamente irrefreada e imodesta escondida na mulher [...] que até o momento, e no fundo, só o temor ao homem reprimiu e conteve da melhor maneira.”[87]

“Ai de nós, se um dia o ‘eterno-tedioso’ da mulher – no qual ela é pródiga – puder aparecer! Se ela começar a desaprender radicalmente e por princípio sua arte e manha, a graciosidade, do jogo, do afastar aflições, de aliviar e tomar com leveza, e sua refinada aptidão para desejos agradáveis! Já se ouvem vozes femininas que – por santo Aristófanes! – assustam; explicam ameaçadoramente e com precisão médica o que, em primeira e última análise, a mulher quer do homem. Não é de péssimo gosto que a mulher se disponha de tal modo a ser científica?”[88]

“A estupidez na cozinha; a mulher como cozinheira; a terrível leviandade com que se cuida da alimentação da família e do chefe da casa! A mulher não entende o que significa o alimento: e quer ser cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura pensante, teria descoberto, cozinhando há milênios, os mais importantes fatos fisiológicos, e teria também aprendido a arte da cura! Por más cozinheiras – por total ausência de razão na cozinha é que a evolução do homem foi mais longamente retardada, mais gravemente prejudicada: isso pouco mudou em nossos dias. Um aviso para as moças que freqüentam o secundário.”[89]

“[...] Pensa-se, inclusive, aqui e ali, em fazer das mulheres livres-pensadores e literatos: como se uma mulher sem religião não fosse, para um homem profundo e ateu, algo totalmente repugnante ou ridículo -; em quase toda parte arruínam os nervos delas com a mais doentia e perigosa espécie de música [...] e as tornam a cada dia mais histéricas e mais incapacitadas para sua primeira e última ocupação, que é gerar filhos robustos.”[90]

Assim (também) falava Nietzsche! Mas…

Como se não bastasse um conhecimento tão preconceituoso-ao-contrário e estanque do filósofo, esses aprendizes de feiticeiros ainda pecam contra a essência mesma da filosofia moderna que, preparada no Renascimento, inaugurada por Descartes e cuja quebra de paradigma que representou persiste na contemporaneidade, só é e só pode ser superação de estágios de conhecimento (e de convicções) determinados por cada momento histórico. Doravante, nada mais de verdades definitivas! Nada mais de dogmas! Afinal, se o próprio Deus, esteio do medievo por mil anos, “está morto” e “a crença no Deus cristão caiu em descrédito”[91], já não cabem mais, desde então, verdades pétreas.

Fazei justiça ao filósofo, ó luminandos nietzschianos. Não o transformeis em “fundador de religião”; não fazei dele o que ele não é (não era). Escutai com atenção o que ele mesmo vos disse a respeito do seu Zaratustra: “Aqui não fala nenhum ‘profeta’, nenhum daqueles arrepiantes híbridos de doença e vontade de potência que são chamados fundadores de religiões [...] Aqui não fala nenhum fanático, aqui não se ‘prega’, aqui não se exige crença”. [92] Aprendei a transvalorar valores e ouvi o filósofo:

“A arte ergue a cabeça quando as religiões perdem terreno. Ela acolhe muitos sentimentos e estados de espírito gerados pela religião, toma-os ao peito e com isso torna-se mais profunda, mais plena de alma, de modo que chega a transmitir elevação e entusiasmo, algo que antes não podia fazer. A riqueza do sentimento religiosos, que cresceu e se tornou torrente, continuamente transborda e deseja conquistar novos domínios: mas o crescente Iluminismo abalou os dogmas da religião e instilou uma radical desconfiança: assim, expulso da esfera religiosa pelo Iluminismo, o sentimento se lança na arte; em certos casos também na vida política, ou mesmo diretamente na ciência. Sempre que se nota, nos empenhos humanos, uma coloração mais intensa e mais sombria, pode-se presumir que o temor de espíritos, aroma de incensos e sombras da Igreja ali permaneceram.”[93]

Em todo esse contexto de quebras de paradigmas, produto do inexorável caminhar do tempo que a tudo supera; quando nós conseguimos pular os muros dos conventos e das abadias; quando Copérnico e Galileu já haviam conseguido derrubar o dogma aristotélico-cristão do geocentrismo e colocado a Terra e o Sol nos seus devidos lugares, aí então já aparecia como ator privilegiado justamente o conhecimento científico, aquela “irresistível necessidade de conhecimento que torna livre o espírito”, – na expressão do professor Giacóia – que, ao contrário do que supõe vossa vã filosofia, ó luminando nietzschiano, Nietzsche soube reconhecer muito bem ainda no início da segunda fase[94] (como querem alguns) de sua trajetória filosófica inaugurada com Humano, Demasiado Humano. Como bem observou um competente comentador de Nietzsche:

“Essa segunda fase na trajetória filosófica de Nietzsche pode ser caracterizada por uma valorização do conhecimento científico e um abrandamento da oposição entre arte e ciência que, com seus diferentes matizes, caracterizava a metafísica de artista do jovem Nietzsche. Agora, o homem teórico – cujos modelos eram Sócrates e Platão – não se opõe mais ao artista; pelo contrário, é pensado como seu desenvolvimento, assim como o próprio artista passa a ser interpretado como desenvolvimento do homem religioso. O prazer de viver, a satisfação fruída na contemplação das formas, cultivados na humanidade sob a influência da arte, desafogam-se na ‘irresistível necessidade de conhecimento’.

Se para o jovem Nietzsche – diz o professor -, o aprofundamento do conhecimento científico conduzia à proliferação de um saber erudito e estéril, que sufocava a vida, para o Nietzsche do período intermediário o conhecimento científico torna livre o espírito e, como herdeiro da riqueza e da elevação de ânimos produzida pela arte, passa a assumir uma função transfiguradora, embelezadora da existência.” [95]

Opinião semelhante tem Roberto Machado quando escreveu que: “é indubitável que desde Humano, Demasiado Humano, de 1878, e em seguida com Aurora, de 1881, Nietzsche cada vez mais se afasta da problemática da ‘metafísica de artista’, que orientava O nascimento da tragédia e, portanto, de Wagner e Schopenhauer”.[96] Pertinentes as observações dos professores Giacóia e Roberto Machado.

Entretanto, uma parcela considerável desses nietzschianos de “ouvir dizer” (dá-lhes, Espinosa!) que conhecem mais de Virgulino Lampião do que do filósofo andarilho, parece esquecer que, como tudo o mais, Nietzsche também mudou ao longo de sua trajetória filosófica; e que é ser mais fiel ao filósofo antes acompanhar esse desenvolvimento, esse conjunto de auto-superações (que, aliás, deveria servir de exemplo), do que uma errônea cristalização, uma petrificação do seu pensamento, igualando-o a um Profeta escrevendo Bíblias pretensamente imutáveis e atemporais. O próprio Nietzsche é contra isso e certamente, a exemplo de Marx em relação ao marxismo e de Freud em relação ao freudismo (e do próprio Cristo em relação ao cristianismo – Nietzsche que o diga), se vivo fosse, admoestaria seriamente mais de um nietzschiano de espírito dogmático e, portanto, um anti-Nietzsche. Dir-lhes-ia, do alto dos seus bigodes e dos seus constantes mal-estares, que “quem ‘explica’ a passagem de um autor ‘mais profundamente’ do que sua intenção não explicou o autor, mas obscureceu-o”.[97]

No ocaso de sua vida lúcida (1888), e como que numa espécie de canto de cisne[98], Nietzsche disse que “a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus contemporâneos, alcançou sua expressão no fato de que nem me ouviram, nem sequer me viram. Vivo de meu próprio crédito, e quem sabe é um mero preconceito dizer que vivo?… Basta falar com algum homem ‘culto’ [...] para me convencer de que não vivo… Nessas circunstâncias há um dever, contra o qual se revolta, no fundo meu hábito, e mais ainda o orgulho de meus instintos, ou seja, de dizer: Ouçam! Pois eu sou tal e tal. Não me confundam, sobretudo![99]  Logo a seguir[100], afirmou que “a última coisa que eu me prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade. Por mim não são erigidos novos ídolos; os velhos que aprendam a ter apenas pernas de argila. Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, já faz parte do meu ofício.” (dá-lhes, Nietzsche! (E me perdoem a repetição).

Como ressaltou o professor Giacoia Junior, o seu objetivo ao escrever sua (excelente) apresentação de Nietzsche para o “Folha explica” foi o de “fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de Nietzsche – não para depois encerrá-los em qualquer câmara da memória, mas sim para despertar seu interesse e estimulá-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche – diz o professor – implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, às vezes, também contra Nietzsche.”[101] Mais adiante[102], esclarece que “O mestre é aqui [em A Gaia Ciência], sobretudo, aquele que prepara o discípulo para abandoná-lo, para que este compreenda por si mesmo a aventura do espírito” pois, ressalta o professor, “Nietzsche acredita que esse caminho [para a personalidade autêntica] está reservado apenas para aqueles poucos que têm a ousadia de pensar e responder por si próprios.”

É verdade que o professor Giacoia nos alerta[103] para o fato de que “é no contexto de um background estético-metafísico” em relação aos antigos gregos[104] [...] “que se deve apreciar a crítica do jovem Nietzsche às idéias modernas de liberdade individual e igualitarismo, à democracia, ao liberalismo, cuja exacerbação ele via se configurar nos movimentos revolucionários socialistas e anarquistas”. O professor esclarece, ainda, que “a motivação fundamental” [da filosofia política de Nietzsche] “deve ser buscada não em alguma identificação com os interesses de uma classe social ou movimento político, mas na compreensão da cultura como redenção da natureza e da vida”, alertando, a propósito, que: 1) “essa mesma observação vale para as fases ulteriores de seu filosofar” e 2) que “são equivocadas as interpretações que consideram sua obra uma apologia da aristocracia e da escravidão”.

 Tudo bem. Mas a verdade, a verdade que não quer calar nem que a vaca tussa, mesmo considerando as ponderações do professor Giacoia e, ainda, uma observação, a meu ver importante, de Norberto Bobbio,[105] a verdade, eu dizia, é que sobre socialismo e socialistas, anarquismo e anarquistas, democracia e mulheres, por exemplo, Nietzsche não deixa nenhuma dúvida sobre sua posição como, aliás, já demonstrei acima e como bem demonstra a citação abaixo, com que encerro este texto.

 Em Crepúsculo dos Ídolos[106], falando sobre seu conceito de liberdade, e sintetizando seu “anti” tudo aquilo a que me referi, diz o filósofo: “Liberdade significa que os instintos viris, que se alegram com a guerra e a vitória, têm domínio sobre outros instintos, por exemplo, sobre o de ‘felicidade’. O homem que se tornou livre e, ainda mais, o espírito que se tornou livre, calca sob os pés a desprezível espécie de bem-estar com que sonham merceeiros, cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas. O homem livre é um guerreiro”. 

Apêndice

Citações de Nietzsche sobre socialismo e socialistas, anarquismo e anarquistas, mulheres, Revolução Francesa, professores, etc.


Sobre Socialismo, Anarquismo e Democracia:

Em Humano, Demasiado Humano[107] (I, §235) Nietzsche escreve que “os socialistas desejam instaurar um bem viver para o maior número possível. Se a pátria dourada desse bem-viver, o Estado perfeito, fosse efetivamente alcançada, então, por esse bem-viver, o chão de que cresce o grande intelecto, e em geral o indivíduo forte, estaria destruído: refiro-me à grande energia. A humanidade se teria tornado demasiado débil, se esse Estado tivesse sido alcançado, para poder ainda gerar o gênio”. 

Mais adiante na mesma obra (I, §473), diz o filósofo: “O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer herdar; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo, reacionárias. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como só a teve uma vez o despotismo, e até mesmo supera todo o passado por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo: o que lhe aparece como um injustificado luxo da natureza e deve ser transformado e melhorado por ele em um órgão da comunidade adequado a seus fins”. (itálicos originais).
  
Ainda em Humano, Demasiado Humano (II, §292), escreveu que “Tentam agora as potências políticas explorar o medo ao socialismo para se fortalecer. Mas no entanto, a longo prazo, somente a democracia tira proveito disso: pois todos os partidos são agora obrigados a lisonjear ‘o povo’ e a conceder-lhe felicidades e liberdades de toda espécie, com que ele acaba por tornar-se onipotente. O povo está longíssimo do socialismo como doutrina da alteração do modo de adquirir a propriedade: e se alguma vez, pelas grandes maiorias de seus parlamentos, tiver nas mãos o controle do imposto, ele investirá com o imposto progressivo contra o principado do capitalismo, do comércio e da Bolsa, e de fato criará lentamente uma situação intermediária, que se pode esquecer o socialismo como uma doença superada”. 

Em Para Além de Bem e Mal[108] (§ 202), diz Nietzsche: “Moral é hoje, na Europa, moral de animal-de-rebanho: portanto, como entendemos as coisas, somente uma espécie de moral humana, ao lado da qual, antes da qual, depois da qual, muitas outras morais e, antes de tudo, morais superiores são possíveis, ou deveriam ser. Contra uma tal ‘possibilidade’, contra um tal ‘deveriam’, defende-se, porém, essa moral, com todas as forças: ele diz teimosa e inexoravelmente: ‘Eu sou a moral mesma, e nada além disto é moral!’ – aliás, com o auxílio de uma religião que fazia a vontade dos mais sublimes apetites de ainimal-de-rebanho, e os adulava, chegou o ponto em que, mesmo nas instituições políticas e sociais, encontramos uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático é o herdeiro do cristão. Que, porém, sua cadência, para os mais impacientes, para os doentes e maníacos do citado instinto, ainda é muito lenta e sonolenta, disso testemunha o clamor que se torna cada vez mais furioso, o cada vez menos oculto arreganhar de dentes dos cães anarquistas, que agora vagueiam pelos becos da civilização européia: aparentemente, em oposição aos pacífico-laboriosos democratas e ideólogos da revolução, e mais ainda aos broncos filosofastros e fanáticos de irmandade que se denominam socialistas e querem a ‘sociedade livre’; em verdade, porém, unânimes com todos eles na fundamental e instintiva hostilidade contra toda outra forma de sociedade que não a do rebanho autônomo (chegando até a própria rejeição dos conceitos ‘senhor’ e ‘servo’ – ni dieu, ni maître, diz uma forma socialista); unânimes na tenaz resistência contra toda pretensão particular, todo direito particular e privilégio (isto é, no último fundamento, contra todo direito: pois quando todos são iguais ninguém mais precisa ‘direitos’); unânimes na desconfiança contra a justiça penal (como se ela fosse uma violência contra o mais fraco, uma injustiça contra a conseqüência necessária de toda a sociedade anterior); mas igualmente unânimes na religião da compaixão, na simpatia que se estende a tudo que sente, vive, sofre (descendo até o animal, subindo até ‘Deus’: – a extravagância de uma ‘compaixão por Deus’ faz parte de uma época democrática); unânimes todos eles na gritaria e na impaciência da compaixão, no ódio mortal contra o sofrimento em geral, na quase feminina inaptidão para permanecer expectador, para deixar sofrer; unânimes no involuntário ensombrecimento e abrandamento, sob cujo anátema a Europa parece ameaçada de um novo budismo; unânimes na crença na moral da compaixão em comum, como se ela fosse a moral em si, fosse a altura, a altura alcançada do homem, a única esperança do futuro, o meio de consolação dos presentes, a grande remissão de toda culpa desde sempre: - unânimes todos eles na crença em uma comunidade como redentora, no rebanho, portanto, em ‘si’…” (Itálicos originais, negrito meu).

No parágrafo seguinte (203) da mesma obra escreve o filósofo: “Nós, que somos de uma outra crença, – nós, para quem o movimento democrático não é meramente uma forma de degradação da organização política, mas uma forma de degradação, ou seja, do apequenamento do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor: para onde temos nós de apontar nossas esperanças? – Para novos filósofos, não resta escolha; para espíritos fortes e originais o bastante para dar os primeiros impulsos e estimativa de valor opostos e transvalorar, inverter, ‘valores eternos’; para homens do futuro que atem no presente a coação e o nó que coage a vontade de milênios a novas trilhas. Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, como dependente de uma vontade de homem, e preparar grandes riscos e ensaios coletivos de disciplina e aprimoramento, para com isso por termo àquela horrível dominação da insensatez e do acaso que até agora se chamou ‘história’ – a insensatez do ‘maior número’ é apenas sua última forma: para isso será algum dia necessária uma nova espécie de filósofos e detentores do mando, a cuja imagem tudo o que existiu sobre a terra de espíritos ocultos, terríveis e benévolos poderia se tornar pálido e anão.

A imagem de tais guias é aquilo que paira diante de nossos olhos: – posso dizer em voz alta, ó espíritos livres? As circunstâncias para seu surgimento que se teriam, em parte, de criar, em parte de utilizar; os presumíveis caminhos e provas, graças aos quais uma alma cresceria a tal altura e poder a ponto de sentir a coação a essas tarefas; uma transvaloração dos valores, sob cuja nova pressão e martelo uma consciência seria acerada, um coração transformado em bronze, para suportar o peso de uma tal responsabilidade; por outro lado, a necessidade de tais guias, o apavorante perigo de poderem deixar de vir, ou não dar certo, ou degenerar – esses são propriamente nossos cuidados e ensombrecimentos, vós o sabeis, ó espíritos livres? esses são os pesados, longínquos pensamentos e tempestades que passam pelo céu de nossa vida. Há poucas dores tão sensíveis como ter visto uma vez, adivinhado, sentido, como um homem extraordinário se extraviou de seu caminho e degenerou: mas quem tem o raro olho para o perigo geral, de que ‘o homem’ mesmo degenere, quem, igual a nós, conheceu a descomunal contingência que até agora, em vista do futuro do homem, jogou seu jogo – um jogo em que nenhuma mão e nem sequer um ‘dedo de Deus’ tomava parte! – quem adivinha a fatalidade que se esconde  na imbecil inadvertência e venturosa confiança das ‘idéias modernas’, e mais ainda em toda moral cristiano-européia: esse sofre de uma angústia com que nenhuma outra pode ser comparada – pois capta com um olhar tudo aquilo que ainda, no caso de uma favorável reunião e intensificação de forças e tarefas, se poderia aprimorar a partir do homem, sabe, com todo o saber de sua consciência, como o homem ainda está inesgotado para as maiores possibilidades, e quantas vezes já o tipo de homem se postou diante de misteriosas decisões e novos caminhos – sabe ainda melhor, como sua mais dolorosa lembrança, em que deploráveis coisas algo de primeira ordem vindo a ser até agora se quebrou, alquebrou, afundou, tornou-se deplorável. A degeneração geral do homem, até chegar àquilo que hoje aparece aos broncos e cabeças rasas do socialismo como seu ‘homem do futuro’, como seu ideal! – essa degeneração e apequenamento do homem em completo animal-de-rebanho (ou, como eles dizem, em homem da ‘sociedade livre’), essa animalização do homem em animal anão dos direitos e pretensões iguais é possível, não há dúvida nenhuma! Quem pensou uma vez essa possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais do que os outros homens – e talvez também uma nova tarefa!”         

Em Crepúsculo dos Ídolos[109] (§ 34), tratando de cristãos e anarquistas, escreve que “[o anarquista] é porta-voz das camadas declinantes da sociedade que reclamam com bela indignação por ‘direito’, ‘justiça, ‘direitos iguais’ e com isso ele está apenas sobre a pressão de sua incultura, que não sabe conceber por que propriamente ele sofre – de que ele é pobre, de vida. Apenas um impulso causal tem potência sobre ele; alguém tem de ser o culpado por ele se sentir mal. Também a própria ‘bela indignação’ já lhe faz bem; para todos os pobres-diabos é um contentamento xingar – dá uma pequena embriaguez de potência”. Para Nietzsche, “o lamentar em nenhum caso presta para algo: provém da fraqueza. 

Imputar seu mal-estar a outros ou a si próprio – como fazem, respectivamente, o socialista e o cristão – não faz propriamente nenhuma diferença. O que em comum, e dizemos, também, o que há de indigno nisso é que alguém tem de ser culpado de que sofra – em suma, que o sofredor se receita, contra seu sofrer, o mel da vingança”. Arremata com as seguintes palavras: “O cristão e o anarquista são ambos décadents. Mas também quando o cristão condena, calunia, conspurca o ‘mundo’, ele o faz pelo mesmo instinto pelo qual o trabalhador socialista condena, calunia, conspurca a sociedade: mesmo o ‘Juízo Final’ é ainda o doce consolo da vingança – a revolução, tal como a espera também o trabalhador socialista, só que pensando um pouco mais longe…” (itálicos originais).

Sobre mulheres:

“A estupidez na cozinha; a mulher como cozinheira; a terrível leviandade com que se cuida da alimentação da família e do chefe da casa! A mulher não entende o que significa o alimento: e quer ser cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura pensante, teria descoberto, cozinhando há milênios, os mais importantes fatos fisiológicos, e teria também aprendido a arte da cura! Por más cozinheiras – por total ausência de razão na cozinha é que a evolução do homem foi mais longamente retardada, mais gravemente prejudicada: isso pouco mudou em nossos dias. Um aviso para as moças que freqüentam o secundário.”[110] (itálicos originais). 

“A mulher quer ser independente: e com tal objetivo começa a esclarecer os homens sobre a “mulher em si” – este é um dos piores progressos no enfeamento geral da Europa. Pois o que não revelarão essas grosseiras tentativas de cientificidade e autodesnudamento femininos! A mulher tem muitos motivos para o pudor; há tanta coisa pedante, superficial, sabichã, mesquinhamente arrogante, mesquinhamente irrefreada e imodesta escondida na mulher – basta examinar sua relação com as crianças! -, que até o momento, e no fundo, só o temor ao homem reprimiu e conteve da melhor maneira. Ai de nós, se um dia o ‘eterno-tedioso da mulher – no qual ela é pródiga – puder aparecer! Se ela começar a desaprender radicalmente e por princípio sua arte e manha, a graciosidade, do jogo, do afastar aflições, de aliviar e tomar com leveza, e sua refinada aptidão para desejos agradáveis! Já se ouvem vozes femininas que – por santo Aristófanes! – assustam; explicam ameaçadoramente e com precisão médica o que, em primeira e última análise, a mulher quer do homem. 

Não é de péssimo gosto que a mulher se disponha de tal modo a ser científica? Até agora a tarefa de esclarecer foi, por felicidade, coisa de homens, dom dos homens – ficava “entre nós”; e afinal, com tudo que as mulheres escreveram sobre “ a mulher”, é lícito duvidar que a mulher queira ou possa querer esclarecimento sobre si… Se com isso ela não busca para si um novo efeite – creio que enfeitar-se é parte do eterno-feminino, não? -, então ela quer despertar temor – quer talvez dominar. Mas não quer a verdade: que interessa à mulher a verdade! Desde o início nada é mais alheio, mais avesso, mais hostil à mulher que a verdade – sua grande arte é a mentira, seu maior interesse, a aparência e a beleza. Vamos confessá-lo, nós, homens: nós festejamos e amamos precisamente essa arte e esse instinto na mulher: nós, para quem as coisas são pesadas e que de bom grado nos juntamos, para obter alívio, a seres cujas mãos, olhares e ternas tolices nos fazem parecer quase tolice a nossa seriedade, nosso peso e profundidade. Afinal coloco a pergunta: Alguma mulher já reconheceu profundidade a uma cabeça de mulher, justiça a um coração de mulher? 

E não é verdadeiro que, tudo somado “a mulher” foi sempre mais desprezada pela mulher mesma? – e de forma alguma por nós? Nós, homens, desejamos que a mulher não continue a se comprometer através do esclarecer: assim como foi cuidado e atenção masculina para com a mulher que a Igreja decretasse mulier taceat in ecclesia! [que a mulher se cale na igreja!].  Foi em proveito da mulher que Napoleão deu a entender à excessivamente loquaz Madame de Staël: mulier taceat in politicis! [a mulher se cale na política!] – e penso que é um verddeiro amigo das mulheres quem hoje lhes diz: mulier taceat de muliere! [a mulher se cale acerca da mulher!].[111] 

“Em nenhuma época o sexo fraco foi tratado com tanto respeito pelos homens como na nossa – o que é parte da tendência democrática e seu gosto básico, do mesmo modo que a falta de reverência pela velhice – : como admirar que logo se abuse desse respeito? Querem mais, aprendem a exigir, por fim acham quase ofensivo esse tributo de respeito, preferiam a competição por direitos, até mesmo a luta: em suma, a mulher perde o pudor. Acrescentamos logo que também perde o gosto. Desaprender a temer o homem: mas a mulher que ‘desaprende o temor’ abandona seus instintos mais femininos. Que a mulher ouse avançar quando já não se quer nem se cultiva o que há de amedrontador no homem, mais precisamente o homem no homem, é algo de se esperar e também de se compreender;o que dificilmente se compreende é que por isso mesmo a mulher – degenera. Isso acontece hoje, não nos enganemos!

Em toda parte onde o espírito industrial venceu o espírito militar e aristocrático, a mulher aspira à independência econômica e legal de um caixeiro: ‘a mulher como caixeira’ – está escrito no portal da sociedade moderna que se forma. Apoderando-se de tal maneira de novos direitos, buscando tornar-se ‘senhor’ e inscrevendo  o ‘progresso’ feminino em suas bandeiras e bandeirolas , ela vê realizar-se o contrário, com terrível nitidez: a mulher está em regressão. Desde a Revolução Francesa a influência da mulher na Europa diminuiu, na proporção em que aumentaram seus direitos e exigências; e a ‘emancipação da mulher’, na medida em que é reivindicada e promovida pelas próprias mulheres (e não só por homens de cabeça oca) resulta num sintoma curioso de progressivo enfraquecimento e embotamento dos instintos femininos. Há estupidez nesse movimento, uma quase masculina estupidez, da qual uma mulher bem lograda – que é sempre uma mulher sagaz – se envergonharia gravemente. Perder a intuição do terreno onde a vitória é mais segura; descuidar o exercício de sua verdadeira arma; pôr-se a anteceder o homem, chegando talvez “até o livro”, quando antes praticava a reserva e uma sutil, astuta submissão; combater, com virtuosa audácia, a crença do homem num ideal radicalmente outro escondido na mulher, num eterno e necessário-feminino; tentar dissuadir o homem , com insistência e parolice, de que a mulher deve ser cuidada, mantida, protegida, poupada como um animal doméstico bem delicado, curiosamente selvagem e freqüentemente agradável; a procura canhestra e indignada de tudo o que há de escravo e servil na posição da mulher na presente ordem social (como se a escravidão fosse um contra-argumento, e não uma condição de toda cultura elevada, de toda elevação da cultura) – que significa tudo isso, senão uma desagregação dos instintos femininos, uma desfeminização? Certamente não faltam idiotas amigos das senhoras e corruptores da mulher entre os doutos jumentos masculinos, que aconselham a mulher a se desfeminizar dessa maneira e imitar as estupidezes de que sofre o ‘homem’ da Europa, a ‘masculinidade’ européia – que gostariam de rebaixar a mulher à ‘educação geral’  e mesmo à leitura de jornais e à política. Pensa-se, inclusive, aqui e ali, em fazer das mulheres livres-pensadores e literatos: como se uma mulher sem religião não fosse, para um homem profundo e ateu, algo totalmente repugnante ou ridículo -; em quase toda parte arruínam os nervos delas com a mais doentia e perigosa espécie de música (nossa mais recente música alemã) e as tornam a cada dia mais histéricas e mais incapacitadas para sua primeira e última ocupação , que é gerar filhos robustos. Querem ‘cultivá-las’ ainda mais e, como dizem, através da cultura tornar forte o ‘sexo fraco’: como se a história não ensinasse, do modo mais premente, que o ‘cultivo’ do ser humano e o enfraquecimento – isto é, enfraquecimento, fragmentação, adoecimento da força de vontade – sempre andaram juntos, e que as mais poderosas e influentes mulheres do mundo (por último a mãe de Napoleão) deveram seu poder e autoridade junto aos homens à sua força de vontade – e não aos professores! O que na mulher inspira respeito e com freqüência temor é a sua natureza que é ‘mais natural’ que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre por baixo d luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes… o que, com todo o temor, desperta compaixão por esse belo e perigoso felino ‘mulher’, é o fato de ela parecer mais sofredora , mais frágil, mais necessitada de amor e condenada à desilusão que qualquer outro animal. Temor e compaixão: com esses ensinamentos o homem colocou-se até agora diante da mulher, sempre com um pé na tragédia, que dilacera ao encantar. – Como? E isso estaria acabando? 

O desencantamento da mulher está em marcha? Está surgindo o entediamento da mulher? Ó Europa! Europa! Conhecemos o animal com chifres que sempre te atraiu mais, e do qual sempre existe a ameaça! Tua velha fábula poderia mais uma vez tornar-se ‘história’ – mais uma vez uma imensa estupidez poderia assenhorar-se de ti e levar-te embora! E embaixo dela não se esconde nenhum deus; não! Apenas uma ‘idéia’, uma ‘idéia moderna’!…”[112]

‘Por que Zaratustra, te esquivas sorrateiro no lusco-fusco? E que escondes tão cuidadosamente debaixo do manto?
Será um tesouro com que te presentearam? Ou um filho que te nasceu? Ou segues tu mesmo, agora, porventura, os caminhos dos ladrões, tu, o amigo dos malvados?’

Na verdade, meu irmão – falou Zaratustra -, é um tesouro que me deram de presente: é uma pequena verdade, isto que trago comigo.
Mas é rebelde como uma criancinha; e, se não lhe tapasse a boca, gritaria com toda força. 

Caminhava eu, hoje, sozinho, quando, na hora em que o sol se põe, encontrei-me com uma velinha, que assim se dirigiu à minha alma:
‘Muitas coisas Zaratustra disse também a nós, mulheres, mas nunca nos falou da mulher’.
E eu lhe respondi: ‘Da mulher, só se deve falar aos homens.’
‘Fala da mulher a mim também’, disse ela; ‘ sou velha bastante para esquecer logo as tuas palavras.’
E eu fiz a vontade à velinha e assim lhe falei:
Tudo, na mulher, é enigma e tudo, na mulher, tem uma única solução: chama-se gravidez.
O homem, para a mulher, é meio: o fim é sempre o filho. Mas, que é a mulher para o homem? Duas espécies de coisas, quer o verdadeiro homem: perigo e divertimento. Quer, por isso, a mulher, como o mais perigoso dos brinquedos. 

É preciso que o homem seja educado para a guerra e a mulher, para o descanso do guerreiro; tudo o mais é estultície.
 Não gosta o guerreiro de frutos demasiadamente doces. Por isso, gosta da mulher; há ainda um travo amargo na mais doce das mulheres.
A mulher compreende a criança melhor que o homem, mas o homem é mais criança do que a mulher.

 No verdadeiro homem está oculta uma criança, que quer brincar. Ânimo, mulheres, descobri, pois, a criança no homem! 

Um brinquedo, seja a mulher, puro e delicado, semelhante à pedra preciosa, iluminada pelas virtudes de um mundo que ainda não nasceu. 

Que a luz de uma estrela brilhe em vosso amor! Que a vossa esperança seja: ‘Possa eu dar à luz o super-homem!’

Que haja coragem em vosso amor!Deveis investir com o vosso amor contra aqueles que vos inspiram medo. 

Que a vossa honra consista em vosso amor! No mais, pouco a mulher entende de honra. Mas que a vossa honra seja sempre amar mais do que sois amada e, nisso, nunca ficará atrás. 

Que o homem tema a mulher, quando ela ama: é capaz de todo o sacrifício e qualquer outra coisa não tem, para ela, valor.

Que o homem tema a mulher, quando ela odeia: porque, no fundo da alma, o homem é apenas malvado, mas a mulher é ruim.

Que odeia a mulher mais que tudo? Assim falou o ferro ao imã: ‘Eu te odeio mais que tudo, porque atrais, mas não és suficientemente forte para atrair-me a ti’.

A felicidade do homem chama-se: eu quero. A felicidade da mulher chama-se: ele quer.

‘Vê! O mundo acaba de atingir a perfeição!’ – assim pensa toda mulher , quando obedece com a força inteira do seu amor.

E obedecer, deve a mulher, e achar uma profundidade para a sua superfície. Superfície é o gênio da mulher, uma epiderme movediça e borrascosa numa água pouco funda. 

Mas a alma do homem é profunda, seu caudal ressoa em cavernas subterrâneas; a mulher adivinha-lhe a força, mas não a compreende.
Respondeu-me, então, a velinha: ‘Muitas coisas gentis disse Zaratustra, especialmente para as que são bastante jovens para isso.
Estranho é que Zaratustra pouco conhece as mulheres e, ainda assim, tem razão a seu respeito! Será que isso acontece porque, à mulher, nada é impossível?

E agora, como agradecimento, recebe uma pequena verdade! Afinal, sou suficiente velha para dá-la.
Enrola-a e tapa-lhe a boca, senão essa pequena verdade gritará com toda a força.’
‘Dá-me a tua pequena verdade, mulher!’, disse eu. E assim falou a velinha: 
Vais ter com mulheres? Não esqueças o chicote!
Assim falou Zaratustra.”[113] 

Sobre a Revolução Francesa:

“Como sucedeu recentemente, em plena luz dos tempos modernos, com a Revolução Francesa, essa farsa horrível e, observada de perto, desnecessária, na qual os espectadores nobres e entusiastas de toda a Europa interpretaram à distância os seus próprios arrebatamentos e indignações, por tanto tempo e tão apaixonadamente que o texto desapareceu sob a interpretação: assim também uma posteridade nobre poderia mal-entender o passado inteiro, e desse modo tornar insuportável a visão dele. – Aliás: isto já não aconteceu? Não fomos nós mesmos essa ‘posteridade nobre’? E não foi precisamente agora que, na medida em que o percebemos – isso acabou?”[114] 

“[...] A ‘ilustração’ irrita: o escravo quer o incondicional, ele só compreende o que é tirânico, também na moral; ele ama como odeia, sem nuance e até o fundo, até a dor, até a doença – seu enorme sofrimento oculto se revolta contra o gosto nobre, que parece negar o sofrer. O ceticismo em relação ao sofrimento, no fundo somente uma pose da moral aristocrática, concorreu em não pequena medida para a última grande rebelião de escravos, que teve início com a Revolução Francesa”.[115] 

 Fonte:
CONSCIÊNCIA.ORG
http://www.consciencia.org/nietzsche-e-os-nietzscheanos-assim-tambem-falava-nietzsche
Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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