domingo, 13 de março de 2011

A ILUSÃO DA ANÁLISE - Eduardo Seincman


Eduardo Seincman

Ao escutarmos uma obra musical dizemos que aquilo que está sendo ouvido é o presente. Ninguém, de maneira geral, coloca qualquer tipo de dúvida a respeito desta constatação. Se, no entanto, perguntarmos o que seja o presente, talvez nos respondam: o presente não é nem o passado, pois este já se foi, e nem tampouco o futuro, pois este ainda não se deu; é um intervalo de tempo entre ambos. Mas, logo em seguida, viria a questão: qual seria a duração deste intervalo de tempo? Estamos diante de um paradoxo para o qual não existem, pois, respostas satisfatórias. Nós intuímos e sentimos a existência do presente, mas não sabemos em que momento ele se inicia ou termina.

Não podemos precisar objetivamente
os limites de separação entre os fatos do presente, 
do passado e do futuro.

Santo Agostinho aborda esse impasse com extraordinária clareza: “chamamos longo o tempo passado se é anterior ao presente, por exemplo, cem anos. Do mesmo modo dizemos que o tempo futuro é longo se é também posterior ao presente também cem anos. Chamamos breve ao passado se dizemos, por exemplo, já dez dias; e ao futuro, se dizemos daqui a dez dias.

Mas como pode ser breve ou longo o que não existe?(...) Não digamos pois: o tempo passado foi longo, porque não encontramos aquilo que tivesse podido ser longo, visto que já não existe desde o instante em que passou. Digamos antes: aquele tempo presente foi longo(...) Vejamos, portanto, ó alma humana, se o tempo presente pode ser longo(...) Por ventura cem anos presentes são muito tempo?(...) 

Se apresentarmos como presente qualquer dos anos intermediários da série centenária, notamos que os que estão antes dele são passados, e os que estão depois são futuros. Pelo que cem anos não podem ser presentes(...) O dia e a noite compõem-se de vinte e quatro horas, entre as quais a primeira tem as outras todas como futuras, e a última tem todas como passadas(...) Uma hora compõe-se de fugitivos instantes. Tudo o que dela já debandou é passado. Tudo o que ainda resta é futuro. 

Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço. Onde existe portanto o tempo que podemos chamar longo?”(1)

Toda esta argumentação cria um paradoxo justamente porque procuramos reconstituir a realidade temporal a partir de conceitos imóveis e estáticos como passado, presente e futuro. O fato de aceitarmos e nos enredarmos nas argumentações de Sto. Agostinho, nos demonstra que estamos habituados a pensar a realidade de uma maneira estanque. E neste ponto caberia perguntar se esta maneira de abordar o tempo, de destacar segmentos naquilo que é, na realidade, um fluxo, seria válido, também, para a fruição do fenômeno musical.

Esta é uma questão complexa e que será abordada posteriormente. Algo, no entanto, é evidente; para transpor as idéias imediatas, estáticas, prontas, de senso-comum, necessitamos, como salientou Bergson, inverter a marcha habitual de nosso pensamento. Temos de superar a noção dogmática de que a sensação da passagem do tempo musical seja uma experiência pessoal e intransferível, ou do contrário a recepção do objeto será sempre solitária e intraduzível, algo de que jamais poderá se falar com a mínima objetividade.

Tomemos o enfoque inverso: suponhamos a presença de uma série de dados comuns à recepção dos mais variados indivíduos, em uma mesma época. Não poderíamos aceitar, então integralmente, certas objeções como as que, por exemplo, Hanslick efetuou: “como a música não possui um modelo na natureza e não exprime um conteúdo conceitual, só se pode falar dela com áridos termos técnicos ou com imagens poéticas. Seu reino, na verdade, não é o deste mundo. 

Todas as fantásticas representações, caracterizações, descrições de uma peça musical, são alegóricas ou errôneas. O que para qualquer outra arte não passa de descrição, para a música é metáfora”(2). Atingimos, assim, uma questão crucial: será possível investigar uma obra sem ter de recorrer, por um lado, a uma análise meramente tecnicista e, por outro, a uma abordagem vagamente poético-descritiva?

Cremos que uma análise musical digna deste nome, e de sua função, deve antes de tudo despertar o interesse e a curiosidade por este estranho objeto, a música, sem deixar de considerar o fato de que “numa época que não possua crítica de arte, a arte não existe ou é uma hierática, que se reduz à reprodução de velhos tipos”, tal como observou Oscar Wilde(3).

A questão da análise tornou-se, no século XX, algo por vezes tão dissociado do fenômeno sonoro, da música enquanto “som soando”, que nos deparamos frente a uma situação paradoxal em que ela, a análise, torna-se um outro objeto, distante mesmo do objeto sonoro que lhe dá origem. E neste ponto específico talvez Bergson ilumine, suficientemente, algumas questões primordiais. 

Se as análises são insuficientes, não seria devido ao fato de concebermos a realidade móvel e temporal da música como uma realidade estática e especial? Dissecamos o objeto musical como se fora um cadáver e, após retalhá-lo, procurando reconstituir, assim, a sua realidade viva e sonora, ratificando, assim, a opinião de senso-comum, exposta por Bergson, de que “há mais no imóvel do que no movente, e passamos do estável ao instável por uma simples diminuição”(4). 

Segundo Bergson, jamais poderemos atingir os conteúdos temporais, a mobilidade, a partir de eixos espaciais e imóveis: se a análise se restringir a este patamar, corremos o risco de nos determos na inércia de meras constatações conceituais que jamais dirão respeito à realidade profunda da relação entre objeto soando e sujeito escutando. Deixaremos de perceber o aspecto criativo da imprevisibilidade da linguagem musical, característica que é, no entanto, estofo primordial dos fenômenos que se dão na duração.

Não é difícil de perceber que, por diversas vezes, e em diversas ocasiões, nós músicos, nos deparamos com o fato de que à nossa escuta propriamente dita, antecede uma espécie de arcabouço formal pré-estabelecido que tentamos impingir ao fenômeno sonoro que está sucedendo. Advém, no entanto, uma espécie de desconforto, quando aquilo que estamos ouvindo não se “encaixa” adequadamente ao esquema formal e vazio que tentávamos, em vão, “preencher”; o que, sem dúvida alguma, prejudica, sobremaneira, a própria escuta de um evento que ainda não se encerrou mas que, no entanto, nos parece “incompreensível”. 

De fato, a “compreensibilidade” da linguagem musical tornou-se, principalmente no século XX, um dogma difícil de ser superado, já que o modo artificioso pelo qual estamos acostumados a nos relacionar com os fenômenos que se dão em plena duração, é algo de profundamente arraigado em nós, um procedimento quase “natural” da inteligência humana; querer alcançar o dinâmico a partir do estático, captar o todo pela parte, explicar a criação pelo incriado, o tempo a partir do espaço.

Quando em geral, nos referimos à nossa incapacidade de “compreender” uma obra, isto nada mais é que uma deturpação, um vício, uma tentativa de tentar agarrar o tempo, de querer racionalizar, erroneamente, um discurso que se transmite e se escoa no próprio fluxo temporal. Neste sentido, Bergson nos alertou para o fato de que “muitos são os filósofos que sentiram a insuficiência do pensamento conceitual para atingir o fundo do espírito. Muitos, por conseqüência, os que falaram de uma faculdade supra-intelectual de intuição. 

Mas como acreditaram que a inteligência operava no tempo, concluíam que ultrapassar a inteligência consistia em abandonar o tempo. Não perceberam que o tempo intelectualizado é espaço, que a inteligência trabalha com o fantasma da duração e não com a própria duração, que a eliminação do tempo é o ato habitual, normal, banal, de entendimento, que a relatividade do nosso conhecimento do espírito deriva precisamente disto, e que, neste caso, para passar da intelecção à visão, do relativo ao absoluto, não é preciso abandonar o tempo (já o abandonamos); é necessário, isto sim, que nos recoloquemos na duração e que recuperemos a realidade em sua essência, que é a mobilidade”(5).

A análise musical deveria tentar resgatar, dessa forma, não o próprio tempo, algo talvez impossível, mas, ao menos, o conteúdo que os elementos de uma música adquirem na consciência do ouvinte durante o transcorrer temporal. Essa mudança de enfoque traria importantes conseqüências em diversos níveis: a revisão de conceitos, a postura quanto ao ofício, aprendizagem e ensino da música, assim como as demais questões relativas ao ato de fruição estética da obras musicais.

Uma realidade móvel e temporal, como o é a linguagem musical, não pode ser abordada a partir de conceitos estáticos e apriorísticos. É preciso investigar a criação criativamente. As ferramentas e regras, válidas para uma obra, podem não ser úteis para outras cujo contexto seja diverso tanto ao nível da estrutura, quanto ao da história e da estética. Será preciso, de qualquer maneira, e prioritariamente, não confundir as notações parciais da realidade musical com suas partes reais, não considerar os instantes ou segmentos como se eles fossem um todo ensimesmado, não conceber o fluxo duradouro como sendo a somatória dos momentos dele destacados(6).

Existe uma realidade musical.
Mas não queremos afirmar, com isso, que a sua existência independa de um observador, pois como salientou Bergson, “há uma realidade exterior e, entretanto, dada imediatamente a nosso espírito”(7). Ele não está, de modo algum, se referindo a uma realidade autônoma, e, sim, a um universo que interage de maneira direta e imediata, organicamente, com o sujeito. Se abolirmos um dos pólos desta relação, então essa realidade deixará de existir, deixará de ser.

A realidade exterior de Bergson e a realidade musical não são, pois, entidades “externas” e “absolutas”, mas relativas; elas são mobilidade, no sentido de que “não existem coisas feitas, mas somente coisas que se fazem, não estados que se mantêm, mas tão somente estados que mudam. O repouso é sempre apenas aparente, ou melhor, relativo (...) Toda realidade é, pois, tendência, se conviermos em chamar tendência uma mudança de direção em estado nascente”(8).
A natureza musical é, também, pura mobilidade. 

O ouvinte não tem à sua disposição, como numa partitura, o passado, o presente e o futuro, dados de uma só vez e congelados numa ordem visual ou espacial. Tudo aquilo que se escuta está incessantemente sendo criado. Não existe previsibilidade absoluta, porque o tempo é invenção contínua. A realidade musical é, pois, tendência. A função da análise deveria ser, portanto, a de percorrer e reconstituir a própria fruição em sua realidade temporal, tendo em conta as relações de troca que ocorrem entre obra e ouvinte.

Aquilo que constatamos ao abrir uma partitura só adquire sentido e conteúdo quando confrontado com o tempo, tempo de recepção, tempo que se cria na relação fenomenológica entre escuta e som, que impregna a consciência mnemônica do ouvinte.

A operação de extrair conceitos fixos da realidade móvel é simples, mas é impossível reconstituir a temporalidade desta realidade a partir destes mesmos conceitos. É tentador isolar particularidades do fluir ininterrupto de uma obra musical, mas jamais compreenderemos a significação destes pormenores se não relacionarmos a um todo. Fora o tempo, as ocorrências da música não são musicais; separar fragmentos uns dos outros, decompô-los em eixos de simetria, são atos que anulam a temporalidade do fluxo musical porque, na realidade, isolam, como se fossem entidades distintas, dois pólos do que é, na realidade, um único e mesmo eixo processual: obra/ouvinte. 

Desmembradas e desconectadas umas das outras, e expulsas do próprio processo de recepção, as “frações” musicais tornam-se, no máximo, apenas imagens aparentadas com uma realidade mais profunda, sombras ilusórias que, mesmo justapostas, jamais reconstituirão a fluidez e o significado do real. 

Os segmentos, assim destacados do tempo, são falaciosos porque aparentam ser entidades, em si mesmas, completas, espécies de engrenagens que se encadeiam para formar um todo musical orgânico e uno. Ao “analisarmos” uma obra musical de maneira, aparentemente, tão minuciosa, pensamos estar compreendendo-a, quando, muitas vezes, ao contrário, estamos, na realidade, obscurecendo o próprio ato de fruição, a própria escuta.

Analisar não é descrever: a relação entre objeto e sujeito no corpo do tempo é sempre incompleta. Tudo aquilo que ocorre em uma obra, insistamos, não é dado de chofre; o tempo vai se urdindo, a sua direção se configurando. A audição é prenhe de expectativas, e as expectativas alteram constantemente o significado daquilo que está sendo ouvido. 

Jamais uma peça poderá ser apreciada sempre da mesma maneira, do mesmo modo que o tempo jamais se repetirá. É preciso, como salientou Bergson, haver um empenho no sentido de “seguir a realidade em todas as suas sinuosidades e de adotar o próprio movimento da vida interior das coisas”(9).
(6) Henri Bergson afirma: “consideramos, por exemplo, o movimento no espaço. Posso, ao longo de todo este movimento, representar-me paradas possíveis: é o que chamo de posições do móvel ou de pontos pelos quais o móvel passa. Mas com estas posições, mesmo em número infinito, não faria o movimento” (Introdução à Metafísica, p. 32).


Eduardo Seincman é bacharel em Ciências Sociais pela FFLCH/USP, 
tendo realizado estudos musicais com Henrique Pinto,
Olivier Toni e Willy Correa de Oliveira, 
além de cursos ministrados por compositores 
como Gilberto Mendes, Michel Phillipot e Dante Grela.
 
É professor doutor do Departamento de Música da ECA/USP
desde 1981, onde tem desenvolvido,paralelamente à composição musical, 
uma linha de pesquisa relacionada à análise e à estética musicais.
 
Além de compositor, tem atuado em conselhos editoriais (Revista Música CMU-ECA-USP) além de traduzir e publicar diversos artigos e livros.  

Eduardo Seincman
São Paulo/SP - atravez@atravez.org.br
Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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