domingo, 13 de março de 2011

A " COISA EM SI" E OS FENÔMENOS - Raymundo Farias Brito

LIVRO II

QUESTÃO FUNDAMENTAL: A "COISA EM SI" E OS FENÓMENOS
Capítulo I (¹)

NECESSIDADE DE UMA RIGOROSA DELIMITAÇÃO DO CONCEITO DO ESPÍRITO

Devo agora, antes de passar a outro assunto, esforçar-me por precisar com a maior segurança possível, o que se deve entender por espírito. Uma rigorosa delimitação deste conceito é tanto mais necessária quanto é certo que se trata aqui de um ensaio sobre a filosofia do espírito. 

E para que se possa bem compreender o que temos em vista desenvolver e de que natureza são as conclusões que propomos, indispensável é que, antes de tudo, seja esclarecido este ponto: que é o espírito? É certo que neste volume não poderemos entrar em exame detalhado dos fatos de caráter mental ou espiritual. Limitar-nos-emos aqui apenas aos dados gerais da filosofia do espírito. 

O estudo minucioso dos fatos ficará reservado para outro trabalho. Mas em todo o caso é da maior conveniência que fique desde logo determinado o conceito mesmo do espírito, pelo menos no sentido em que compreendemos, que é aliás o sentido natural e empírico. . . 

Fica, pois, entendido que quando falamos de espírito, dever-se-á subentender que se trata unicamente do espírito de que podemos ter conhecimento, direta ou indiretamente, pelas forças mesmas de nossa atividade cognitiva, isto é, do espírito tal como reside em nós, manifestando-se como consciência e como percepção, como inteligência e como vontade, da energia de que somos dotados, capaz de sentir e pensar, de querer e agir.
(i) pp. 107-108

Mas para dar uma ideia mais precisa e uma compreensão mais segura do modo por que entendemos o fato, o meio mais eficaz parece-nos consistir no seguinte: em submeter a exame essa obscura questão da coisa em si e dos fenómenos; questão que se tornou desde Kant, ou melhor, desde Hume, um dos pontos mais complicados e incertos da filosofia moderna.

Que relação tem, porém, com essa questão, a noção do espírito? É o que veremos mais tarde. Por enquanto basta chamar a atenção para a preponderância extraordinária que foi dada à noçãc mesma de fenômeno entre os filósofos contemporâneos.

A QUESTÃO DA "COISA EM SI" E DOS FENÓMENOS EM SEU DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO (¹)

Já fiz sentir anteriormente que todo o movimento intelectual hodierno, pelo menos, deste movimento que se afirma vigorosamente como se estivesse destinado a vencer e a dominar, orientado na direção da psicologia ou da filosofia do espírito, — deriva de Locke. E é também de Locke que deriva a distinção que cada vez se tem tornado decisivo no pensamento contemporâneo entre a coisa em si e os fenómenos. 

É verdade que Locke não cogitou propriamente dessa questão, e a noção de uma coisa em si só passou a ser considerada como um conceito filosófico e foi objeto de sérias investigações depois de Kant. Mas a distinção feita por Locke entre as qualidades primárias e as qualidades segundas da matéria prende-se já ao assunto.

A QUESTÃO DA "COISA EM SI" 
E DOS FENÓMENOS NA FILOSOFIA CRÍTICA »

A conclusão geral de toda a obra de Kant é ainda o mesmo princípio já firmado por Hume: que só podemos conhecer o que impressiona a nossa sensibilidade. Isto quer dizer: o que conhecemos resolve-se sempre em impressões sensíveis. E como são as impressões sensíveis, no sistema de Hume, como no de Kant, que constituem o que chamamos fenómenos, resuRa daí que todo o nosso conhecimento é limitado aos fenómenos e não pode ir além do mundo dos fenómenos.

Torna-se assim evidente que "a coisa em si", devendo compreender-se como o que é (substância), em distinção do que aparece (fenómeno), é um princípio superior ou estranho à fenomenalidade, e, como tal, é absolutamente inacessível ao nosso conhecimento e só se pode admitir como conceito negativo. É a negação mesma de todo o conhecimento. É o que resulta dos dados gerais da crítica. E nisto Kant nada acrescentou ao que fora já fixado por Hurae. Em que consiste, pois, a sua obra própria? 

Neste fato que, a ser verdadeiro, seria realmente decisivo: que Kant, pela crítica da razão, pretende ter dado, do valor negativo da "coisa em si" quanto à possibilidade de seu conhecimento, uma demonstração irrefutável, com a sua teoria do caráter puramente ideal e subjetivo das formas da sensibilidade, como das categorias do entendimento.

A negação do conhecimento da "coisa em si" resulta, pois-, como consequência inevitável, uma vez firmadas as primeiras linhas da Estética transcendental. Mas essa negação é ainda corroborada pela Analítica transcendental, uma vez que as categorias do entendimento que são, como se sabe, estabelecidas por Kant, em número de doze, correspondendo três categorias a cada uma das formas puras do juízo — afirmação, negação, limitação (qualidade); unidade, pluralidade, totalidade (quantidade); possibilidade, realidade, necessidade (modalidade); substancialidade, causalidade, reciprocidade (relação) — todas estas categorias, na sua totalidade ou com as reduções por que tiveram de passar nos continuadores do sistema, — são, nas mesmas condições que as formas puras da sensibilidade, nas mesmas condições que o espaço e o tempo, igualmente ideais e subjetivas.

A "COISA EM SI" E A METAFÍSICA (¹)

A metafísica, no sentido primitivo, tradicional da palavra, é a ciência do ser enquanto ser. Isto equivale a dizer que é a ciência da "coisa em si", pois uma coisa corresponde a outra. Tal ciência fica em absoluto excluída, uma vez que a "coisa em si" não pode ser objeto do conhecimento. Nenhuma metafísica, nenhum dogmatismo é, por conseguinte, possível, depois da crítica. e a filosofia só se poderá compreender, como crítica da razão, como análise da experiência e determinação dos limites do conhecimento. É a que deverá ficar reduzida, segundo Kant, a metafísica do futuro.
(¹) p. 117

AS EVENTUALIDADES DA "COISA EM SI" 
NA PRÓPRIA FILOSOFIA DE KANT (¹)

Em verdade, o criticismo, mesmo nos termos em que fora fundado por Kant, encerrava elementos que autorizavam a interpretação da "coisa em si", já como espírito, já como matéria; o que quer dizer que encerrava em germe, por um lado o idealismo, e por outro lado o realismo. E foi assim que os sucessores de Kant, pretendendo, aliás, cada um, por seu lado, ser o legítimo intérprete do verdadeiro espírito do criticismo, terminaram restabelecendo o dogmatismo. 

E o criticismo perdendo o seu caráter negativo, transformou-se em uma nova metafísica: a princípio na direção idealista (Fichte, Schelling, Hegel); depois na direção realista (Fries, Herbart, Benecke); e por fim na direção monista (Schopenhauer, Noiré, Paulsen). E foi esta última direção que veio a prevalecer, e nesta o pensamento dominador é o de Schopenhauer que consiste na interpretação da "coisa em si" como vontade.

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Fonte:
CONSCIÊNCIA.ORG
http://www.consciencia.org/o-mundo-interior-farias-brito/5
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