Capítulo III
A FILOSOFIA DO ESPÍRITO E AS INVESTIGAÇÕES MAIS RECENTES SOBRE O PASSADO MAIS REMOTO
DO HOMEM
DAS ORIGENS DA FILOSOFIA DO ESPÍRITO
Há uma filosofia natural e orgânica, tradicional e universal, viva e vivificante, imperiosa, eficaz, e, por assim dizer, consubstancial com a vida mesma do espírito; aceita por todos os povos; inerente a todas as doutrinas; combatida por muitas delas, mas suposta ou subentendida por todas. E é a filosofia que desde o começo se impôs à consciência das multidões e deu organização regular e permanente às sociedades, em todas as agremiações sociais e políticas, em todas as nacionalidades, como em todos os momentos da história.
É a filosofia que faz da vida um dos processos do espírito e do mundo o cenário onde o espírito desenvolve o drama de sua existência e a obra sucessiva de seu trabalho perpétuo e de seu eterno desenvolvimento: filosofia que, por isto mesmo que tem por concepção fundamental o espírito, pode dizer-se que é o espírito afirmando-se: filosofia que não cessa de crescer, que não cessa de transformar-se, que não envelhece, que é sempre nova, porque a todo o momento renasce; de que "a filosofia antiga foi um dos momentos e de que a filosofia moderna é o momento presente": filosofia que é movimento e vida; logo consciência e atividade; logo afirmação e ação; logo criação e renovação perpétuas.
Desta filosofia tiveram naturalmente alta concepção os primeiros povos e as primeiras nacionalidades; sem o que seria coisa inexplicável, a formação das religiões que todas remontam, como é sabido, aos primeiros tempos e às primeiras idades da história: fato que é a prova evidente de que já nas épocas mais remotas dominava a convicção profunda da verdade do espírito.
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Há quem sustente que antes da civilização atual,
outra civilização existiu no planeta
que atingiu o mais alto grau de desenvolvimento.
Mas essa primeira civilização ou essa primeira humanidade, extinguiu-se de todo; e de seu poder, como de suas maravilhas, apenas ficou um como eco longínquo nas lendas e nos mitos, como na literatura sagrada dos principais centros primitivos da civilização atual. É uma interpretação aliás que as lendas, até certo ponto, confirmam, pois há realmente o pensamento de que a humanidade atual é uma humanidade decaída; e essa tradição de que houve anteriormente um período heróico da vida humana, com uma humanidade melhor e mais perfeita, chegou mesmo a consubstanciar-se num dogma. Tal é o dogma da queda.
A concepção que deu origem aos diferentes cultos e forneceu o princípio de organização para os primeiros núcleos da civilização do período atual, teria então sido transmitida por estes primeiros mestres da humanidade. Estes, tendo sido desmoronados por uma catástrofe qualquer no planeta, deixaram no tipo dos seus mais notáveis representantes o modelo da perfeição e o ideal da mais alta ciência. E quem abe se não é a isto que se ligam as maravilhas da fábula e os deuses da mitologia?
Filósofos contemporâneos e filósofos que pertencem ao número dos mais consagrados, profundos no saber e nobilíssimos no intuito moral, chefes de escolas e fundadores de sistemas, aceitam esta ideia. Assim Renouvier, assim Secretan.
O DOGMA DA QUEDA: RENOUVIER (¹)
Renouvier sustenta que a humanidade atual é uma humanidade decaída. Aceita, pois, a tradição que vem de época imemorial, consubstanciando-se no que usualmente se chama o dogma da queda. Sua teoria pode ser resumida nestes termos:
O homem não podia deixar de ser, em começo, obra perfeita, pois, sendo criação de Deus que é a perfeição e a sabedoria mesmas, não poderia ter falhas, e devia refíetir a perfeição de seu criador, não só porque assim devia ser, só pelo fato de ser obra sua, como. além disto, porque fora feito à sua imagem.
Deve, entretanto, ficar subentendido que esse homem não era um indivíduo. um ser isolado, mas uma sociedade: uma sociedade perfeita, que não conhecia a injustiça e a desordem, e que dispunha, por isto mesmo, do mais alto pcder e da mais alta sabedoria, e tinha o domínio dos elementos, exercendo uma espécie de império sobre a natureza.
Como se explica então a existência do homem atual cem as suas discórdias, com as suas perfídias, com a sua fraqueza, com as suas misérias?
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O mal não foi obra do criador,
mas da criatura.
Também o homem que constitui atualmente a sociedade, não é o que foi criado por Deus. O homem, obra divina, era perfeito; mas como tinha o império da natureza, encheu-se do orgulho da vida; e esse orgulho perdeu-o. Renouvier explica então que a sociedade perfeita, que tinha o domínio dos elementos, enchendo-se do orgulho da vida, perdeu a sua unidade e solidariedade e fracionou-se em grupos antagónicos. Guerras formidáveis seguiram-se; lutas tremendas; explosões monstruosas do ódio e da ambição, e por fim a perda do império sobre a natureza, a dissolução e a morte.
O DOGMA DA QUEDA: SECRETAN (¹)
Secretan sustenta ideias inteiramente análogas.
A filosofia de Secretan é uma espécie de apologia da crença, uma afirmação entusiasta da fé no destino moral do mundo. O princípio que serve de fundamento e base a todo o sistema é a noção do dever.
Mas a crença no dever, que por seu lado implica a liberdade, é inseparável da crença em Deus; porque negar Deus é negar a razão no mundo, e por conseguinte negar a ordem moral, e por conseguinte negar o dever.
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Deus é então a primeira das verdades e é desta verdade primordial que tudo deriva. Secretan, entretanto, contesta o valor das provas e argumentos tradicionais em favor da existência de Deus. Esses argumentos não são provas, mas apenas razões de crer.
O mal não pode provir do criador;
logo só pode provir da criatura. É o que, segundo Secretan, se impõe de modo irresistível a toda a consciência desinteressada e sincera. Negá-lo seria negar a evidência mesma. Mas como a criatura que foi criada perfeita, poderia ter produzido o mal, introduzindo a imperfeição na obra do criador? É o que só se pode explicar como resultado da corrupção e depravação da criatura. E foi o que se deu com o homem: fato que veio como consequência do abuso da liberdade. Logo, houve uma queda do hcmem e é em consequência desta queda que toda a humanidade sofre e luta, em virtude do princípio, a que está sujeita, da solidariedade do mal.
UM ESCRITOR NOSSO: NOVA LUZ SOBRE O PASSADO (¹)
Um escritor nosso, em uma obra formidável e estranha que publicou sob o pseudónimo de A. Sergipe, ocupa-se também com esse problema da queda e da corrupção do homem. E vai mais longe, muito mais longe do que Renouvier e Secretan, mais longe do que todos os outros que por qualquer modo trataram do assunto; porque, pretendendo haver descoberto uma chave com a qual se julga habilitado para descobrir o segredo dos mais antigos mistérios, e fazer revelações nunca tentadas, nem sequer pressentidas, propõe-se a reconstruir a história primitiva do mundo, e faz uma longa exposição, desenvolvendo uma história realmente inaudita, uma espécie de romance cósmico, a história tragicômica, monstruosa e sombria, de um pavoroso crime, do crime com que a humanidade fez a sua entrada no mundo.
Essa obra, aliás, foi, entre nós, muito mal recebida peles críticos, naturalmente porque a não compreenderam.
(i) pp. 59/71
Foi dado à publicidade apenas o primeiro volume, que, aliás, só por si, é já um trabalho enorme, de perto de 700 páginas. Não sei se o resto do manuscrito terá desaparecido com o incêndio que ultimamente devorou o edifício da Imprensa Nacional, onde muita coisa de velor, ao que se diz, foi consumida. E o mais completo silêncio fez-se sobre a obra de A. Sergipe.
É de lamentar, pois essa obra é para ser encarada com atenção e respeito, ainda quando de fato se chegasse a provar que realmente é a obra de um louco; porque é evidente, qualquer que seja a sua significação, que pertence ao número destes trabalhos extraordinários que valem por toda a vida, per todo o pensamento, por tedo o esforço e por toda a alma de um homem. E onde está um homem, está a humanidade, com teda a sua história de crimes e misérias, de sonhos e aspirações; por conseguinte com todas as suas ilusões e decepções, com todas as suas lutas e sofrimentos.
Mas a crítica, leviana e banal, examinando a obra de A. Sergipe, não considerou o que havia ali de esforço e dedicação, de sacrifício e trabalho, e atendendo somente ep que lhe era mais cómodo, procurou fazer espírito, dando explosão ac caráter grotesco das suas cogitações. Apedrejou o autor, qualificou-o de louco e lan-çou-o ao desprezo, como se um louco não fosse digno somente de piedade.
A obra de A. Sergipe, entretanto, merece ser examinada e deve ser tomada a sério, e ainda que seja encarada como um simples romance, obra de pura imaginação, não deixa de despertar interesse. A exposição é magnífica e o estilo é sempre límpido e às vezes até grandioso. Se se trata de um louco, é de certo um louco bem singular.
Não é meu propósito fazer a defesa de A. Sergipe, nem tampouco analisar a sua obra. Estas reflexões têm por fim simplesmente render homenagem a seu trabalho. O que pretendo aqui é unicamente consignar a sua ideia. Esta consiste precisamente no seguinte: que anteriormente à civilização atual, a terra foi teatro de outra civilização infinitamente superior, que foi exterminada em consequência de uma crise cosmológica por que passou o planeta. e por efeito de um grande crime. Esse crime foi, exatamente, o fato cem que começou sua história a humanidade atual, e foi obra sua. É o que se chama na lenda o pecado original.
É daí que vêm todas as imperfeições do homem; o que o torna desgraçado e impotente contra si mesmo e centra a natureza; porque nasc:do do crime, conserva, por fatalidade orgânica e inevitável, o estigma e a desgraça do crime, e é esta a razão por que sua história tem sido, até agora, e continuará a ser, talvez indefinidamente, uma série de calamidades, uma sucessão indefinida de guerras e traições, de lutas e perfídias, uma comédia horrível e maldita.
A. Sergipe coloca-se em um ponto de vista singular quanto ao modo por que compreende e explica a origem das raças que atualmente dominam o planeta. Supõe-se que foi da Ásia que saíram es povos que civilizaram a Europa. Segundo A. Sergipe, ao contrário, a primitiva raça civilizada asiática extinguiu-se totalmente; e o que se chama civilização no momento que atravessamos da vida do planeta, é tudo obra da noite africana que se estendeu sobre toda a superfície do planeta.
E a exposição que nos faz, mesmo quando se deva considerar como romance, é grave e solene, e não deixa de ter originalidade e grandeza. E se fosse verdadeira, seria a história da humanidade uma monstruosa tragédia, onde as cenas que se sucedem, oferecem desde o início, a alternativa e a sucessão contínua de dois fatos: o crime e o martírio, a arrogância e brutalidade feroz da força e do crime, e o sacrifício e a imolação contínua da virtude: drama horrível de dor e desespero; tragédia de sangue e de extermínio. E seria também a mais justa e a mais merecida das expiações.
É certo que o ser que sofre esta expiação, o homem, vem da ligação des dois elementos, o asiático e o bárbaro, e deste modo representa não somente o crime, como ao mesmo tempo a vítima do sacrifício.
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Fonte:
CONSCIENCIA.ORG
http://www.consciencia.org/o-mundo-interior-farias-brito/3
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