Capítulo IV
VISTA RETROSPECTIVA: EVOLUÇÕES DO
SOBRE O VALOR DA HISTÓRIA NO TRABALHO DA INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA (2)
É tempo de concluir esta trabalhosa análise. Trabalhosa, é bem certo; mas necessária, pois é aí que se acha a questão fundamental da filosofia do espírito. Vê-se também, pela luz que nos vem desta análise, quanto é valiosa a investigação histórica para elucidação dos problemas filosóficos.
É que a filosofia é, não resultado do esforço de um pensador isolado; mas obra comum da humanidade, produto tradicional da colaboração instintiva e natural dos maiores pensadores, em todos os países e em todas as épocas, agindo de comum acordo, e prestando-se mútuo socorro, através da sucessão das idades. Deste modo, nada é perdido, e não há pensador que não leve a sua pequena pedra para a construção do monumento comum.
E se a verdade é o objetivo de todos, cada um concorre por seu esforço, para desbravar o caminho, senão descobrindo a verdade, pelo menos desfazendo dúvidas e dando combate a preconceitos e erros. É como uma exploração em terra fecunda, mas de difícil acesso. O explorador, não raro, perde a di-reção do tesouro que se oculta na rocha. O veio de ouro fino lhe escapa. Torna-se então necessário voltar ao ponto de partida, para tomar uma orientação mais segura. É assim na obra do pensamento, onde, também, frequentemente, para vencer as dificuldades presentes, o mais seguro é consultar o passado.
E quantas vezes realmente não vem do passado mais remoto a centelha que nos inflama a alma, deixando perceber num fragmento de frase, num pensamento mal definido, a revelação de estranhas verdades, clarão imprevisto a iluminar as trevas da consciência, relâmpago que nos orienta, fazendo-nos voltar ao caminho perdido na escuridão da noite impenetrável?. . .
Nada é, pois, perdido na obra do pensamento, e no passado, como no presente, o ideal é um só e o mesmo para todos, entre os que trabalham pelo desenvolvimento do espírito. É certo que as opiniões são inúmeras, e os sistemas a tal ponto se multiplicam, que chega a se tornar difícil senão impossível, já não digno realizar, porém, até mesmo imaginar como possível um acordo definitivo entre as consciências, de modo a se salvar a verdade.
Mas a variedade dos sistemas explica-se pela variedade mesma de aspectos com que se nos representa a realidade, e também pela fecundidade do espírito que dispõe de recursos incalculáveis. Não há, pois, razão para desanimar pela multiplicidade de ideias, como pela variedade dos sistemas: uma e outra coisa, pelo contrário, depõe em favor da fecundidade do espírito. É que o objeto do conhecimento a todo o momento muda de fisionomia, e deste modo é sob inúmeras faces que se apresenta; e o espírito, por seu lado, dispõe de inúmeros aparelhos lógicos para apreendê-lo em suas contínuas mutações e sob seus diferentes aspectos.
E qualquer ideia que seja de boa fé concebida e com clareza apresentada, merece ser discutida; e cada ideia indica, pelo menos, um certo ponto de vista e uma orientação particular; e cada sistema encerra a sua parcela de verdade.
É por isto que não se compreende uma filosofia bem orientada e segura, senão em ligação imediata com a história da filosofia. A história é como o laboratório próprio da ciência do espírito, — espécie de lógica concreta e viva, em que o sujeito e o objeto do conhecimento se confundem. É como se a elaboração do saber se objetivasse em fatos, confundindo-se com a sucessão mesma dos pensadores e com o desenrolar dos sistemas: o que prova que há perfeita solidariedade na obra dos pensadores, não só entre todos os povos, como através de todas as épocas.
E por maiores e mais radicais que nos pareçam as divergências com que se combatem as diferentes escolas, é certo que obedecem à mesma inspiração comum, e no fundo todas as correntes do espírito unificam-se no pensamento da verdade. As mesmas questões renascem, os mesmos problemas se agitam em todas as épocas, e embora se apresentem com seus caracteres próprios e sob aspecto novo, têm sempre a mesma significação fundamental. É preciso interrogar o passado, é preciso considerar as mutações por que vão passando as ideias. A obra do pensamento vem de longe e tem raízes profundas.
É como uma árvore a cuja sombra se abriga a humanidade inteira; mas também, por isto mesmo, precisa de continuamente crescer e desenvolver-se, e não o poderá fazer senão pela colaboração de todos os espíritos. É também pela consolidação de inúmeras correntes históricas. É o que dispensa qualquer análise. E uma filosofia que não tivesse nenhuma ligação com o passado, se isto fosse concebível, seria artificial e falsa, planta sem raízes no solo, ou sem meios para receber o influxo da luz: fantasmagoria inexplicável que nenhuma influência poderia exercer e que até nem poderia ser compreendida.
A filosofia é uma energia em evolução, um desenvolvimento histórico. Deste modo só se define e precisa, só pode se impor e exercer ação viva e eficaz, quando verdadeiramente consciente do seu papel e destino, e por conseguinte, quando esclarecida pela luz da história. Também, toda a grande filosofia vem sempre como o resultado final de um desenvolvimento lógico, como a consolidação de uma tradição particular de pensadores que em geral tem suas raízes conhecidas ou ocultas no mais remoto passado.
A "COISA EM SI" OU A EXISTÊNCIA VERDADEIRA NO HOMEM (¹)
Em que consiste, para cada um de nós, existir?
Consistirá simplesmente no fato de ter um corpo e ocupar um lugar no espaço?
Se assim fosse, em nada se distinguiria nossa existência da de qualquer outro corpo, da de uma pedra, por exemplo, por que a pedra também tem um corpo e como corpo também ocupa um lugar no espaço. Mas ninguém dirá que nossa existência se confunde com a da pedra. Por que? Simplesmente por isto: porque a pedra não sente, porque a pedra não é capaz de pensar. Logo, o que constitui nossa existência não é o fato de possuir, como a pedra, um corpo, nem tampouco de ocupar, como a pedra, um lugar no espaço. A ser assim, tudo se explicaria, no que nos respeita, pela força e pela matéria. Mas há, certamente, em nós alguma coisa que é superior à força, alguma coisa que a matéria não explica. É esse princípio maravilhoso que levava Pascal a dizer: "O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Um vapor, uma gota d’água, basta para matá-lo. Mas quando o Universo o esmagasse, o homem, ainda assim, seria mais nobre do que aquilo que o mata, porque sabe que morre, ao passo que o Universo nada sabe da vantagem que tem sobre o homem". Pascal conclui daí que toda a nossa dignidade consiste no pensamento. Mas não basta isto: seria necessário acrescentar que é o pensamento mesmo que constitui toda a nossa existência, e se somos homens, é porque somes seres pensantes. E em verdade para todo o homem cessar de pensar, é cessar de existir. E o homem, efetivamente, cessa de existir desde que se torna incapaz de sentir e de pensar. Cortai a qualquer um os braços e as pernas, mutilai-o por todas as formas, deixai-o reduzido apenas ao tronco e à cabeça. Enquanto a vida não se lhe tornar impossível e ele for capaz de sentir, pensar e querer, não deixará de ser homem. Seu corpo poderá ficar reduzido a um resto disforme. Mas ele nem por isto ficará diminuído como homem: o que significa que não ficará diminuído em sua existência verdadeira, isto é, em sua existência como espírito. E isto prova que o homem como espírito, é indivisível. E assim todo o ser, assim toda a realidade.
Ninguém, porém, dirá que o homem continua a existir no cadáver, se bem que o corpo esteja ainda completo. Por que? Porque aí já não existe o princípio pensante. O cadáver, não há dúvida, infunde-nos respeito, talvez mais do que o próprio ser vivo, mas isto unicamente pelo mistério que encerra, ou porque representa a ultima fase de um drama de que veio a ser exatamente o desenlace trágico, fatal.
Mas todos sabem que resta no cadáver apenas uma matéria informe que breve se desfará em poeira. E admitindo-se que consigamos fazer com que persista, dando-lhe por algum artifício qualquer, a resistência da pedra, ainda assim o cadáver jamais será um homem: será apenas uma estátua — matéria mcrta, agregado heterogéneo de elementos estranhos uns aos outros, sem coesão interna, sem calor e sem vida.
O pensamento, a energia psíquica, ou, numa palavra, o espírito — eis, pois, a "coisa em si" ou o ser verdadeiro do homem; e o corpo ou o organismo humano não é senão a modalidade acidental ou a aparência exterior dessa energia mesma; ou ainda, como pretende Bergson, um simples instrumento de que o espírito se serve para agir.
O pensamento, a energia psíquica, ou, numa palavra, o espírito — eis, pois, a "coisa em si" ou o ser verdadeiro do homem; e o corpo ou o organismo humano não é senão a modalidade acidental ou a aparência exterior dessa energia mesma; ou ainda, como pretende Bergson, um simples instrumento de que o espírito se serve para agir.
A "COISA EM SI" NO ANIMAL E NA PLANTA (¹)
Eu penso — eis para mim a primeira verdade, a verdade fundamental. E esta verdade é de evidência irresistível e não pode ser posta em dúvida, porque quando duvido, estou pensando, e posso assim duvidar de tudo, menos de meu pensamento. Não se deve, porem, dizer como Descartes: eu penso, logo existo — cogito, ergo sum. Deve-se ao contrário dizer: eu penso, logo existe meu pensamento. E se existo, é porque sou capaz de pensar, e minha existência não consiste em outra coisa, senão em meu pensamento. E se me tornar incapaz de pensar, perdendo totalmente a consciência, cessarei de existir. E se conheço alguma coisa de mim mesmo e do mundo, é somente pelo que sinto em minha consciência.
Eu sou uma consciência,
eu sou um ser pensante, eu sou um espírito
— eis, pois, para mim, em que consiste toda a minha existência. E isto sei porque sinto; logo por uma espécie de visão interna, por observação interior, ou melhor, por introspecção direta: o que só é possível, tratando-se de minha própria consciência. Há, porém, outros homens, seres idênticos a mim, e também animais dotados de conformação análoga à minha, dispondo dos mesmos sentidos, vivendo como eu vivo, passando por fases análogas de desenvolvimento, crescendo, sofrendo e morrendo. Como, porém, poderei penetrar a essência íntima dos outros homens e também a dos animais?
(1) pp. 324/326
Quanto aos outros homens é certo que com eles me comunico de inúmeros modos, que penso e transmito-lhes o meu pensamento, que a eles me associo nas minhas obras, nas minhas aspirações, nos meus trabalhos. E sei assim que são como eu consciências que são como eu seres pensantes, e que é só como seres pensantes que de fato existem, sendo que, se cessarem de pensar, cessarão de existir. Isto, porém, conheço somente porque observando os seus movimentes, vejo que só se podem explicar como estando em correspondência necessária com sentimentos e ideias análogas às minhas. É o que eu chamo introspecção indireta. E significa isso que tratando-se dos outros homens, só os posso apreciar e observar através do que se passa na minha própria consciência.
Essa atividade interna que se manifesta no animal é da mesma natureza da nossa e é aí que está a "coisa em si" ou o ser verdadeiro do animal. Por onde se vê que o animal, em si mesmo, é também, embora em condições sem dúvida inferiores ao homem, uma modalidade do espírito.
A ALMA E O CORPO (¹)
Os psicólogos modernos, em particular, os psicólogos da escola experimental, fazem desta questão da alma uma questão de pura fisiologia, e é assim pelo exame átomo-fisiológico e pela análise histológica do cérebro e do sistema nervoso que procuram descobrir a alma. Servem-se para isto de toda a sorte de instrumentos e de máquinas delicadíssimas. E como decompondo o organismo e submetendo-o à prova das mais engenhosas investigações, nenhuma atividade interna, de caráter subjetivo, se faz visível à luz dos aparelhos, concluem daí que não existe alma, e é, deste modo, pela atividade mesma do corpo que pretendem explicar a energia psíquica .
(i) pp. 339/345
Eu adoto outro método, parecendo-me que para descobrir a alma, o único meio eficaz consiste em interrogar a, consciência. Esta é propriamente a energia interna, a existência subjetiva, e como tal é o símbolo vivo da existência verdadeira. Procurar fora da consciência a alma, é negá-la, e em verdade a alma só pede ser estudada, procurando-se ler no fundo da consciência. Interrogue, pois, cada um, a própria consciência.
A alma é, pois, o ser verdadeiro do homem, como de todo o organismo, e se bem que seja uma energia puramente interna, inacessível a todo e qualquer processo de observação exterior, todavia é sempre ativa e em tudo se mostra presente na vida do organismo, fazendo-se de certo modo visível, senão em si mesma, pelo menos em suas operações, como nos movimentos exteriores que determina.
Eis aí, pois, a solução desse monstruoso problema da distinção entre o corpo e a alma — problema que tem sido, através de todos os tempos, o terror e o desespero dos filósofos: a alma do ser vivo, de todo o organismo, como de todo o sistema natural, é uma ideia divina, em analogia com a concepção ou ideia humana que dá origem às produções artísticas. E nisto claramente se vê a distinção entre o pensamento de Deus e o do homem. Ê que no homem, por assim dizer, o pensamento é morto, pois, nada produz objetivamente real, e apenas reflete passivamente a imagem das coisas.
Em Deus, pelo contrário, o pensamento é vivo.
O que significa: é princípio de criação, de tal modo que em Deus pensar é criar. Também o que torna necessária a ideia de Deus, é exatamente o fato de que o mundo é uma criação contínua, e não se compreende criação sem um criador.
Dir-se-á, porém; mas o homem não será também criador, a seu medo?
Sim: nós somos também, em certo sentido, criadores. É o que devemos reconhecer, uma vez que somos capazes de pensar, pois pensar é arquitetar ideias, logo criar. Mas, pensando, nós apenas criamos abstrações e fantasmas; Deus, pensando, cria consciências e corpos, forças e movimentos, cria todes os fatos da natureza.
O cosmos, portanto, com todos os seus mundos e com todos os seus movimentos, o espaço e suas constelações, tudo isto é Deus pensando. Deus pensa e a substância cósmica, em todas as suas modalidades, só por ação do pensamento divino, logo se desenrola no espaço. As forças naturais são então nos processos mesmos de que Deus se serve para pensar, as categorias do supremo Intelecto.
E eu digo, em conclusão,
e nisto consiste a minha concepção fundamental:
o mundo é uma atividade intelectual,
pois é Deus pensando,
e nós, homens,
como elementos que somos do mecanismo do mundo,
fazemos também parte do pensamento de Deus,
e somos, por conseguinte,
no mais rigoroso sentido da palavra,
ideias divinas.
Última Modificação: 8 set, 2010.
Fonte:
CONSCIENCIA.ORG
http://www.consciencia.org/o-mundo-interior-farias-brito/6
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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