2. A Ilusão da Utopia
A gnosiologia é lúdica. Conhecer é pensar que existe no horizonte um objeto de estudo. Já Cioran diz que o Ser que a tradição filosófica procura alcançar por meio da razão, não está no horizonte, senão no alto. A marcha do ser humano em direção ao Ser tem como causa a idéia de que Este se encontra no mundo exterior:
O destino histórico do homem
é levar a idéia de Deus (O Pai ) até o seu final.
Havendo esgotado todas as possibilidades da experiência divina, experimentado Deus sob todas suas formas, chegaremos fatalmente à saciedade e ao asco, após o que respiraremos livremente.
Há, entretanto, no combate contra um Deus ( O Pai) que encontrou seu último refúgio em certos recônditos de nossa alma, uma doença indefinível, doença nascida de nosso medo de perdê-Lo. Como se alimentar de seus últimos restos, como poder gozar com toda tranqüilidade da liberdade consecutiva à sua liquidação? (CIORAN, entrevista)[2].
Seja no solo, nos mares,
na atmosfera ou nas galáxias,
a ciência busca desvelar
a causa primeira da realidade.
O que se chama de “horizonte” é o equivalente a “cosmos”, o conceito de que a realidade está para além do corpo humano, de que os entes estão fora do Ser e que, por isso, se pode conhecê-lo. O pensamento científico, contudo, para Cioran, se esquece que, em todas as demais eras, homens pensaram estar descobrindo coisas novas, estarem dando um passo a mais em direção ao conhecimento da realidade. A História mostra que tais pessoas, posteriormente, tiveram as suas teses refutadas por pessoas de outras épocas e que aquilo que para muitos de seus contemporâneos era genial não tem nenhuma utilidade para a civilização que emerge sobre os seus túmulos:
A liberdade, eu dizia, exige o vazio para manifestar-se; o exige e sucumbe a ele. A condição que a determina é a mesma que a anula. Ela carece de bases: quanto mais completa for, mais vacilará, pois tudo a ameaça, até o princípio do qual emana. O homem é tão pouco feito para suportar a liberdade, ou para merecê-la, que mesmo os benefícios que recebe dela esmagam, e ela acaba lhe sendo tão penosa que aos excessos que suscita ela prefere o terror (CIORAN, 1994, PP. 34-35).
Toda idéia corrompe a realidade.
Militar, ter uma causa, é manchar aquilo que até então estava puro, intacto, despido de ação. Cioran sabe que a História conta a ação do homem, as suas utopias e também a suas frustrações. Agir é possuir utopia e possuir utopia é iludir-se. Quem tem um pensamento lúdico, quem sonha, não vê que o mesmo ar que habita as noites vazias das cidades é o mesmo ar que se respira na cama ao acordar.
Quando alguém pensa estar apresentando algo novo a outro, quando o emissor do discurso tem a idéia de que suas palavras irão fazer a vida do receptor progredir, iludi-se, pois, o sono o fez fechar os olhos para o vazio da noite, dando-o a impressão de que, ao amanhecer, o ar que se respira é outro que não o de ontem.
Para o insone o tempo se exaspera. Ele se reconhece um ser caído, impossibilitado da redenção divina. Diferentemente da noção do sonolento, quem enfrenta as noites de vigília sabe que o tempo é o mesmo ontem, hoje e sempre, não há “quebra”, novidade.
As coisas não criadas e depois recriadas como faz pensar o amanhecer de quem dorme. Cioran mostra que o insone é lúcido por saber que, uma vez criatura caída, não existe uma nova criação, nada desaparece, nada se cria, tudo está presente no momento atual assim como esteve no passado e estará no futuro:
As coisas não criadas e depois recriadas como faz pensar o amanhecer de quem dorme. Cioran mostra que o insone é lúcido por saber que, uma vez criatura caída, não existe uma nova criação, nada desaparece, nada se cria, tudo está presente no momento atual assim como esteve no passado e estará no futuro:
Não há mais passado, nem futuro; os séculos se desvanecem, a matéria abdica, as trevas se esgotam; a morte parece ridícula, e também a própria vida. E essa comoção, mesmo que só a tivéssemos sentido uma vez, bastaria para nós reconciliar com nossas vergonhas e com nossas misérias, das quais ele é sem dúvida a recompensa (CIORAN, 1994, PP. 141-142).
Mais do que mero simbolismo, mediante o estudo das obras de Cioran, pode-se dizer que, para ele, a Queda e a Insônia são funções orgânicas. Tais funções revelam que o homem é dominado tanto pela fisiologia como pela meteorologia. Um homem é tão comandado pelos seus sentidos quanto uma nação é influenciada pelo clima.
Cada civilização pensa ter superado a sua antecessora por meio de artimanhas, técnicas, estratégias que lhe são peculiares. A inteligência, no entanto, segundo o pensamento cioraniano, é una, assim como o tempo, não se divide. Sempre, ao longo da História, soube-se todas as coisas no essencial. As mudanças (tecnológicas, estéticas, arquitetônicas etc.) de uma civilização para outra se dão por causa da eterna repetição da natureza caída do homem.
Cada nação que emerge só repete a essência da outra,
construindo obras, pensamentos, sistemas
que até então não haviam sido materializados,
seja em livros, projetos tecnológicos etc.
A forma como as coisas são construídas, porém, é a mesma. Tudo o que se faz no mundo advém de uma única razão: a necessidade de se conhecer a verdade final, a realidade em totalidade, o Ser. Desse modo, embora uma civilização possua substâncias materiais e tecnológicas que a anterior não possuiu, tudo o que nela se realiza não é novo, pois remonta a uma mesma necessidade, a uma mesma utopia. A mesma queda, o mesmo fim, que se efetivou nas nações de todas as épocas então se efetivará também na nação presente, inevitavelmente:
Apesar de sua precariedade, estamos tão apegados a esse tempo que, para afastar-nos dele, seria preciso mais do que uma alteração de nossos hábitos: teria que ocorrer uma lesão no espírito, uma rachadura no eu, por onde pudéssemos entrever o indestrutível e alcançá-lo, graça concedida apenas a alguns condenados como recompensa ao fato de haver consentido em sua própria ruína (CIORAN, 1994, p. 126).
Cioran demonstra em suas obras e entrevistas que o homem não age livremente. A “liberdade” é a idéia de que o homem é individuado, diferente dos demais entes, e que, por isso, a sua ação não pode ser movida, por ser externo ao Ser.
Por exemplo, uma pessoa A difere da pessoa B e ninguém em todo o universo é igual a A ou a B, desta forma, a ação de A só pode ser realizada por A e a ação de B por B. Para o autor franco-romeno, em contrapartida, quem assim pensa ainda não experimentou a revelação da realidade. As noites de vigília, segundo ele, revelam que o tempo “continua” o mesmo seja na manhã, tarde e noite, dias, meses e anos, décadas, séculos e milênios!
Sendo o tempo imutável, a sensação de ação é falsa. Não havendo ação, o homem não é individuado e, portanto, não é livre:
Por exemplo, uma pessoa A difere da pessoa B e ninguém em todo o universo é igual a A ou a B, desta forma, a ação de A só pode ser realizada por A e a ação de B por B. Para o autor franco-romeno, em contrapartida, quem assim pensa ainda não experimentou a revelação da realidade. As noites de vigília, segundo ele, revelam que o tempo “continua” o mesmo seja na manhã, tarde e noite, dias, meses e anos, décadas, séculos e milênios!
Sendo o tempo imutável, a sensação de ação é falsa. Não havendo ação, o homem não é individuado e, portanto, não é livre:
Repetir-se mil vezes por dia: ‘Nada tem valor neste mundo’, encontrar-se eternamente no mesmo ponto e rodopiar totalmente como um pião. (…) Pois não há progresso na idéia de vaidade de tudo, nem desenlace; e por mais longe que nos arrisquemos em tal ruminação, nosso conhecimento não cresce de modo algum: é em seu momento presente tão rico e tão nulo como o era em seu ponto de partida (CIORAN, entrevista)[3]
A fisiologia e a meteorologia
movem as ações humanas.
O conhecimento que separa o sujeito do objeto é tido por Cioran como uma ilusão. Para tanto, a vida desse ser vivente dotado de razão se condiciona pelos órgãos corporais e funções climáticas nas quais está inserido. A “razão” é o pecado do homem. Pensar, dividir o tempo e o espaço, sistematizar, tem como finalidade a busca por Deus.
Tal busca, utópica, aparenta ser fértil,
assim como o conselho da serpente no Gênesis foi atraente.
Quando, porém, se esgota o pensamento, quando o conhecimento chega ao seu limite, vem a loucura, a total falta de sentido, pois a queda faz de quem pensava chegar ao trono do criador um simples bêbado que cai na calçada suja de lama, beijando os pés dos transeuntes mais vis:
Viver verdadeiramente é recusar os outros; para aceitá-los, é preciso saber renunciar, violentar-se, agir contra sua própria natureza, enfraquecer-se; só se concebe a liberdade para si mesmo: ao próximo só a concedemos a duras penas; daí a precariedade do liberalismo, desafio a nossos instintos, êxito breve e miraculoso, estado de exceção oposto a nossos imperativos profundos.
(…) Função de um ardor extinto, de um desequilíbrio, não por excesso, mas por falta de energia, a tolerância não pode seduzir os jovens. (…) Dê aos jovens a esperança ou a ocasião de um massacre e eles lhe seguirão cegamente (CIORAN, 1994, p. 14).
A história do homem é a história do mal.
Só há História com vida e só há vida com ação.
Agir, entretanto,
é retirar a pureza do objeto
até então inexistente.
Por isto Cioran, ao mostrar que a humanidade é condicionada pelo corpo e pelo clima, revela que rebelar-se contra tais elementos condicionantes, agindo utopicamente, vendo um mundo exterior, para fora dos seus órgãos e para além da tempestade que o envolve, é ser mal. A ação não pode trazer nem a si nem a outro algo real. Para tanto, quando um parto é realizado o recém-nascido é maculado pelas palavras e gestos das pessoas, que nada mais são do que folhas soltas no ar, sem fundamento, sem solidez, meras impressões.
Portanto, como o homem já é maculado desde que nasce pelo pecado da ação, é preciso agir o menos possível para “pecar” o mínimo que se puder:
História universal: história do mal. Suprimir os desastres do devir humano é o mesmo que conceber a natureza sem estações.
Interessamos aos outros pela desgraça que semeamos à nossa volta. “Nunca fiz ninguém sofrer”- exclamação para sempre estranha para alguém de carne e osso (CIORAN, 1989, p. 108).
Se você não contribuiu para uma catástrofe,
desaparecerá sem deixar vestígio.
( O mundo somos nós ;
- cada um,é células do grande corpo
chamado Humanidade .)
Interessamos aos outros pela desgraça que semeamos à nossa volta. “Nunca fiz ninguém sofrer”- exclamação para sempre estranha para alguém de carne e osso (CIORAN, 1989, p. 108).
Se a História nada mais é do que a marcha utópica do homem em direção a Deus e tal “peregrinação”, pois uma vez caído não se pode alcançar o Paraíso e ver o Criador, é vã e pecaminosa, porque a palavra macula tanto o emissor quanto o receptor, Cioran propõe outro “estado” da História. Este é o “estado negativo” da História, que não tem forma, é negação, nulidade, ausência. Sendo o que a História vê, “capta”, é a “ação” do homem, o estado negativo da História se “efetua” na total subjetividade, no poderio do corpo, do clima, na recusa de agir.
O anonimato que advém com isto confirma a lucidez
de quem “sente” ao invés de “conhecer”:
Jamais houve eclipse de lucidez tal que o homem fosse incapaz de abordar os problemas essenciais, pois a história é apenas uma perpétua crise, uma quebra da ingenuidade. Os estados negativos- que são precisamente os que exasperam a consciência- distribuem-se diversamente, contudo estão presentes em todos os períodos históricos (CIORAN, 1989, p. 144).
Cioran constata ainda
a existência de um subterrâneo
que antecede cada ação.
Ele é mais profundo que qualquer ato
porque não está presente no passado,
não é visto no presente
e nem é esperado no futuro.
Quanto mais denso, comprimido e doloroso for este subterrâneo, menos lúdica é aquela ação. Desta forma, segundo o filósofo franco-romeno, o ódio e o rancor são mais lúcidos do que a paz e o amor. Isto se dá porque as ações advindas dos sentimentos negativos não buscam construir o Paraíso, senão destruir o que é visto fora de si. Tal destruição é precisa para retirar do corpo, do “lar”, qualquer invasor.
Ao contrário das ações positivas, que querem se relacionar, iludindo tanto a si como os outros, as ações negativas são realizadas nas tentativas de isolarem-se após a destruição do mundo exterior. Só restando então o mundo interior. Por isto estas ações são, para Cioran, mais lúcidas do que aquelas:
Não vingar-se é submeter-se à idéia de perdão, é afundar-se nela, é tornar-se impuro por causa do ódio que se sufoca dentro de si. O inimigo poupado nos obseda e nos perturba, sobretudo quando decidimos não detestá-lo. (…) Nada nos torna mais infelizes do que a obrigação de resistir a nosso fundo primitivo, ao apelo de nossas origens (CIORAN, 1994, p. 74).
( Discordo!
Não vingar é demonstrar superioridade , não nivelamento ao objeto/sujeito imaturo.
Vingar e perdoar sustentam a pequenêz mental.
Só vinga e/ou perdoa quem se ofende e guarda mágoas.
E qual mãe/pai se vinga
e não perdoa o que faz seu filho infante? )
Se a História revela que a essência caída do gênero humano e toda forma de utopias, incluindo a construção de sistemas, é vã, falso também é o utópico “culto” à razão da tradição filosófica. Para tanto, Cioran afirma que esta tradição tem como finalidade desvelar a verdade final, chegar ao “topo” do real. Valorizando as “idéias” em detrimento do corpo, buscam o Paraíso no mundo exterior e, por isso, sempre se frustram. Pode-se constatar isto na Filosofia Moderna, onde a idéia de progresso foi exaltada.
Qual pai/mãe se vinga e não perdoa o que faz seu filho infante?
Texto: CONSCIÊNCIA:.ORG
http://ateus.net/artigos/filosofia/o-mito-de-sisifo-ensaio-sobre-o-absurdo/
Sejam felizes todos os seres.Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
ABENÇOANDO SOMOS ABENÇOADOS
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