Rainer Maria Rilke
AS ELEGIAS DE DUÍNO
"PRIMEIRA CARTA""As Elegias de Duíno", de Rilke, constituem não só uma das mais importantes obras da literatura alemã da primeira metade do século XX, como também uma das poéticas mais significativas do nosso tempo.
Iniciadas em 1912, no castelo de Duíno, perto de Trieste, Rilke só as terminou dez anos depois, em Fevereiro de 1922, na Suíça, quase simultaneamente com a criação de uma outra obra, "Os Sonetos a Orfeu". Em Duíno, o poeta escrevera a I , a II, parte da III e os primeiros versos da X elegia. Nos longos anos que se seguiram ao primeiro impulso criador, ele conseguiu apenas concluir a III (Paris, 1912), escrever a IV (Munique, 1915) e partes da VI e IX, estas últimas por ocasião de sua viagem à Espanha, entre 1912 e 1913.
E em fevereiro de 1922, no castelo de Muzot, posto a sua disposição por um amigo - Walter Reinhart - Rilke terminou então as Elegias, escrevendo os poemas que ainda faltavam, isto é, parte da VI, a VII, a VIII, parte da IX, grande parte da X, e mais uma, a última, que viria a ser a V.
Ainda que várias circunstâncias tivessem concorrido para retardar a conclusão desse longo poema, onde se encontra visão poética e trágica de um mundo que desaparece, essa demora foi em grande parte motivada - segundo testemunho de Maurice Betz - pela preocupação do poeta em lhe dar a necessária unidade. Oculta para quem a procure numa continuação por assim dizer linear, de um poema a outro, ela se revela entretanto pelo sentido comum que os poemas possuem. "A unidade é poética, não filosófica" disse Bowra.(...).
Embora se possa dizer que as dificuldades da linguagem poética de Rilke sejam devidas à circunstância de ser ele o poeta de um tempo que não sabe pensar poeticamente, como disse Butler, não é menos certo que a dificuldade principal decorre de fatores inerentes à própria obra, entre os quais uma certa ambigüidade voluntária e mesmo procurada. Tudo isso concorre para que as elegias se coloquem, como já salientou Romano Guardini, entre os textos mais difíceis da literatura alemã.
As Elegias de Duíno, condensam por assim dizer uma riquíssima experiência poética e existencial, e estão de tal modo ligadas a episódios e experiências da própria vida do poeta que, por vezes, só o conhecimento desses fatos pode lançar luz sobre certas obscuridades.
As igrejas que Rilke visitou em Roma e em Nápoles, a sua longa experiência de Paris, aqueles amantes que ele encontrou, absortos em seu amor, no cais do Sena, os saltimbancos que ele viu no Luxemburgo, o cordoeiro que ele conheceu em Roma, e cujo trabalho lhe pareceu a repetição de um dos "gestos mais antigos da humanidade", o oleiro à beira do Nilo, reminiscências de sua viagem à Espanha, tudo isso se acha contido, embora às vezes transfigurado pelo ato poético, nas Elegias de Duíno.
Escritas, como foram, sob a pressão de uma força que ao poeta pareceu de origem sobrenatural, como ele mesmo relatou em carta a Marie von Thurn und Taxis e Lou Andreas Salomé, as elegias mostram, em inúmeros trechos, a preocupação absorvente e exclusiva de Rilke em transmitir a sua mensagem, o seu descobrimento, embora para isso tivesse de forçar, como forçou por vezes na V elegia, a lógica da linguagem e, em certos versos, a própria estrutura da língua alemã. A dificuldade lingüística das Elegia de Duíno reside muitas vezes, porém, no fato de que a mensagem traduzida por elas atinge, não raramente, os limites do dizível poético na forma espantosamente direta em que está vazada.
O tema central das Elegias é o mistério do homem e de seu destino num mundo que desaparece. Ao redor, porém, desse tema central alguns temas secundários formam a estrutura do poema. E o primeiro objetivo de uma interpretação deve consistir na revelação desses temas secundários, na manifestação do que eles encobrem e pressupõem. Entre estes o tema do anjo é o que aparece em primeiro lugar. Encontramo-lo já no primeiro verso da I, e ele volta a aparecer nas II, IV, V, VII, e X elegias. O anjo é aquele que, como notou E. Schmuidt-Pauli, representa nas elegias uma realidade espiritual superior.(...)
Aos problemas que nos foram revelados através dos temas precedentes (o anjo, os amantes, a boneca, os saltimbancos, o herói e o animal), Rilke opõe afinal o tema da metamorfose. Através dela o poeta encontrou para si o caminho que Malte buscara inutilmente: o da confirmação de que a vida é enfim possível. Preso ao cotidiano, e mais inseguro do que o animal (I e VIII); incapaz de se realizar no amor que , todavia, num momento lhe parecera oferecer quase a eternidade, e condenado ao perecimento incessante de seu próprio ser, como um cheiro que se exala e se perde; nem anjo nem Boneca, nem real nem ator, com a sua máscara cheia (IV); e ainda como os Saltimbancos da V elegia, que nos dão uma ilusão de realidade, mas não a realidade mesma, o poeta, que como aquele Malte Laurids Brigge ficara na "superfície da vida", descobre na metamorfose, através da qual o heróis já se realizara, o segredo do seu destino. "Amada, em parte alguma o mundo existirá senão em nós" Com razão disse Schmidt-Pauli que neste verso está a chave das Elegias.
Só interiormente, o mundo das coisas efêmeras e perecíveis, que é o nosso mundo, continuará a existir.
O que "cai e desaparece" aos nossos olhos continua a existir no coração do poeta."Nós somos as abelhas do invisível". Nous butinons éperdument le miel du visible pour l'accumuler dans la grande rûche d'or de l'invisible, disse Rilke na sua famosa carta a Hulewicz. Nessa transformação do visível, que é o mundo dos olhos, no invisível que se acumula, transfigurado e salvo, em nosso coração, está a essência da metamorfose.
E nisso está o orfismo rilkeano: a poesia como instrumento para outro fim que não o puramente estético.
A partir de 1910, a poesia de Rilke inicia aquilo que o poeta chamou "a obra do coração". Para trás, Rilke deixava, ultrapassada e superada, a "obra do olhar", sobre cuja formação o escultor Rodin sobretudo exercera uma influência tão grande. Desse período são as "Ding-Gedicht"; a esse período ainda pertence o "Malte Laurids Brigge", onde já se pressentem todavia sinais de uma novo rumo. Superada, porém, a fase precedente, que parece corresponder a uma etapa necessária em toda evolução poética, Rilke inicia, celebrando com um poema intitulado "Wendung", a obra do coração".
As Elegias representam a obra culminante realizada pelo poeta nessa segunda fase da sua evolução. Nela está condensada toda a sua experiência artística e humana, os dramas de sua vida, o problema do amor e a concepção da vida e da morte como um todo inseparável no tempo, dentro do qual existimos ou deixamos de existir.
Nas elegias, a forma adotada pelo poeta difere sensivelmente daquela em que foram escritas as suas obras anteriores. Sem rima e sem métrica, em verso livre (com exceção da quarta e da oitava que estão escritas no equivalente alemão do "blank verse" inglês, como observou C.M. Bowra, no seu estudo sobre tradição simbolista) as Elegias antecipam, por assim dizer, a seqüência psicológica que T. S. Eliot usou em "Waste Land".
Poeta fundamental, Rilke é a voz de uma época em transição.
Talvez seja a última voz do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos modernos", como quer Romano Guardini, e ao mesmo tempo a primeira voz e o primeiro poeta dessa nova era que estamos começando a viver.
*
PRIMEIRA ELEGIA
Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos?
Ainda que várias circunstâncias tivessem concorrido para retardar a conclusão desse longo poema, onde se encontra visão poética e trágica de um mundo que desaparece, essa demora foi em grande parte motivada - segundo testemunho de Maurice Betz - pela preocupação do poeta em lhe dar a necessária unidade. Oculta para quem a procure numa continuação por assim dizer linear, de um poema a outro, ela se revela entretanto pelo sentido comum que os poemas possuem. "A unidade é poética, não filosófica" disse Bowra.(...).
Embora se possa dizer que as dificuldades da linguagem poética de Rilke sejam devidas à circunstância de ser ele o poeta de um tempo que não sabe pensar poeticamente, como disse Butler, não é menos certo que a dificuldade principal decorre de fatores inerentes à própria obra, entre os quais uma certa ambigüidade voluntária e mesmo procurada. Tudo isso concorre para que as elegias se coloquem, como já salientou Romano Guardini, entre os textos mais difíceis da literatura alemã.
As Elegias de Duíno, condensam por assim dizer uma riquíssima experiência poética e existencial, e estão de tal modo ligadas a episódios e experiências da própria vida do poeta que, por vezes, só o conhecimento desses fatos pode lançar luz sobre certas obscuridades.
As igrejas que Rilke visitou em Roma e em Nápoles, a sua longa experiência de Paris, aqueles amantes que ele encontrou, absortos em seu amor, no cais do Sena, os saltimbancos que ele viu no Luxemburgo, o cordoeiro que ele conheceu em Roma, e cujo trabalho lhe pareceu a repetição de um dos "gestos mais antigos da humanidade", o oleiro à beira do Nilo, reminiscências de sua viagem à Espanha, tudo isso se acha contido, embora às vezes transfigurado pelo ato poético, nas Elegias de Duíno.
Escritas, como foram, sob a pressão de uma força que ao poeta pareceu de origem sobrenatural, como ele mesmo relatou em carta a Marie von Thurn und Taxis e Lou Andreas Salomé, as elegias mostram, em inúmeros trechos, a preocupação absorvente e exclusiva de Rilke em transmitir a sua mensagem, o seu descobrimento, embora para isso tivesse de forçar, como forçou por vezes na V elegia, a lógica da linguagem e, em certos versos, a própria estrutura da língua alemã. A dificuldade lingüística das Elegia de Duíno reside muitas vezes, porém, no fato de que a mensagem traduzida por elas atinge, não raramente, os limites do dizível poético na forma espantosamente direta em que está vazada.
O tema central das Elegias é o mistério do homem e de seu destino num mundo que desaparece. Ao redor, porém, desse tema central alguns temas secundários formam a estrutura do poema. E o primeiro objetivo de uma interpretação deve consistir na revelação desses temas secundários, na manifestação do que eles encobrem e pressupõem. Entre estes o tema do anjo é o que aparece em primeiro lugar. Encontramo-lo já no primeiro verso da I, e ele volta a aparecer nas II, IV, V, VII, e X elegias. O anjo é aquele que, como notou E. Schmuidt-Pauli, representa nas elegias uma realidade espiritual superior.(...)
Aos problemas que nos foram revelados através dos temas precedentes (o anjo, os amantes, a boneca, os saltimbancos, o herói e o animal), Rilke opõe afinal o tema da metamorfose. Através dela o poeta encontrou para si o caminho que Malte buscara inutilmente: o da confirmação de que a vida é enfim possível. Preso ao cotidiano, e mais inseguro do que o animal (I e VIII); incapaz de se realizar no amor que , todavia, num momento lhe parecera oferecer quase a eternidade, e condenado ao perecimento incessante de seu próprio ser, como um cheiro que se exala e se perde; nem anjo nem Boneca, nem real nem ator, com a sua máscara cheia (IV); e ainda como os Saltimbancos da V elegia, que nos dão uma ilusão de realidade, mas não a realidade mesma, o poeta, que como aquele Malte Laurids Brigge ficara na "superfície da vida", descobre na metamorfose, através da qual o heróis já se realizara, o segredo do seu destino. "Amada, em parte alguma o mundo existirá senão em nós" Com razão disse Schmidt-Pauli que neste verso está a chave das Elegias.
Só interiormente, o mundo das coisas efêmeras e perecíveis, que é o nosso mundo, continuará a existir.
O que "cai e desaparece" aos nossos olhos continua a existir no coração do poeta."Nós somos as abelhas do invisível". Nous butinons éperdument le miel du visible pour l'accumuler dans la grande rûche d'or de l'invisible, disse Rilke na sua famosa carta a Hulewicz. Nessa transformação do visível, que é o mundo dos olhos, no invisível que se acumula, transfigurado e salvo, em nosso coração, está a essência da metamorfose.
E nisso está o orfismo rilkeano: a poesia como instrumento para outro fim que não o puramente estético.
A partir de 1910, a poesia de Rilke inicia aquilo que o poeta chamou "a obra do coração". Para trás, Rilke deixava, ultrapassada e superada, a "obra do olhar", sobre cuja formação o escultor Rodin sobretudo exercera uma influência tão grande. Desse período são as "Ding-Gedicht"; a esse período ainda pertence o "Malte Laurids Brigge", onde já se pressentem todavia sinais de uma novo rumo. Superada, porém, a fase precedente, que parece corresponder a uma etapa necessária em toda evolução poética, Rilke inicia, celebrando com um poema intitulado "Wendung", a obra do coração".
As Elegias representam a obra culminante realizada pelo poeta nessa segunda fase da sua evolução. Nela está condensada toda a sua experiência artística e humana, os dramas de sua vida, o problema do amor e a concepção da vida e da morte como um todo inseparável no tempo, dentro do qual existimos ou deixamos de existir.
Nas elegias, a forma adotada pelo poeta difere sensivelmente daquela em que foram escritas as suas obras anteriores. Sem rima e sem métrica, em verso livre (com exceção da quarta e da oitava que estão escritas no equivalente alemão do "blank verse" inglês, como observou C.M. Bowra, no seu estudo sobre tradição simbolista) as Elegias antecipam, por assim dizer, a seqüência psicológica que T. S. Eliot usou em "Waste Land".
Poeta fundamental, Rilke é a voz de uma época em transição.
Talvez seja a última voz do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos modernos", como quer Romano Guardini, e ao mesmo tempo a primeira voz e o primeiro poeta dessa nova era que estamos começando a viver.
*
PRIMEIRA ELEGIA
Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos?
QUEM, SE EU GRITASSE, entre as legiões dos Anjos me ouviria?
E dado mesmo que me tomasse
E mesmo que um deles me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
inesperadamente em seu coração,aniquilar-se-ia
inesperadamente em seu coração,aniquilar-se-ia
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
sua existência demasiado forte. Pois o que é o Belo
sua existência demasiado forte. Pois o que é o Belo
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
e que admiramos porque, impassível, desdenha
e que admiramos porque, impassível, desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível.
destruír-nos? Todo Anjo é terrível.
destruír-nos? Todo Anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
De obscuro soluço. Ah! A quem podemos
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
De obscuro soluço. Ah! A quem podemos
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,
valer? Nem Anjos , nem homens
E os animais sagazes logo percebem
e o intuitivo animal logo adverte
Que não estamos muito seguros
que para nós não há amparo
No mundo interpretado. Resta-nos talvez
neste mundo definido . Resta-nos, quem sabe,
Alguma árvore na encosta que diariamente
a árvore de alguma colina, que podemos rever
Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem
cada dia; resta-nos a rua de ontem
E a mimada fidelidade de um hábito,
e o apego cotidiano de algum hábito
Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,
do mundo desgasta-nos a face - a quem se furtaria ela,
Levemente decepcionante, que para o solitário coração
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?
coração aflito? Será mais leve para os que se amam?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros
para os espaços que respiramos - talvez os pássaros
Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.
Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas
Sim, as primaveras precisavam de ti
Esperavam que tu as percebesses. Do passado
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
Ao passares sob uma janela aberta,
quando passavas sob uma janela aberta,
Um violino se entregava. Tudo isso era missão.
um violino d'amore se abandonava. Tudo isto era missão.
Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse
distraído, à espera, como se tudo
A bem amada? (onde queres abrigá-la
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu
Tu quase as invejas - essas abandonadas
Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas. Começa
que te pareceram tão mais ardentes que as
Sempre de novo o louvor jamais acessível;
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.
mesma foi um pretexto para ser - nascimento supremo.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma
Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Já pensaste pois em Gaspara Stampa
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa
O bastante para que alguma jovem,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos Como a flecha suporta
Assim a flexa ultrapassa a corda, para ser no vôo
à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.
Pois parada não há em /parte alguma.
Vozes, vozes.Escuta, coração como outrora somente
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos escutavam: até que o gigantesco apelo
os santos ouviam, quando o imenso chamado
levantava-os do chão; mas eles continuavam ajoelhados,
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados
inabaláveis, sem desviarem a atenção:
os prodigiosos, e nada percebiam,
eles assim escutavam. Não que tu pudesses suportar
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que nasce do silêncio.
a incessante mensagem que o silêncio prodiga
Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.
Ergue-se agora, para que ouças , o rumor
Onde quer que penetraste, nas igrejas
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz
Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
sublimes? A estrela funerária em Santa Maria Formosa...
Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar
O que pede essa voz? A ansiada libertação
A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco
da aparência de injustiça que às vezes perturba
O puro movimento de seus espíritos.
a agilidade pura de suas almas.
Certo, é estranho não habitar mais terra,
É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas
às rosas e as outras coisas singularmente promissoras
Não dar sentido do futuro humano;
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
Não ser mais, e até o próprio nome
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo quebrado.
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto
ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
No espaço. E estar morto é penoso
desligado. E o estar-morto é penoso
E cheio de recuperações, até que lentamente se divise
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
Um pouco da eternidade. - Mas os vivos
um vestígio de eternidade - Os vivos cometem
Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
o grande erro de distinguir demasiado
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
se caminham entre vivos ou mortos .
Arrebata através de ambos os reinos todas as idades
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.
Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,
O mortos precoces não precisam de nós, eles
Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno
que se desabituam do terrestre, docemente,
suavemente se deixa, ao crescer.Mas nós que de tão grandes
como de suave seio maternal. Mas nós,
mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
A primeira música ousando atravessou o árido letargo,
música para lamentar Linos, violentou a rigidez da
Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?
em vibração - que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.
Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu
publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos
de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o
antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.
RAINER MARIA RILKE nasceu no dia 4 de dezembro de 1875, em Praga, quando a Boêmia integrava o império autro-húngaro.
Educado pela mãe dentro de um rigoroso catolicismo, teve uma formação cultural essencialmente germânica. Após os estudos preparatórios em Linz e Praga, em 1896 ingressou na Universidade de Munique, onde estudou história da Arte.Publicou aos 19 anos seu primeiro livro, Vida e canções.
Entre 1895 e 1900 lançaria três outros trabalhos, considerados menores. Foi então que conheceu Lou Salomé, amiga e discípula de Nietzsche.
de sua viagem à Rússia nasceria a primeira grande obra do autor, O livro das horas, ao qial se seguiram Novos poemas ( 1907-1908), Elegias de Duíno (1922) e Sonetos a Orfeu (1922). Porém, seu livro mais famoso é Cartas a um jovem poeta, escritas entre 1903 e 1908.mostrando a um neófito, o alemão Fraz Xaver Kappus, os caminhos do mundo interior do escritor.
Entre 1902 e 1912 passeia e dá conferências em vários países europeus.
depois da Primeira Guerra Mundial fixa-se na Suíça alemã. Quatro anos depois de publicar seus poemas franceses, fere-se acidentalmente na mão.
O ferimento agrava a leucemia de que sofria, falecendo no sanatório de Valmont em 29 de dezembro de 1926.
poeta e tradutora, teve sua obra coligida em 2000 no volume Poesia reunida.
Sobre elas escreveram alguns dos mais ilustres críticos e poetas brasileiros e estrangeiros, como Gerardo Mello Mourão, Eurialo Cannavrava, José Paulo Paes, Cassiano Ricardo, Nogueira Moutinho e Vilém Flusser.
ELEGIAS DE DUÍNO
Iniciadas em 1912 no castelo de Duíno - antiga edificação erguida em rochedos sobre o mar Adriático, nas proximidades de Trieste, onde Dante Alighieri teria escrito parte de A divina comédia -, essas elegias configuram um mundo sombrio, ausente de humanidade, mais afinado com coisas e animais ou com o universo inefável dos anjos.
Alheio à "agitação aparentemente ininterrupta dos negócios humanos", como escreve Sérgio Auusto de Andrade no prefácio,nesses poemas rilke buscou resgatar "um tipo de transcendência que vai ao mesmo tempo muito além de todos os rostos e de todos os elementos; o pouco que encontra é o material bruto de seus versos'.
Assim, em Elegias de Duíno, a vida é sentida como uma impossibilidade, pois o desejo de posse a falseia a cada instante e a visão da morte a tolhe em todas as suas manifestações.
Entre os animais - que, ignorantes da morte e desprovidos de ambição, se sentem imersos no curso universal - e os anjos, imortais e perfeitos, os homens estão colocados numa posição ambígua, vítimas da voracidade do tempo.
"Que é o homem para Rilke a não ser o anjo da Terra?", pergunta o escritor Antõnio Carlos Villlaça. "Desde 1898, Rilke exprime idéias idênticas, uma coerência íntima, uma unidade,uma religiosidade densa.
A necessidade permanente e profunda de se elevar acima do terrestre. [...] Essencialmente, Rilke foi o poeta em oração. Neo-romântico, foi sempre o poeta da forma aberta. ' o movimento da minha alma orientada para o Aberto',diz-nos ele. Assim, o anjo rilkeano, sobretudo nas Elegias, é o ser em que a transformação do visível em invisível, que nós realizamos, surge como já realizada"
É esse mundo quase impenetrável, aqui em primorosa tradução e comentários de Dora Ferreira da Silva - acompanhada do original alemão -, que se apresenta à contemplação do leitor.
Fonte:
Em azul :
Dora Ferreira da Silva - Ed.Globo (Amo!)
Dora Ferreira da Silva - Ed.Globo (Amo!)
Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu
© copyright by vasco cavalcante
Em azul: EDITORA GLOGO -EDIÇÃO BILÍNGUE
www.globolivros.com.br
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