Por André Vinícius Pessôa,
doutorando em Ciência da Literatura, Área de Poética,
a partir de anotações feitas durante o mini-curso
As cosmovisões de Zaratustra: corpo, terra e mundo .
1. Assim Falou Zaratustra ,
obra poético-filosófica sem precedentes
na história do pensamento, foi escrita
por Friedrich Nietzsche entre 1883 e 1885.
No Ecce Homo , Nietzsche discorreu sobre o pathos trágico que envolveu a feitura da obra, as dificuldades com a saúde, a influência de Lou Salomé, uma jovem russa que Nietzsche amou sem ser correspondido, as mudanças de cidades, tudo isso acontecendo enquanto se punha a escrever a saga de Zaratustra. Uma inspiração mediúnica foi fundamental para a clarividência da obra. Assim descreve o pensador:
Um êxtase cuja tremenda tensão
desata-se por vezes em torrente de lágrimas,
no qual o passo involuntariamente
ora se precipita, ora se arrasta;
um completo estar fora de si,
com a claríssima consciência de um sem-número de delicados tremores e calafrios que chegam aos dedos dos pés; um abismo de felicidade, onde o que é mais doloroso e sombrio não atua como contrário, mas como algo condicionado, como uma cor necessária em meio a tal profusão de luz; um instinto para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas - a longitude, a necessidade de um ritmo amplo é quase a medida para a potência da inspiração, uma espécie de compensação para sua pressão e tensão...
(NIETZSCHE, 2004, p. 86).
2. Tudo o que antes Nietzsche escrevera sobre o dionisíaco no seu primeiro livro, O nascimento da Tragédia , em Assim Falou Zaratustra se consumou em sua plenitude e potência.
Somem-se o espírito e a bondade de todas as grandes almas em uma: todas juntas não seriam capazes de produzir uma fala de Zaratustra. Tremenda é a escala em que ele se move; ele viu mais longe, quis mais longe e pôde mais longe que qualquer homem.
Ele contradiz com cada palavra,
esse mais afirmativo dos espíritos;
nele todos os opostos se fundem
numa nova unidade
(NIETZSCHE, 2004, p. 89).
3. Roberto Machado, em Zaratustra – tragédia nietzschiana , relaciona Assim Falou Zaratustra com O nascimento da Tragédia a partir do espírito da música . Neste livro, o primeiro escrito por Nietzsche, em 1871, está em jogo a oposição dos conceitos filosóficos, a partir da influência decisiva de Sócrates e Platão, e o conhecimento trágico oriundo do mito e da música. Esse saber trágico, que teve sua força máxima de expressão na Tragédia Grega e que fora deixado de lado pela tradição filosófica, se resolve em Assim falou Zaratustra na medida em que o discurso é proferido num tom musical e não se submete a uma racionalidade causal nem tampouco dialética.
A obra trata das questões fundamentais
da existência quanto mais se liberta da metafísica
instaurada pelo pensamento ocidental.
Assume sua musicalidade em consonância com o deus Dioniso, opondo-se ao jogo de conceitos lógico-racionais estabelecido pela chamada “civilização socrática”. Roberto Machado escreveu que no Zaratustra de Nietzsche “o conceito é uma palavra enfraquecida pela distância em que se encontra da expressividade musical do trágico e o canto é o que eleva a palavra ao ápice de sua musicalidade, fazendo-a encontrar ou reencontrar a sua força originária” (MACHADO, 2001, ps. 12 e 13). Em carta enviada ao filólogo Erwin Rohde, em 1884, o próprio Nietzsche afirmara:
“Meu estilo é uma dança,
um jogo de toda sorte de simetrias e um pular
por cima e zombar dessas simetrias.
Isso até na escolha das vogais”
(NIETZSCHE, 2006, p. 29).
No Ecce Homo , ao dedicar um capítulo ao Assim Falou Zaratustra , Nietzsche relaciona sua escrita com a arte musical:
“Talvez se possa ver
o Zaratustra inteiro como música;
– certamente um renascimento da arte de ouvir
esta música era uma precondição para ele”
(NIETZSCHE, 2004, p. 82). Roberto Machado escreveu que,
“com sua força poético-dramática,
Zaratustra é a realização do projeto wagneriano,
tal como Nietzsche o havia interpretado”
(MACHADO, 2001, p. 23).
Nietzsche, antes de romper com o compositor, via na música de Wagner uma maneira de devolver à linguagem sua força mítica ao libertá-la das limitações do conceito. O mito, assim como a música, maleável em suas múltiplas possibilidades, tem o poder de se fundir e se confundir na sucessão dos fatos e eventos. Dessa forma é que a narrativa de Assim Falou Zaratustra se apresenta: mítica e musical.
Sua dinâmica de sentido, justamente por ser cantada, é também encenada. O encadeamento de seus atos é definitivamente tributário da arte teatral. Seus tons, musicais e teatrais, soam como seqüências de uma ópera. Transitam na rica modulação expressiva das palavras. Zaratustra é um anunciador e um poeta. Sua fala é cantada. Roberto Machado escreveu que
“considerar o Zaratustra canto
significa dizer que nele a palavra canta
pela própria musicalidade da palavra”
(MACHADO, 2001, p. 25).
O próprio Nietzsche revelou no Ecce Homo que sua obra tem a linguagem do ditirambo, hino consagrado ao deus Dioniso.
4. O privilégio dessas notas é tomar a obra de Nietzsche em uma perspectiva interdisciplinar, apresentando-a como ela mesma é: uma obra de arte e de pensamento. Como obra de arte, em sua singularidade, Assim falou Zaratustra não se restringe às explicações causais relativas ao tempo e às circunstâncias que envolveram o seu acabamento. Sua permanência em deixar-se aberta a novas interpretações se deve ao fato de que Nietzsche foi um grande pensador que ousou tocar nas questões essenciais do homem.
Martin Heidegger, em A Origem da Obra de Arte , diz que para tornar a obra acessível em si, é preciso “retirar a obra de todas as referências ao que ela própria não é, para a deixar repousar só para si, só e em si mesma” (HEIDEGGER, 2006, p. 26). A obra, através do artista, se liberta para que o pensador chama de um puro auto-estar-em-si .
“Justamente, na grande arte,
e aqui só se fala dela, o artista posta-se
diante da obra como algo indiferente, quase
como uma passagem que se auto-aniquila
para o surgir da obra, no ato de criar”
(HEIDEGGER, 2006, p. 26).
Considerando as palavras de Heidegger, qual seria o espaço essencial de Assim falou Zaratustra ? Qual o âmbito que ainda se abre depois de tudo o que se disse sobre a obra? Se, como profere Heidegger, na obra a verdade da obra está em obra, que verdade ou mesmo que verdades a obra de Nietzsche pode revelar?
5. Em Assim Falou Zaratustra , no capítulo que abre o livro, O prólogo de Zaratustra , Zaratustra, então com mais ou menos 30 anos de idade, isola-se do mundo e passa por um processo de autoconhecimento. Dez anos depois, por uma necessidade imperiosa de anunciar o que pensara nos dias de seu resguardo purificador, o personagem decide iniciar o seu ocaso. Ao descer de sua caverna na montanha para dirigir suas palavras aos citadinos, afirma-lhes em praça pública que o homem é algo que deve ser superado e promete-lhes em seguida ensinar a doutrina do super-homem. Assim proclama:
“O super-homem é o sentido da terra.
Fazei a vossa vontade dizer:
‘Que o super-homem seja o sentido da terra!' ”
(NIETZSCHE, 2006, p. 36).
Zaratustra então pede aos seus ouvintes que permaneçam fiéis à terra e não acreditem em nada que seja exterior a ela.
Em seus discursos, investe pesado contra os pregadores do cristianismo, os que prometem ganhos para além da terra, isto é, as bem-aventuranças no céu após a morte. Chama-os de envenenadores e desprezadores da vida, “dos quais a terra está cansada” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Um cansaço que, numa leitura crítica e atual, diz muito sobre o colapso que Gaia se vê em pleno século XXI.
A terra está cansada não só das palavras vãs e enganadoras a que Nietzsche se referiu na voz de Zaratustra, mas principalmente do modelo técnico-científico a que está imposta, adoecendo para corresponder aos padrões dominadores que têm no consumo um fim em si mesmo. Essa é a delinqüência maior do homem, de “atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra” (NIETZSCHE, 2006, p. 36).
Ir ao encontro do sentido da terra para Zaratustra significa caminhar na direção do super-homem, tão enigmático quanto a própria afirmação do que significa propriamente retomar o sentido da terra. Precisa-se perguntar: o que é o sentido da terra? A sua destruição progressiva através de processos irreversíveis de relacionamento com o real? Ou o respeito por sua própria dinâmica cósmica de estar conjugada com forças que escapam ao homem? Mas se for mesmo preciso retomar esse sentido, por onde começar?
Se, no dizer de Zaratustra, era a alma que outrora olhava o corpo como desgrenhado e faminto, que alma é essa de agora que faz da terra um planeta arrasado? Na narrativa de Nietzsche, o super-homem surge como uma esperança num mundo onde não mais importam os que já foram os melhores valores humanos, como a felicidade, a razão, a virtude, a justiça e a compaixão.
6. Zaratustra conclama a seus ouvintes que “o que há de grande no homem é ser uma ponte, e não meta: o que pode amar-se no homem, é uma transição e um ocaso” (NIETZSCHE, 2006, p. 38). Diz ainda: “Amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem” (NIETZSCHE, 2006, p. 38).
O motivo atrás das estrelas
corresponde na fala de Nietzsche à doutrina platônica
das almas e seus desdobramentos
neoplatônicos e cristãos.
Curioso é que, atualmente, podemos ver que a busca desesperada de salvar a terra do desconforto da escassez de água faz com que alguns cientistas de nossa época especulem cada vez mais sobre a existência desse líquido vital em outros planetas. Esse fato, que habita os noticiários de nosso tempo, nos informa sobre a busca de uma esperança de vida que esteja além da terra. Corresponde a uma insistência em ver a realidade, mesmo que a interplanetária, como mera disponibilidade de recursos a serem usados pelo homem.
Fiel à terra, Zaratustra exalta aquele que a prepara para o super-homem e nela inventa o melhor modo de construir sua casa. Seu discurso é o do amor. Zaratustra ama as almas transbordantes e os corações livres. O homem, comparado a uma negra nuvem com suas pesadas gotas de chuva, é quem pode liberar o raio iluminador. Zaratustra se diz o prenunciador desse raio que se chama super-homem:
“Já é tempo de o homem estabelecer a sua meta.
Já é tempo de o homem plantar a semente
da sua mais alta esperança.
Seu solo ainda é bastante rico para isso.
Mas algum dia, esse solo estará pobre e esgotado,
e nenhuma árvore poderá mais crescer nele”
(NIETZSCHE, 2006, p. 40).
7. Plantar uma semente é uma metáfora que une terra e homem. Unidos, serão férteis. Separados, permanecerão estéreis. Que é o homem sem o cultivar? Explorar a terra até o seu cansaço ou prepará-la para receber sua doação? Ambientalistas do mundo inteiro se vêem em meio a uma devastação generalizada. O homem se apequena. Os avisos soam como um ultimato. Será esse o último homem a que Zaratustra se refere? Sem ser levado a sério pelos homens, Zaratustra se recolhe ante à multidão e conclui que sua fala não é para ser dirigida ao povo.
O curso de seus pensamentos é interrompido por uma série de eventos. Primeiro um morto cai a seus pés. Zaratustra elogia sua coragem, pois esse que morreu estava vivendo o perigo de seu ofício: o de andar equilibrado numa corda estendida num abismo. Zaratustra se vê diante de um cadáver que fora derrubado por um inimigo mortal, fantasiado de palhaço, e pressente os limites de sua missão.
Quer falar aos vivos e não aos mortos. Sente que suas anunciações devem ser dirigidas apenas àqueles poucos que lhe derem os ouvidos e que queiram seguí-lo. Uma águia com uma serpente enrolada no pescoço então aparece para ele. São os animais de Zaratustra que, na sua simbologia, representam valores bastante preciosos para a sua jornada. A águia, sendo o animal mais altivo, e a serpente, o mais prudente. Zaratustra pede que os guie.
Quer o impossível: a união da altivez com a prudência. Se a prudência por ora lhe abandonar, roga que essa seja substituída pela loucura. O super-homem é um mistério e o raio é como o claro enigma de Nietzsche. O pensador conjuga razão e loucura na voz altiva de Zaratustra. Assim falou Zaratustra: “Onde está o raio que vos lambe com sua língua? Onde, a loucura com que deveríeis ser vacinados? Vede, eu vos ensino o super-homem: porque ele é esse raio e essa loucura!” (NIETZSCHE, 2006, p. 38).
8. Martin Heidegger, entre os anos de 1936 e 1940, deu várias preleções na Universidade de Freiburg tendo como foco o pensamento de Friedrich Nietzsche. Nesses encontros, propôs uma confrontação com a obra nietzscheana . Confrontação para Heidegger é o mesmo que uma crítica autêntica. Repensar o que fora pensado anteriormente e perseguir o sentido das palavras proferidas em sua força e não em sua fraqueza é o que Heidegger entende como um libertar-se para uma nova abertura.
A preleção inicial é sobre A Vontade de Poder , cujo título não diz respeito apenas ao projeto de uma obra capital de Nietzsche, mas significa algo essencial em toda a trajetória do seu pensamento. Afirma Heidegger: “Como o nome para o caráter fundamental de todo ente, a expressão ‘vontade de poder' dá uma resposta à pergunta sobre o que afinal é o ente. Desde sempre essa é a pergunta da filosofia” (HEIDEGGER, 2007, p. 6).
9. Heidegger destacou três pontos fundamentais na construção da obra filosófica de Nietzsche: o eterno retorno, a vontade de poder e a transvaloração de todos os valores. O pensador diz que em Nietzsche há o co-pertencimento intrínseco desses três pontos. A doutrina da vontade de poder se confunde com a doutrina do eterno retorno e essa unidade, historicamente, pode ser vista como o fator de transvaloração de todos os valores. A vontade de poder como resposta à pergunta diretriz da filosofia – o que é o ente – conjuga-se com a apreensão de Nietzsche a respeito do ser, tido no seu pensamento como devir. Escreveu Nietzsche: “cunhar para o devir o caráter do ser – essa é a mais elevada vontade de poder” (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2007, ps. 19 e 20).
10. No ensaio Quem é o Zaratustra de Nietzsche? , a partir de um trecho retirado do capítulo O convalescente , Heidegger reconhece no personagem um porta-voz da vida, da dor e do círculo. Vida, que é vontade de poder, com a dor que lhe acompanha. O círculo, de forma anelar, configura o eterno retorno do mesmo. Heidegger define numa proposição a essência de Zaratustra. O personagem é o porta-voz de “que todo real é vontade de poder que, enquanto criadora, padece e suporta a vontade que luta consigo mesma e assim se quer a si mesma no eterno retorno do igual” (HEIDEGGER, 2002, p. 89).
11. A vontade de poder, ao estar ligada à pergunta fundamental sobre o ser do ente, corresponde ao “pensamento mais pesado” da filosofia, que é o que a ergue e a destrói. O eterno retorno remete à eternidade e ao instante que essa pergunta se dá. Escreveu Heidegger:
Eternidade não como um agora estático, nem tampouco como uma seqüência de agoras que se desenrolam até o infinito, mas como um agora que rebate em si mesmo: o que é isso senão a essência velada do tempo? Pensar o ser, a vontade de poder, como eterno retorno, pensar o pensamento mais pesado da filosofia significa pensar o ser como tempo. Nietzsche pensou esse pensamento (HEIDEGGER, 2007, p. 20).
12. Como se co-pertencem o super-homem e o eterno retorno do mesmo? Sobre o eterno retorno, o “pensamento mais abissal” de Nietzsche, Heidegger, em uma preleção intitulada Nota sobre o eterno retorno do igual , ressalta que seu entendimento permanece enigmático.
O pensador aponta dois caminhos evasivos de compreensão. O primeiro é que o eterno retorno seria uma espécie de mística; no segundo, o eterno retorno seria uma representação já há muito difundida na história do pensamento ocidental. Heidegger diz que o que está a ser pensado a partir do eterno retorno se vela para a metafísica.
O pensador relaciona o enigma de Nietzsche
com a essência da técnica moderna,
atualizando-o,e formula a pergunta:
“O que é a essência da máquina moderna
senão uma variação do eterno retorno do igual?”
(HEIDEGGER, 2002, p. 109).
Fonte:
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário