Autor: Rafael Rodrigues Pereira
Resumo: este artigo pretende discutir uma possível distinção feita por Nietzsche entre os pensamentos de Sócrates e de Platão. Para isso iremos nos basear, inicialmente, em alguns trechos de sua obra onde há uma separação explícita entre os dois autores. Em seguida procuraremos determinar que elementos são comumente associados por Nietzsche a cada pensamento, visando mostrar que o ataque empreendido pelo filósofo alemão ao socratismo-platonismo pode, na verdade, ser dividido em duas críticas distintas.
Palavras-chave: Nietzsche, Sócrates, Platão.
A DISTINÇÃO ENTRE SÓCRATES E PLATÃO
NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE
NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE
I - Introdução
A relação de Nietzsche com os gregos pode ser considerada ambígua: por um lado, o filósofo alemão os vê como um exemplo de cultura trágica, afirmadora da vida. Por outro, foi na Grécia clássica que se iniciou o movimento de decadência e niilismo que duraria até os nossos dias, movimento este encarnado, sobretudo, pelas figuras de Sócrates e Platão.
A relação de Nietzsche com os gregos pode ser considerada ambígua: por um lado, o filósofo alemão os vê como um exemplo de cultura trágica, afirmadora da vida. Por outro, foi na Grécia clássica que se iniciou o movimento de decadência e niilismo que duraria até os nossos dias, movimento este encarnado, sobretudo, pelas figuras de Sócrates e Platão.
Podemos nos perguntar, no entanto, se esses dois filósofos representam para Nietzsche um único e mesmo pensamento, ou se haveria alguma diferença entre as críticas dirigidas a um e a outro. É isso o que este texto pretende discutir.
Para isso, partiremos de alguns trechos da obra de Nietzsche em que há uma separação explícita entre Sócrates e Platão, notadamente o aforismo 190 de Além do Bem e do Mal. Em seguida, procuraremos diferenciar os elementos que são comumente associados a cada um, visando estabelecer as principais divergências entre os ataques feitos ao socratismo e ao platonismo.
II - Plebe e nobreza.
A primeira vista, a diferenciação entre Sócrates e Platão não parece ser uma questão central para Nietzsche, pois é muito pouco abordada em sua obra. O autor alemão em geral se dirige ora a um filósofo, ora a outro, raramente falando dos dois ao mesmo tempo. No entanto, o próprio fato de Sócrates e Platão serem tratados isoladamente já sugere que possa haver, de fato, uma separação. Tentar determinar a natureza dessa distinção seria sem dúvida relevante, dado o peso que a crítica a esses pensamentos possui dentro da obra de Nietzsche, sendo portanto fundamental para a compreensão da sua relação com a cultura grega.
A primeira vista, a diferenciação entre Sócrates e Platão não parece ser uma questão central para Nietzsche, pois é muito pouco abordada em sua obra. O autor alemão em geral se dirige ora a um filósofo, ora a outro, raramente falando dos dois ao mesmo tempo. No entanto, o próprio fato de Sócrates e Platão serem tratados isoladamente já sugere que possa haver, de fato, uma separação. Tentar determinar a natureza dessa distinção seria sem dúvida relevante, dado o peso que a crítica a esses pensamentos possui dentro da obra de Nietzsche, sendo portanto fundamental para a compreensão da sua relação com a cultura grega.
Essa questão adquire um interesse ainda maior se pensarmos na dificuldade de se estabelecer qualquer distinção entre Sócrates e Platão. Como se sabe, o primeiro não deixou nada escrito do próprio punho, e assim conhecemos seu pensamento sobretudo através de seu mais famoso discípulo.
Ora, este último não se limitou a transmitir os ensinamentos do mestre, desenvolvendo sua própria filosofia, e, no entanto, manteve Sócrates como principal personagem de seus diálogos. Dessa forma, diferenciar um do outro é muito difícil, mesmo impossível categoricamente. Por isso é muito comum encontrarmos visões que confundem os dois, considerando, por exemplo, que Sócrates é um personagem fictício de Platão, ou que o pensamento deste último é na verdade o de Sócrates.1
Alguns poucos filósofos, talvez graças a uma opinião mais intuitiva e pessoal, chegam a estabelecer uma separação: um bom exemplo é Kierkegaard, que possuía uma visão bastante distinta de Sócrates.2 Podemos nos perguntar se esse também seria o caso de Nietzsche.
Como dissemos, o autor alemão não se ocupa muito desse assunto. Há, no entanto, alguns poucos trechos de sua obra em que temos uma comparação explícita. Um bom exemplo é o aforismo 190 de Além do Bem e do Mal:
Existe algo na moral de Platão que não pertence realmente a Platão, mas que se acha apenas em sua filosofia; quase se poderia dizer, apesar de Platão: trata-se do socratismo, para o qual ele realmente era nobre demais.
“Ninguém quer fazer mal a si mesmo,
por isso tudo ruim acontece involuntariamente.
Pois o homem ruim é ruim apenas por erro;
se alguém o livra do erro, torna-o
necessariamente - bom”.
- Esta maneira de raciocinar cheira a plebe, que no mal agir enxerga apenas as conseqüências penosas, e verdadeiramente acredita que “é estúpido agir mal”; enquanto admite sem problemas a identidade de “bom” com “útil e agradável”. (...) Platão fez todo o possível para introduzir algo nobre e refinado ao interpretar a palavra do mestre, introduzindo sobretudo a si mesmo.3
A partir desse texto, podemos afirmar que Nietzsche não confunde Sócrates e Platão em um único pensamento. O ataque feito ao socratismo-platonismo poderia assim ser dividido em duas críticas distintas? É o que discutiremos a seguir.
No aforismo citado acima, a comparação entre os dois filósofos parece se basear sobretudo nas suas respectivas classes sociais. Trata-se de um raciocínio tipicamente nietzschiano, que faz uma distinção ética entre os tipos “vis” (escravos, plebe) e os tipos “nobres” (senhores, aristocratas).
No primeiro ensaio da Genealogia da Moral há uma famosa diferenciação entre os dois pontos de vista: o escravo inicia a sua escala de valores designando como “mau” aqueles que o oprimem, os poderosos, e a partir daí institui como “bom” a antítese, ou seja, a si mesmo, o fraco e passivo. O inverso ocorre com os aristocratas, que inicialmente designam como “bom” a si mesmos, os poderosos, felizes e ativos, e a partir daí como “mau” aqueles que são impotentes e rancorosos.4
A distinção feita entre Sócrates e Platão, no trecho citado, parece seguir, portanto, essa concepção. Diga-se de passagem, Nietzsche está aqui se baseando em um fato histórico razoavelmente aceito: Sócrates era filho de uma parteira e de um escultor menor, e sua pobreza foi um dos argumentos usados em sua defesa na Apologia. Já Platão pertencia a uma das famílias mais influentes de Atenas.5
A origem “plebéia” de Sócrates é enfatizada por Nietzsche em outros momentos, como por exemplo em Crepúsculo dos Ídolos.6 Já o caráter “nobre” atribuído a Platão pode causar mais surpresa. De fato, o platonismo sempre foi associado à “moral dos escravos”, por exemplo através do cristianismo, apelidado por Nietzsche de “platonismo do povo”.7
O idealismo platônico, ao criar um mundo transcendente superior ao terrestre, seria uma forma de niilismo, negando a vida em prol de valores que lhe seriam mais elevados.8
A “nobreza” de Platão, no entanto, é citada por Nietzsche em outros momentos, como por exemplo no aforismo 14 de Além do Bem e do Mal: “Inversamente, na oposição à evidência dos sentidos estava o encanto do modo platônico de pensar, que era um modo nobre de pensar”9 (não é difícil, diga-se de passagem, enxergar esse tipo de característica na obra de Platão - a sua República, por exemplo, é claramente aristocrática).
Como explicar essa aparente contradição na crítica de Nietzsche ao platonismo? A ênfase dada à origem “plebéia” de Sócrates poderia nos deixar tentados a atribuir o caráter “negativo” da filosofia de Platão a uma influência do mestre. Essa é, de fato, a tônica da maioria dos comentários de Nietzsche sobre a relação entre os dois filósofos. No aforismo 190 de Além do Bem e do Mal, como vimos, o socratismo é visto como um “corpo estranho” dentro da filosofia de Platão.
Em O Nascimento da Tragédia, diz o autor que “O Sócrates moribundo tornou-se o novo e jamais visto ideal da nobre mocidade grega: mais do que todos, o típico jovem heleno, Platão, prostrou-se diante dessa imagem com toda a fervorosa entrega de sua alma apaixonada”.10 E, mais adiante: “(...) o jovem poeta trágico chamado Platão queimou, antes de tudo, os seus poemas, a fim de poder tornar-se discípulo de Sócrates”.11 Finalmente, ainda no mesmo capítulo, temos: “Essa foi a nova posição a que Platão, sob a pressão demoníaca de Sócrates, arrastou a poesia”.12
Outros trechos da fase “madura” de Nietzsche seguem a mesma linha. Em Humano, Demasiado Humano, por exemplo, temos: “Não é uma questão ociosa imaginar se Platão, permanecendo livre do encanto socrático, não teria encontrado um tipo ainda superior de homem filosófico, para nós perdido para sempre”.13 No aforismo 191 de Além do Bem e do Mal, o autor afirma que Platão seguiu a tendência socrática de conciliar instinto e razão, mas de forma mais inocente, pois era “despido da astúcia plebéia”.14
A “influência maligna” que Sócrates teria exercido sobre o nobre Platão é, portanto, um tema recorrente em Nietzsche. Mas esse aspecto será capaz de explicar, por si só, todo o caráter negativo atribuído ao platonismo? Acreditamos que não. O filósofo alemão não parece ser um daqueles que acreditam ser o mestre de Platão o verdadeiro autor do seu pensamento:15 de fato, em nenhum momento da obra de Nietzsche o Mundo das Idéias é atribuído a Sócrates.
No entanto, mesmo que se possa falar de um platonismo propriamente dito, o seu caráter decadente e niilista poderia ainda ser visto como uma má influência do socratismo. Acreditamos ser este um aspecto relevante, mas insuficiente. Sem o idealismo, sobraria muito pouco da filosofia platônica para ser caracterizada como “nobre”. O resultado dessa postura seria uma simplificação do problema, e uma diminuição grosseira da importância de Platão
Assim, acreditamos que a “nobreza” por vezes atribuída ao filósofo ateniense deve ser interpretada como uma das freqüentes ambigüidades da obra de Nietzsche, que pode ser encontrada, por exemplo, na figura de Cristo, muitas vezes também descrito dessa forma.16 Trata-se não necessariamente de uma incoerência do autor, mas de um desejo de conferir a um determinado tema o grau de complexidade que lhe é devido. Pelo período da história grega em que viveu, Platão não poderia, talvez, deixar de ser um decadente. Isso não impede, no entanto, que existam características aristocráticas em sua filosofia, até pela própria origem do autor.
Podemos considerar, assim, que os textos nos quais Nietzsche compara Sócrates com Platão não são suficientes para se estabelecer uma distinção entre seus pensamentos. Essas passagens, como vimos, opõem sobretudo as origens dos dois autores. Ora, o caráter “nobre” por vezes atribuído a Platão não muda a caracterização do platonismo como filosofia niilista e decadente. Como dissemos, interpretar esse sistema como uma mera variante do socratismo não nos parece uma boa solução, pois, além de simplificar o problema e diminuir a figura de Platão, não diferenciaria, obviamente, os dois pensamentos.
Os trechos citados acima, no entanto, têm o mérito de mostrar de forma explícita que os dois filósofos não se confundem para o autor alemão. A partir daí, podemos tentar estabelecer uma distinção mais consistente entre o platonismo e o socratismo na obra de Nietzsche, por exemplo investigando que elementos são comumente associados a cada pensamento.
III - Idealismo e racionalidade
Como dissemos anteriormente, em nenhum momento da obra de Nietzsche a Teoria das Formas - cerne de seu ataque ao platonismo - é atribuída a Sócrates.
Como dissemos anteriormente, em nenhum momento da obra de Nietzsche a Teoria das Formas - cerne de seu ataque ao platonismo - é atribuída a Sócrates.
De fato, os elementos que acompanham as duas críticas não são os mesmos, e estão de acordo, diga-se de passagem, com uma separação “não-oficial” que com freqüência é feita entre Sócrates e Platão: ao primeiro atribui-se um pensamento mais informal, de caráter aberto e oral, que visa o aprimoramento do senso comum através da reflexão, gerando uma doutrina de caráter sobretudo moral.
Já Platão, além da influência recebida do mestre, teria elaborado uma teoria mais formal e abrangente, caracterizada sobretudo pelo idealismo de seu Mundo das Idéias.17
Se observarmos os principais trechos em que Nietzsche ataca o socratismo - notadamente em O Nascimento da Tragédia, Crepúsculo dos Ídolos e Ecce Homo -, veremos que essa tendência se confirma: o enfoque desses textos é sempre a sobrevalorização da racionalidade e a moral plebéia. Para ilustrar esse ponto, citaremos algumas dessas passagens:
A sabedoria instintiva mostra-se, nessa natureza tão inteiramente anormal, apenas para contrapor-se, aqui e ali, ao conhecer consciente, obstando-o. Enquanto, em todas as pessoas produtivas, o instinto é justamente a força afirmativa-criativa, e a consciência se conduz de maneira e crítica e dissuasora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência em criador - uma verdadeira monstruosidade per defectum.18
Quisera adivinhar de que idiossincrasia pôde nascer a equação socrática: razão = virtude = felicidade, a mais extravagante das equações e contrária, em particular, a todos os instintos dos antigos helenos.19
Sócrates pela primeira vez reconhecido como instrumento da dissolução grega, como típico décadent. “Racionalidade” contra instinto. A “racionalidade” a todo preço como força perigosa, solapadora da vida!20
Já a crítica dirigida a Platão porta, em geral, sobre a questão do idealismo, muitas vezes associado ao cristianismo:
(...) - o instinto que degenera, que se volta contra a vida com subterrânea avidez de vingança (- o cristianismo, a filosofia de Schopenhauer, em certo sentido já a filosofia de Platão, o idealismo inteiro, como formas típicas) (...)21
Minha desconfiança em relação a Platão robustece-se cada vez mais. Parece-me que ele se desviou de todos os instintos fundamentais dos gregos; encontro-o tão impregnado de moral, tão cristão antes do cristianismo - já apresenta a idéia do bem como idéia superior - que me sinto tentado a empregar, antes de qualquer outro qualificativo que abranja todo o fenômeno o seguinte epíteto: Platão, ou a mais elevada farsa, ou melhor ainda: Platão, ou o idealismo.22
Platão é covarde diante da realidade
e por isso se refugia no ideal.23
A partir desses elementos, nos parece ser possível associar o socratismo e o platonismo a diferentes tipos de niilismo descritos por Nietzsche e comentados, por exemplo, por Gilles Deleuze. Esse será o critério de diferenciação que iremos propor.
Em Nietzsche e a Filosofia, Deleuze distingue três tipos de niilismo: negativo, reativo e passivo.24 O primeiro é associado ao cristianismo, e o segundo ao racionalismo científico moderno.25 O negativo consiste em negar a vida em prol de um mundo superior, encarnado pela figura de Deus. Com Sua morte, no entanto, surge um novo tipo de niilismo ateu, onde o homem torna-se o centro, e novos princípios como o progresso, a verdade científica, o aperfeiçoamento, a lógica utilitária e a felicidade tomam o lugar dos antigos valores transcendentes.
Outros comentadores de Nietzsche seguem a mesma linha, como por exemplo Keith Ansell-Pearson, para quem a ciência moderna destrói a crença em um “outro mundo”, mas gera uma ausência de significados que nada mais é do que uma outra forma de niilismo.26
Ora, como vimos, as críticas dirigidas a Sócrates enfatizam o seu racionalismo e “otimismo teórico”, descrito por Nietzsche como uma “inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo”.27 Trata-se de uma descrição que se aproxima muito da visão do filósofo sobre a ciência moderna.28 Em Além do Bem e do Mal, Sócrates é chamado de “o homem científico”.29
Já a crítica ao platonismo, como vimos, porta muito mais sobre a negação do real em prol de outro mundo, atitude idealista que, como vimos nos trechos citados, o próprio autor relaciona ao cristianismo (“Platão era cristão antes do cristianismo”, “O cristianismo é o platonismo do povo”, etc).
Podemos afirmar, assim, que para Nietzsche Sócrates e Platão são representantes e precursores de dois tipos diferentes de niilismo, chamados por Deleuze de “negativo” e “reativo”, antecipando por um lado o cristianismo e por outro o racionalismo moderno (muitas vezes chamado por Nietzsche de “civilização socrática”). Embora os dois estejam relacionados (pela época me que viveram e até por uma influência direta de Sócrates sobre Platão), trata-se, por assim dizer, de dois pilares distintos de um único grande problema: o niilismo e a decadência da civilização ocidental.
Ver, por exemplo, Paul Strathern, Sócrates em 90 minutos, p. 26. O autor comenta que muitos dos personagens citados no texto da República ainda estavam vivos quando o texto se tornou público, e assim desmentiriam Platão se o diálogo não tivesse realmente ocorrido, ou seja, se as principais idéias não fossem de Sócrates.
Abstract: This article aims to draw a possible distinction made by Nietzsche between Socrates’ and Plato’s thinking. For that purpose, we will base ourselves, initially, on a few passages of his work, in which there is an explicit detachment between the two authors. Thereafter, we will seek to determine which elements Nietzsche usually associated to each train of thinking, intending to show that the attack undertaken by the German philosopher against the Platonic-Socratic philosophy may actually be divided into two distinct critiques.- Keywords: Nietzsche, Socrates, Plato
Autor: Rafael Rodrigues Pereira
Mestrando pela PUC-RJ (departamento de Filosofia).
Graduado em comunicação pela UFF e em filosofia pela UFRJ.
E-mail: rafaelrod@ig.com.br
E-mail: rafaelrod@ig.com.br
Fonte:
Revista Eletrônica Morpheus
http://www.unirio.br/morpheusonline/rafael%20rodrigues.htm
E-mail: rafaelrod@ig.com.br
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
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