Gustav Flaubert afirmou que Emma Bovary, mulher de inquietude latente e tão assustadoramente urbana para sua época, era ele. Lolita, a adolescente arquetípica e perturbadora de Nabokov que esculpia em gestos a ambigüidade da inocência e da malícia, nos inclina ora à piedade, ora aos charmes. Muitas personagens femininas tão míticas, como Eva, Lilith, Beatriz, Dulcineia, que povoam a infindável relação das mulheres cativantes da literatura mundial, teriam de ficar de fora dessa lista porque, simplesmente, habitam um plano metafísico.
Lolita e Emma Bovary não têm nada de transcendental em suas personalidades. Por isso, para completar o tríptico do ciclo ordinário de vida que vai da puerilidade à morte, nos falta a criança tão importante quanto suas correlatas, essas versadas sinédoques da puberdade e da maturidade. Alice é uma criaturinha de 7 anos. Do país das maravilhas com as meninices que oscilam entre imaginar-se duquesa e crer que a pimenta torna as pessoas mais esquentadas, o vinagre as deixa mais azedas e o caramelo as adoça e suaviza, Alice é a personalidade de Lewis Carroll que também tem opinião: é destemida, sagaz e frequentemente não se ajusta à história. Suas mudanças de tamanho expressam esse deslocamento que sentimos quando crianças, e ser estabanada faz parte de sua graça, seu charme infantil.
Lewis Carroll, esse pedófilo não consumado devido a sua extrema religiosidade, encontrou uma válvula de escape nesse livro tão simbólico, transformando Alice na primeira personagem com quem, quando meninas num vértice da vida, nos deparamos ao atravessarmos alguns poucos anos de experiência. É a Alice dentro de nós que buscamos ao mergulharmos no centro da terra, uma possível tradução de nossa própria consciência e memória e então partimos do país das maravilhas como embarcamos para, em seguida, nos desiludirmos da encantadora e surpreendente infância.
O medo de cachorro, imaginar que se trespassa o espelho, que subitamente se está invisível e que a lareira da casa é um vulcão; querer inventar adivinhações, brincar de tomar chá com amigos que podem ser bichos ou gente conhecida, a sensação de que o tempo passa devagar ou de que a escola não ensina muita coisa útil para o dia a dia. O conjunto de coisas desconectadas presente em Alice, o livro, faz com que Carroll consiga ser um autor para crianças que se bandeia ao surreal sem o menor constrangimento, deixa-se levar pelas reflexões de suas amiguinhas e compõe uma intérprete cujas aventuras fantásticas sempre vêm atreladas a um acaso que a liga a uma terceira personagem fabulosa. Ou No país das maravilhas, Alice segue o coelho para cair repentinamente no buraco e só sair quando uma chuva de cartas de baralho fizer com que ela acorde.
Em Através do espelho, Alice brinca de mostrar a gata Kitty no espelho para em seguida entrar nele e despertar quando, sacudindo a Rainha Vermelha, ela se transforma em Kitty. Em ambos os livros, Carroll quase isenta sua personagem das besteiras em que incorre. Alice está no papel de criança cujas brincadeiras nunca resultam em maldade e cuja necessidade de sonhar e alimentar esse mundo onírico se manifesta instantaneamente.
É certo que Carroll também apresenta a infância como uma fase análoga à loucura. O sorriso do gato de Cheshire evoca a lua minguante que pertence ao ideário do mundo como símbolo da mudança de humor, hormônio, presságios, etc. Também é notório que o convidado para o chá seja um chapeleiro, profissional que na época vitoriana, em meados do século XIX, quando foi escrito o livro, usava mercúrio para fixar os recortes dos chapéus de feltro que fabricava e, por isso, além de trazer com os olhos sempre avermelhados, também experimentavam algumas alucinações.
Alice não só provocou inúmeras críticas acadêmicas, vários filmes adaptados das obras, releituras e outras ilustrações como bem aguçou novas criações artísticas. Provavelmente uma obra de beleza ímpar e significativa pela originalidade de seu referencial é Alice, de Tom Waits – todo o disco, mas em especial a música título. O compositor americano teve a coragem de se supor um Carroll rançoso, decadente que vive um inverno mortificante, e desde a primavera não consegue ficar sem pensar no passeio de barco, jornada em que tudo começou para o verdadeiro Lewis Carroll, senhor Charles Dodgson, e a pequena de 10 anos, Alice Liddlle. Waits descreve um tempo frio que o leva a patinar no lago, bem diferente da primavera agradável que somos levados a imaginar pelo livro de Dodgson. Mas Waits, enfatizando que Lewis Carroll usou um anagrama para compor seu pseudônimo com as mesmas letras duplas do nome de sua homenageada, Alice Liddlle, expõe a obsessão transparente do autor pela sua pequena musa.
Escreve Waits que, ao deslizar pelo nome Alice duas vezes, o velho de sua canção cai através do gelo que materializa o frio e a indiferença de Alice para com sua admiração. As cordas do barco são suas únicas amarras àquela vida (Dodgson foi eternamente solteiro), e tanto a melodia quanto a voz rouca do cantor conduzem o ouvinte a implicações cada vez mais desesperadoras da personagem: ele se pergunta como será que a navalha encontrou sua garganta, afirma que um beijo traz a loucura na medida exata da completude, que pensará nela na cova, pede para ser lançado à deriva e ficar para sempre perdido, jurando que só pode estar insano.
É assim que, de maneira tão brilhante, Alice nos traz para a realidade de uma infância que começa a se perder aos 7 anos de idade. A insanidade será muito mais facilmente percebida e a dissimulação fará parte do repertório daquela menina um dia espontânea. Eis uma Alice pronta para fazer suas incursões como Lolita e depois como Emma Bovary. Sem, claro, necessariamente ter o mesmo fim, afinal, essas criaturas são tão essenciais para o universo feminino, quanto subjugadas a amostras concentradas, obras (in)finitas.
Nossas aventuras próximas às de Alice nos levarão a cumprir algumas ações provocadoras típicas de Lolita e nos farão chegar mais adiante a algumas amargas conclusões como Emma Bovary. No entanto, é bom sempre estarmos à espreita de que é no período Alice da vida feminina que deixamos a ilusão invadir tudo o que nos comove e nos esvaímos em lágrimas sem fim para, pela primeira vez, nos darmos conta do quanto nos encharcamos e nadamos em nossas próprias angústias e desejos.
Este texto é dedicado a uma alicemaníaca, Adriana Peliano, que me impeliu a materializá-lo há tanto tempo e que sempre foi tão gentil em divagar sobre Carroll e dividir todas as impressões alicinógenas comigo com tanta generosidade.
Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves, 35, é filósofa, colaboradora doUniverso do Conhecimento e relações internacionais do SESC SP.
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Fontes:
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