terça-feira, 16 de abril de 2013

CONTOS DE FADAS E PSICANÁLISE - Marilena Chauí e MOZART - Concerto No.25 in C 503 - 32'



Mozart - Concerto No.25 in C 503 - 32'



CONTOS DE FADAS E PSICANÁLISE


Marilena Chauí 

- Professora de Filosofia na Usp e autora de vários livros
(Do livro: Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida, 
Marilena Chauí, Ed. Brasiliense, 1984, pág. 32-54)


(...) Poderíamos considerar que numa sociedade como a nossa, que dessacralizou a realidade e eliminou quase todos os ritos, os contos funcionam como espécie de "rito de passagem" antecipado. Isto é, não só auxiliam a criança a lidar com o presente, mas ainda a preparam para o que está por vir, a futura separação de seu mundo familiar e a entrada no universo dos adultos.

Do ponto de vista da repressão sexual, os contos são interessantes porque são ambíguos. Por um lado, possuem um aspecto lúdico e liberador ao deixarem vir á tona desejos, fantasias, manifestações da sexualidade infantil, oferecendo à criança recursos para lidar com eles no imaginário; por outro lado, possuem um aspecto pedagógico que reforça os padrões da repressão sexual vigente, uma vez que orientam a criança para desejos apresentados como permitidos ou lícitos, narram as punições a que estão sujeitos os transgressores e prescrevem o momento em que a sexualidade genital deve ser aceita, qual sua forma correta ou normal. Reforçam, dessa maneira, inúmeros estereótipos da feminilidade e da masculinidade, ainda que, se tomarmos os contos em conjunto, os embaralhem bastante.

Se a psicanálise estiver certa ao diferenciar fases da sexualidade infantil, podemos observar que a repressão atua nos contos seguindo essas fases: as crianças são punidas se muito gulosas (fase oral), se perdulárias ou avarentas (fase anal), se muito curiosas (fase fálica ou genital). Em certo sentido, os contos operam com a divisão estabelecida por Freud, entre o princípio do prazer (excesso de gula, de avareza ou desperdício, de curiosidade) e o princípio de realidade (aprender a protelar o prazer, a discriminar os afetos e condutas, a moderar os impulsos).

Para facilitar a exposição, vamos dividir os contos em dois grandes "tipos": aqueles que asseguram à criança o retorno à casa e ao amor dos familiares, depois de aventuras em que se perdeu tanto por desobediência quanto por necessidade, e aqueles que lhe asseguram ser chegada a hora da partida, que isso é bom, desejável e definitivo.

Nos contos que designamos aqui como contos de retorno, a sexualidade aparece nas formas indiretas ou disfarçadas da genitalidade, que são apresentadas como ameaçadoras, precisando ser evitadas porque a criança ainda não está preparada para elas. 

Isto não significa que a criança seja assexuada, pelo contrário, mas que a sexualidade permitida ainda é oral ou anal. Em contrapartida, nos contos que aqui designamos como contos de partida, a sexualidade genital terá prioridade sobre as outras, com as quais vem misturada, e pode ser aceita depois que as personagens passarem por várias provas que atestem sua maturidade.

No Chapeuzinho Vermelho (que, na canção infantil, é dito "Chapeuzinho cor de fogo", o fogo sendo um dos símbolos e uma das metáforas mais usados em nossa cultura para referir-se ao sexo), o lobo é mau, prepara-se para comer a menina ingênua que, muito novinha, o confunde com a vovó, precisando ser salva pelo caçador que, com um fuzil (na canção: "com tiro certo"), mata o animal agressor e a reconduz à casa da mamãe.

Há duas figuras masculinas antagônicas: o sedutor animalesco e perverso, que usa a boca (tanto para seduzir como para comer) e o salvador humano e bom, que usa o fuzil (tanto para caçar quanto para salvar).

Há três figuras femininas: a mãe (ausente) que previne a filha dos perigos da floresta; a vovó (velha e doente) que nada pode fazer, e a menina (incauta) que se surpreende com o tamanho dos órgãos do lobo e, fascinada, cai em sua goela. 

A sexualidade do lobo aparece não só como animalesca e destrutiva, mas também "infantilizada" ou oral, visto que pretende digerir a menina (o que poderia sugerir, de nossa parte, uma pequena reflexão sobre a gíria sexual brasileira no uso do verbo comer).

O comer também aparece num outro conto de retorno, João e Maria. A curiosidade de João, depois acrescida pela gula diante da casa de confeitos, arrasta os irmãozinhos para a armadilha da bruxa (que é, na simbologia e mitologia da Europa medieval uma das figuras mais sexualizadas, possuída pelo demônio (o sexo), ou tendo feito um pacto com ele).

A astúcia salva as crianças quando João exibe o rabinho mole e fino de um camundongo no lugar do dedo grosso e duro (o pênis adulto), evitando a queda do menino no caldeirão fervente (outro símbolo europeu para o sexo feminino, tanto a vagina quanto o útero). 

Há tempo para que o pai surja e os reconduza à casa, depois de matar a bruxa. (A imagem do caldeirão fervente também aparece em O Casamento de Dona Baratinha, o noivo nele caindo, vítima da gula, não podendo consumar o casamento.)

Nos contos de partida, a adolescência é atravessada submetida a provações e provas até ser ultrapassada rumo ao amor e à vida nova. Nesses contos, a adolescência é um período de feitiço, encantamento, sortilégio que tanto podem ser castigos merecidos quanto imerecidos, mas que servem de refúgio ou de proteção para a passagem da infância à idade adulta. 

É um período de espera: Gata Borralheira na cozinha, Branca de Neve semimorta no caixão de vidro, Bela Adormecida em sono profundo, Pele-de-Burro sob o disfarce repelente. Heróis e heroínas se escondem, se disfarçam, adoecem, adormecem, são metamorfoseados (como os príncipes nos Três Cisnes, a princesa em A Moura Torta, o príncipe em A Bela e a Fera, etc.). 

Em geral, as meninas adormecem ou viram animaizinhos frágeis (pomba, corça) e os meninos adoecem, viram animais repugnantes (freqüentemente, sapos, o sapo sendo um dos companheiros simbólicos principais das bruxas) ou viram pássaros (o pássaro sendo considerado um símbolo para o órgão sexual masculino). A expressão, muito usada antigamente, "esperar pelo príncipe encantado" ou "pela princesa encantada" não queria dizer apenas a espera por alguém muito bom e belo, mas também a necessidade de aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento.

Gata Borralheira vai ao baile (primeiros jogos amorosos, como a dança dos insetos), mas não pode ficar até o fim (a relação sexual) sob pena de perder os encantamentos antes da hora. Deve retornar à casa, deixando o príncipe doente (de desejo), e com o par de sapatinhos momentaneamente desfeito, ficando com um deles, que conserva escondido sob as roupas

Borralheira e o príncipe devem aguardar que os emissários do rei-pai a encontrem, calce os sapatos, completando o par. Sapatos que são presente de uma mulher boa e poderosa (fada) e que pertencem apenas à heroína, de nada adiantando os truques das filhas da madrasta (cortar artelhos, calcanhar) para deles se apossarem. As filhas da madrasta querem sangrar antes da hora e sobretudo querem sangrar com o que não lhes pertence, de direito (relação sexual ilícita, repressivamente punida pelo conto).

Branca de Neve, cujo corpo não foi violentado pelo fiel servidor (não lhe arrancou o coração, a virgindade, substituindo-o pelo de uma corça) será vítima da gula e da sedução da madrasta-bruxa, permanecendo imóvel num caixão de cristal (seus órgãos sexuais) com a maçã atravessada na garganta, sem poder engoli-la

Além da simbologia religiosa em torno da tentação pelo fruto proibido (o sexo), o vermelho trazido pela bruxa liga-se também à simbologia medieval onde as bruxas fabricam filtros de amor usando esperma e sangue menstrual, bruxaria que indica não só a puberdade de Branca, mas também a necessidade de expeli-la para poder reviver. Despertará por um descuido dos anões vigilantes - a casinha na floresta, os pequenos seres trabalhadores que penetram em túneis escuros no fundo da terra (que na simbologia sexual é imagem da mãe fértil), um "Mestre", um a ter sono permanente, outro a espirrar, outro não podendo falar, não foram proteção suficiente, a morte aparente tendo sido necessária para reter Branca. (Seria interessante observar a necrofilia do belo príncipe, pois pretende levar a morta em sua companhia.)

Bela Adormecida será vítima da curiosidade que a faz tocar num objeto proibido - o fuso, onde se fere (fluxo menstrual), mas sem ter culpa, visto que fora mantida na ignorância da maldição que sobre ela pesava. Sangrando antes da hora, adormece, devendo aguardar que um príncipe valente, enfrentando e vencendo provas, graças à espada mágica (também símbolo do órgão viril), venha salvá-la com um beijo. Em sua forma genital, o sexo aqui aparece de duas maneiras: prematuro e ferida mortal, no fuso; oportuno e vivificante, na espada.

De modo geral, heróis e heroínas são órfãos de pais (os heróis) ou de mãe (as heroínas), vítimas do ciúme de madrastas, padrastos ou irmãos e irmãs mais velhos. Essa armação tem uma finalidade. 

Graças a ela, preservam-se as imagens de pais, mães e irmãos bons (pai morto na guerra, mãe morta no parto, irmãos menores desamparados), enquanto a criança pode lidar livremente com as imagens más.

Há um desdobramento de cada membro da família em duas personagens, o que permite à criança realizar na fantasia a elaboração de uma experiência cotidiana e real, isto é, a da divisão de uma mesma pessoa em "boa" e "má", e dos sentimentos de amor e ódio que também experimenta. Lutar contra padrastos, madrastas e seus filhos é mais fácil do que lutar com pai, mãe e irmãos.

Freqüentemente, os contos se estruturam de modo mais complexo. Em A Bela Adormecida, por exemplo, há várias figuras femininas superpostas: a mãe ausente; a fada má que maldiz a criança; a fada boa que substitui a morte pelo sono e promete um salvador; a velha fiandeira, desobediente, que conservou o fuso proibido; a menina curiosa e desprevenida que, andando por lugares desconhecidos e subindo por uma escada (símbolo da relação sexual) se fere e adormece, à espera da espada e do beijo. 

A fada má pune o rei que a excluiu de um festa dedicada à fertilidade (o nascimento da princesa), a punição consistindo em decretar a morte da menina quando esta apresentar os sinais da fertilidade (maldição que simboliza o medo das meninas diante da menstruação e da alteração de seus corpos).

A morte da menina decorre da curiosidade que a faz antecipar com um objeto errado (masturbação) a sexualidade. 

A fada boa está encarregada de contrabalançar o equívoco (e o descuido masculino, que não suprimiu todos os fusos) colocando a menina na tranqüilidade sonolenta da espera e entregando a espada ao príncipe (que, portanto, recebe o objeto mágico de uma mulher, pois todos nascem de mulheres). O beijo final contrabalança o medo que a espada poderia provocar, pois é instrumento de guerra e morte (o beijo simboliza, em muitas culturas, não só amor e amizade, mas também um pacto ou uma aliança).

Na maioria dos contos, o pai é indiretamente responsável pela maldição ou pelas desventuras da filha. Mas em A Bela e a Fera o pai é diretamente responsável ao arrancar de um jardim que não lhe pertence, uma rosa branca, despertando a Fera. Há no roubo da flor a simbolização do desejo e do medo inconsciente das meninas de serem raptadas ou violentadas.

A figura masculina se divide: há o pai-bom e o homem-fera, divisão que obriga Bela a viver com o segundo para salvar o primeiro. Contudo, desejando rever o pai doente, Bela deixa que Fera, abandonada, também adoeça (de desejo).

A imaturidade de Bela, seu medo da Fera, seu desejo de permanecer junto ao pai só são superados quando, pela piedade e pela sedução, retorna ao castelo da Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra o encanto, surgindo o belo príncipe com quem viverá. O conto se desenvolve como processo de amadurecimento da heroína e de constituição da imagem masculina através de seus desejos. Do pai à fera, da fera ao príncipe.

Em Pele-de-Burro, o desejo incestuoso do pai é a mola do conto. A primeira tentativa da filha para evitar o incesto fracassa: pede vestido feitos de Natureza (sol, mar e lua), mas a Natureza não é contrária ao incesto, o rei podendo perfeitamente conseguir os vestidos. 

A princesa deve, então, fugir. Mas seu disfarce indica os efeitos do desejo incestuoso do rei: cobre-se numa pele de burro, animalizando-se. Num outro reino (que não o da Natureza), a princesa irá aos bailes da corte, mas, como a Gata Borralheira, não pode ficar até o fim para não correr o risco de ser descoberta. Porém, o príncipe apaixonado ficará doente e o remédio virá no bolo feito pela princesa. Bolo que possui o mesmo sentido e o mesmo efeito que a espada mágica, porém com a marca do feminino: é no interior do bolo que se encontra o remédio salvador, o anel.

Embora os contos reforcem estereótipos de feminilidade e masculinidade e preconceitos sobre homem e mulher, são ambíguos e ricos e por isso não são sexistas: a salvação pode ser trazida tanto pelo herói quanto pela heroína. As fadas, aliás, possuem um objeto mágico supremo, talismã dos talismãs: a vara de condão, sendo seres excepcionais porque reúnem atributos femininos e masculinos, sonho e fantasia de todas as crianças (e não só delas, evidentemente).

Em Os Três Cisnes, é a menina quem quebra o encantamento dos irmãos, tudo dependendo de sua força de vontade (ficar em absoluto silêncio durante sete anos) ou moderar o princípio de prazer, e de sua coragem e destreza para acertar as setas, no momento exato, nos corações dos três cisnes, matando-os para que vivam os irmãos. 

Ela é portadora de um objeto viril - o arco e flecha -, sabendo usá-lo. Sua destreza é ímpar: deve usar, e usa, o arco tendo os olhos vendados (..... a venda nos olhos é símbolo medieval para a morte. Este conto, portanto, realiza uma verdadeira crítica da relação sexo-morte, pois morte dos cisnes é nascimento de sua virilidade, por obra de uma mulher. E o incesto, aqui, é óbvio).

Além de não serem sexistas e de contornarem o incesto, os contos não condenam o sexo com animais: é o amor e o afeto pelos animais que permitirá desencantá-los.

Alguns psicanalistas consideram que as primeiras manifestações da sexualidade estão liadas ao que denominam escolha de objeto e objeto parcial.

A mãe (ou quem faz o papel de mãe para a criança) seria o primeiro objeto escolhido e seus seios seriam o primeiro objeto parcial.
Por outro lado, como a mãe não está permanentemente presente, acarinhando e alimentando a criança, esta desenvolve fantasias sobre o objeto parcial: ausente ou faltando, torna-se um mau objeto; presente e satisfatório, torna-se um bom objeto.

A criança desenvolve também fantasias de agressão e de ternura com relação a esses objetos, sobretudo a da perseguição, no caso do mau objeto. Assim, nos contos, frutas, plantas, flores e alimentos venenosos ou ardilosos seriam objetos parciais maus ou persecutórios, mas contrabalançados por bolos, filtros, poções, jóias que trazem saúde e quebram feitiços, sendo objetos parciais bons, com os quais a criança e os contos realizam a reparação do objeto escolhido, amado e odiado.

O objeto parcial persecutório mais perfeito, porém, é aquele que não é devorado pela criança, mas que ameaça devorá-la. Nos contos: os dragões, os lobos, os ogros, as tempestades, as florestas sombrias, os castelos cheios de armadilhas. E para contrabalançar tamanha perseguição e reparar o objeto amado, nos contos de retorno, adultos salvam as crianças da perseguição e, nos contos de partida, a sexualidade amadurecida e vencedora das fantasias persecutórias mais antigas aparece no próprio herói ou na heroína cujos objetos mágicos (oferecidos por um bom adulto) lhes permitem, sozinhos, vencer a perseguição. Nesse mesmo contexto, compreende-se que a fada tenha a vara e a princesa dos Três Cisnes, o arco. É colocado em mãos femininas algo que poderia ser fonte de temor para as meninas.

São raros os casos, nos contos de retorno, em que a criança consegue voltar à casa sozinha, sem auxílio de algum adulto, mesmo porque a finalidade do conto é mostrar o despreparo da criança para sair pelo mundo. 

A grande exceção é o Pequeno Polegar, criança em tudo excepcional.

Como seu nome indica, Pequeno Polegar é uma anomalia (e talvez por isso o entusiasmo das crianças por ele), o tamanho compensado pela inteligência fora do comum. As botas de sete léguas, que com astúcia consegue, além de serem capacidade mágica para vencer o espaço e o tempo (a pouca idade), são também meio de assegurar à criança que seus órgãos sexuais pequenos não exigem renúncia dos desejos, mas imaginação para satisfazê-los. É interessante observar que, se nos Três Cisnes a menina empunha o arco, aqui o menino entra num enorme e protetor "recipiente': as botas. E se sai muito bem.

O Pequeno Polegar é um dos contos onde melhor aparecem tanto o medo que a criança tem da rejeição (ser morta pelos pais) quanto a necessidade de reparação, sito é, de recompor a bondade dos pais depois da fantasia de sua imensa maldade. Por isso mesmo as proezas maiores são feitas. 

Polegar substitui para si próprio e para os irmãozinhos o pai e a mãe por pais ideais: as botas acolhedoras e salvadoras do menino que não abandona os irmãos, os protege contra os perigos da floresta e contra o gigante, os traz de volta à casa com fortuna, garantindo a sobrevivência da família. Não há príncipes nem princesas, tudo depende da inteligência e imaginação da criança pobre e minúscula.

Há nos contos contínua intervenção de bons adultos, mas que não intervêm de modo casual ou arbitrário e sim de acordo com várias regras, entre as quais se destaca a escolha dos mais fracos (o caçula, o órfão, a vítima) e dos que têm senso de justiça, além da coragem. O uso dos talismãs também está submetido as regras, os transgressores sendo punidos (perda da potência do objeto mágico, retorno do objeto contra o usuário) ou protelada a chegada à meta (a seqüência de provas recomeçando ou tornando-se mais árdua).

Heróis e heroínas precisam demonstrar que são dignos do talismã (seja por suas qualidades anteriores à recepção do objeto, seja pelo uso que dele faz, seja pela obediência às regras de seu emprego).

Em resumo: as condutas estão reguladas por normas e valores, a finalidade do conto sendo persuadir a criança de que tais normas são boas e verdadeiras e que o sofrimento decorre apenas de sua desobediência. É o compromisso do conto, situado entre o lúdico e a repressão.

Na maioria dos contos, o talismã é dom de um adulto para uma criança, mesmo que esta não o saiba. Há, porém, uma formidável exceção: João e o Pé de Feijão.

Obtido numa sabida transação (que os adultos não entendem e castigam) o grãozinho de feijão, bom sêmen, plantado em boa terra, cresce durante uma única noite. Gigantesco caule, sobe, sobe, eleva-se até `s nuvens, rijo e duro, o menino podendo nele trepar. Como era inevitável, João penetra no castelo do gigante malvado (figura masculina ameaçadora) que possui um segredo precioso, uma galinha que bota ovos de ouro (imagem feminina da fertilidade, guardada em segredo, fonte de riqueza: os que nascem). Dela se apodera João, fugindo pelo caule, perseguido pelo gigante e, para salvar-se, o menino corta o belo pé de feijão.

O conto procura lidar com um elemento repressivo complicado. Obtida a galinha chocadeira de riquezas por um furto (justo, pois o gigante é mau e a família, pobre), esse ato tem clara significação incestuosa e pode ser um risco para a vida da família e do menino, pois o gigante se põe a descer pela árvore, a mesma por onde o menino trepara. É preciso cortar o pé de feijão depois que o essencial foi conseguido, isto é, a fertilidade. O sexo cresce livremente - é como um elemento da natureza, um vegetal -, mas essa liberdade deve encontrar um limite e ser freada, cortada. O menino que subiu é o gigante mau que desce. E vem com fúria assassina.

Os contos de fadas, tais como os conhecemos, são resultado de muitas reelaborações na sociedade européia, fixados nos séculos XVIII e XIX, carregando as concepções desses séculos sobre a sexualidade (e sobre outras coisas também).

Ora, é interessante observar que, no século XIV, ao lado desses contos, surge, na Inglaterra, um outro tipo de estória, em certos aspecto semelhante ao maravilhoso dos contos, mas com uma diferença fundamental: o mundo adulto não é apresentado com divisões e ambigüidades, bom e mau, difícil e desejável, mas como mau e indesejável.

Estamos pensando em Peter Pan e em Alice - o menino que recusou crescer, ficando na Terra do Nunca, e a menina cujo autor não desejou que ela crescesse, fazendo-a conhecer a luta mortal e absurda com a Rainha do Baralho num tabuleiro de xadrez.

Muitos comentadores, de formação psicanalítica, afirmam que o medo de Peter Pan o faz preferir a imaturidade sexual, o homossexualismo e a masturbação (o pó de pirlimpimpim e o vôo), e que as "perversões" de Lewis Carrol (o autor de Alice) o fazia sentir atração sexual pelas meninas, não desejando que ficassem adultas.

Não pretendemos refutar nem concordar com esse comentadores. Gostaríamos apenas de lembrar que essas estórias foram imaginadas num período conhecido como o da "moral vitoriana", quando a Inglaterra, passando pela Segunda revolução industrial, mantinha o controle capitalista sobre o mundo.
A sociedade desse período é narrada e descrita por inúmeros autores como uma das sociedades mais repressivas da sexualidade. Assim sendo, podíamos considerar a recusa do mundo adulto por Peter Pan e por Alice, em vez de "anormal", talvez muito saudável e lúcida. A Terra do Nunca, apesar do Capitão Ganho, é perfeita, mas o País das Maravilhas é feito de ameaças e de frustrações.

Num romance da escritora inglesa Virgínia Woolf, Orlando (estória de um homem-mulher que vive em dois períodos diferentes da história da Inglaterra), a romancista descreve o momento em que, adormecendo como rapaz no século XVII, a personagem desperta como mulher, em pleno século XIX: vê por toda parte casais com trajes cinza e negro, o céu é tenebroso e opressivo e a moça despertada sente uma dor inexplicável no dedo anular esquerdo (isto é, onde se coloca a aliança de casamento).

Muitos adultos ficam chocados com a violência dos contos de fadas e se surpreendem com o fato de que não a percebiam quando eram crianças, comprazendo-se nela. É que a maioria das crianças, além de aceitar naturalmente o maravilhoso, espera com inabalável certeza aquilo que o conto promete e sempre cumpre: "e foram felizes para sempre". A gente se engana, portanto, quando tenta "açucarar" os contos ou omitir as passagens "violentas".

Muitos se surpreendem com o fato de as crianças não só desejarem ouvir inúmeras vezes os mesmos contos (numa repetição que deixa os adultos extenuados), mas também não admitirem qualquer mudança no enredo, por menor que seja (cobram do adulto que "encurta" a estória, omite ou esquece algum detalhe, altera alguma ação). Essa relação quase maníaca e obsessiva da criança com a narrativa é essencial.

A montagem do enredo, a configuração das personagens, os detalhes constituem um mundo cuja estabilidade repousa no fato de poder ser repetido sem alteração, contrariamente ao cotidiano da criança que, por mais rotineiro, é feito de mudanças. Além disso, os contos, operando com metamorfoses, desaparecimentos e reaparecimentos, morte incompleta dos bons e morte definitiva dos maus, funcionam em consonância com as fantasias da criança, particularmente o modo como estrutura o desaparecimento e o reaparecimento das pessoas mais próximas, que ama e de quem depende. Inúmeras crianças inventam jogos de esconder e achar objetos, pois sabem onde estão.

A vantagem do conto sobre a realidade, neste aspecto, consiste no fato de que enquanto, nesta última, a criança jamais terá certeza do retorno dos desaparecidos ou do sumiço definitivo daqueles que teme ou odeia, no conto tudo isto lhe é assegurado, a presença e a ausência ficando apenas na dependência dela própria e, para tanto, exige a narração e a repetição.

Qual de nós não experimentou as emoções de brincar de "pique" ou "pegador"? Encontrar é vencer uma prova diante do desaparecimento. Mas, aspecto relevante, o medo de ser encontrado também é importante porque nos torna visíveis no que desejaríamos ocultar. E, por isso, não ser encontrado também define o vencedor. Não é sugestivo que as crianças menores adorem esse jogo, só que, esconder-se para elas, é fechar os olhos? Acreditam que o que não estão vendo as esconde. Maravilhosa fantasia. Maravilhosa onipotência (como Adão, entre as árvores, imaginando que Deus não o vê porque não é visto por ele).

Freqüentemente os adultos temem o prazer manifestado pela criança diante da "violência" da narrativas. Em geral, o adulto teme, inconscientemente, ser identificado com os "maus", sem perceber que essa identificação é sempre contrabalançada pela identificação com os "bons" e, sobretudo, que ela é saudável para ele e para a criança que pode, pela fantasia, fazer discriminações que lhe seriam difíceis ou quase impossíveis sem o material imaginário.

Não é raro vermos crianças que se sentindo ou se imaginando pouco amadas e temerosas do ódio que experimentam por alguns adultos tenderem a duas atitudes muito compreensíveis. Algumas "torcem" pelas bruxas, pelos ogros e dragões, identificando-se com eles e dando vazão á agressividade que, doutro modo, poderia ser punida se manifestada. Outras, se enchem de pavor, pois os "bons" lhes parecem muito longínquos e inalcançáveis, enquanto os "maus" lhes parecem muito próximos e poderosos. Em certo sentido, pode-se dizer que não o prazer e sim o pavor sentido por algumas crianças é que poderia ser considerado como uma espécie de aviso ou de alerta de uma sexualidade com sofrimentos e dificuldades.

O prazer pelos contos não vai sem discriminação. A criança discrimina os valores ali lançados e os organiza para si própria. Em contrapartida, como observou Bettelheim, a maioria das crianças não aprecia fábulas. Qual a criança que não sente ofendido o seu senso de justiça na fábula de A Cigarra e a Formiga? Feitas por adultos para adultos, a fábula desagrada a criança porque esta não é moralista. A ética infantil não passa pelos códigos estreitos dos apólogos nem pelo cultivo da frustração, próprio das fábulas - a raposa sem as uvas, o corvo sem o queijo, o cão sem a carne. Se a criança tolera a exigência de moderação dos impulsos, não tolera vê-los permanentemente frustrados. À patologia repressiva da fábula, ela opõe uma outra economia do prazer.

Como Emília, sempre sem-cerimônia, que fabula a fábula, conta outro conto e muda a moral da estória, para escândalo de Dona Benta.
Visitando Pele-de-Burro - Ao dar à luz uma menina, a rainha morre deixando viúvo e triste o rei que, desde então, apenas cuida da princesa. 

Chegando esta aos quinze anos, sua semelhança com a mãe é tão grande que o pai por ela se apaixona, desejando casar-se com ela. Aterrorizada, a menina procura refúgio junto à aia que a criara. Dando tratos à bola, finalmente a aia julga ter encontrado um estratagema para impedir o casamento. Instrui a menina para que faça ao pai um pedido impossível de ser satisfeito, mas condição para aceitá-lo como marido. Deve pedir-lhe um vestido feito de sol. 

Ouvido o pedido, o rei convoca todos os tecelões e tecelãs do reino e ordena que o vestido seja feito. Em três dias, está pronto. A aia repete o conselho, mas agora o vestido deve ser de lua. Feito. Novo pedido, mas de um vestido de mar. Também feito. Furioso com a recusa o rei declara que se casará com a princesa, de toda maneira, caso contrário mandará matá-la. Apiedada, a aia obtém uma pele de burro, nela envolve a menina e a leva para fora do reino, deixando-a entregue à própria sorte.

Assim disfarçada, Pele-de-Burro chega ao reino vizinho onde consegue trabalho como cozinheira do palácio e, por causa de seus aspecto, dão-lhe como morada o chiqueiro. Todas as noites, antes de dormir, Pele-de-Burrro usa seus vestidos e chora seu triste destino.

O filho do rei chega à idade do casamento. O pai convida todas as damas solteiras do reino e dos reinos vizinhos para três bailes, quando o príncipe deverá escolher a esposa. Usando seus vestidos de sol, lua e mar, Pele-de-Burro comparece aos bailes e, desde a primeira noite, é a preferida do príncipe que somente com ela dança.

Ela não revela o nome, onde vive , quem é.
Ao fim do terceiro baile, retorna ao chiqueiro e à cozinha. O príncipe adoece e médicos vindos de toda parte não conseguem curá-lo porque desconhecem seu mal.

Pele-de-Burro faz um bolo colocando seu anel de princesa na massa. Leva ao príncipe que, na primeira dentada, morde o anel, retira-o da boca e o reconhece. Indaga quem o colocou ali. Pele-de-Burro é trazida e diante de todos retira a pele, aparecendo no vestido de sol. Curado imediatamente, o príncipe se levanta, pede-a em casamento, é aceito e logo se iniciam os festejos. E os dois foram felizes para sempre.

Neste conto, a mãe morta não é substituída pela madrasta perversa, mas pela boa aia que criou, aconselhou e protegeu a menina contra o desejo incestuoso do pai. Este, diferentemente de outros contos, não é um pobre velho infeliz, mas um fogoso senhor. A não ser por essas diferenças, no restante o conto parece seguir o padrão dos demais: os quinze anos da princesa e os riscos daí advindos, a fuga, o esconderijo na pele de burro, na cozinha e no chiqueiro, os bailes e o casamento com o príncipe, depois de salvá-lo. No entanto, a trama é bem complicada.

A bondade da aia é ambígua e suspeita. Inicialmente procura esconder a menina, conservando-a no quarto, longe, portanto, do desejo paterno. Depois, sugere os vestidos que, além de serem feitos com elementos naturais (a Natureza não proíbe o incesto) e não poderem proteger a menina, ainda a transformam em sedutora, exacerbando o desejo paterno, culminando na ameaça de morte (ameaça que alguns estudiosos chamam de "julgamento do Rei Lear", para lembra o rei da tragédia de Shakespeare que repudia a filha Cordélia porque não julga suficiente seu amor filial). Finalmente, é a aia quem coloca a menina no interior da pele de burro repelente e a conduz para longe da casa (numa expulsão benigna, mas expulsão de todo modo).

Aparentemente, as personagens se distribuem duas a duas: rei-princesa, princesa-aia. Na realidade, a relação é ternária, pois entre o pai e a filha se coloca a aia-mãe. Morta no parto, reaparece como ama-de-criação.

A figura da aia comanda toda a primeira parte do conto, numa atitude vingadora contra o rei e a filha. Nessa primeira parte, a menina está sob a ameaça de dois amores: o do pai e o da aia, mas se a ameaça do primeiro é percebida por ela, a da segunda fica imperceptível sob o disfarce da proteção. A personagem complexa, portanto, é a da aia e não a do rei. Este, tudo mostra; aquela, tudo oculta. Relegada ás partes servis do castelo, nele reina.
A situação, porém, é mais complexa. A aia-mãe, falsa protetora, também está a serviço de uma outra fantasia. Aparentemente, o desejo incestuoso parte do pai. Na verdade, parte da filha, a aia estando a serviço do ocultamente desse desejo, colocada, como nas peças teatrais, na qualidade de comparsa e cúmplice.

O amor da menina pelo pai não pode aparecer porque sua aparição exigiria o ódio pela mãe. Ora, visto que o que a faz amada pelo pai é sua total semelhança com a mãe, ela não só já conseguiu ocupar o lugar materno, mas ainda colocar a mãe no lugar subalterno de uma serviçal. Lugar, que a seguir, ela própria ocupará, ao tornar-se cozinheira, desalojando a mãe de todos os lugares. Há uma luta surda e inteiramente dissimulada na relação princesa-aia.

O disfarce da pele de burro é significativo. Não significa apenas a animalização da menina por obra do pai e da mãe. Significa mais alguma coisa. Em várias religiões existem rituais propiciatórios dedicados á purificação e à fertilidade. Na Grécia, por exemplo, existe o rito dionisíaco de morte do bode para expiação das culpas, renascimento e fertilização da terra.

Nesse ritual, os participantes se cobrem com peles de bode, dançam, têm relações sexuais e bebem vinho, encenando a história do deus Dioniso, morto por amor de sua mãe e ressuscitado pelo sacrifício por ela feito. Coberta na pele de burro, a menina realiza um rito semelhante, ao qual se acrescenta a morada no chiqueiro.

Diferentemente de Branca de Neve e de Bela Adormecida, sua espera ou passagem não se realiza pelo sono, mas à semelhança de Borralheira, vive na sujeira e na impureza e, à semelhança de Bela, vive com animais.
Essa impureza tem vários sentidos. É, por um lado, a menstruação, encarada na maioria das culturas como impureza que isola as mulheres, fazendo-as intocáveis. São os desejos proibidos, a masturbação (vestir os vestidos antes de dormir), a fase anal, por outro lado. Mas não só isso.

Analisando o significado das cinzas e do borralho, na borralheira, Bruno Bettlheim lembra que na antiga Roma as Vestais (meninas da mais alta estirpe romana que deveriam permanecer virgens até os trinta anos), estavam encarregadas de uma das mais altas, nobres e importantes funções: a conservação do fogo sagrado, protetor de Roma. Ora, Pele-de-Burrro vive no chiqueiro, mas é cozinheira no palácio, vivendo ao pé do fogão. Esse lugar não só a transforma de recebedor de alimento (criança) em doadora dele (mãe), mas também lhe dá uma nova figura: trabalha com o trigo (o bolo) e este é símbolo de virgindade (a Virgem, do Zodíaco, carrega um ramo de trigo) e de fertilidade. Articulam-se, assim, vida, morte, pele de animal para purificação, virgindade e fertilidade.

Quanto aos bailes, já vimos seu sentido principal nos contos. Vestida de natureza, a princesa dança e seduz.

Quanto ao bolo, também lá mencionamos seu sentido.
Resta o anel. Além de símbolo evidente da aliança matrimonial, o anel assume sentido para a sexualidade da personagem masculina. Antes de enfiá-lo no dedo, o príncipe o coloca na boca. Sua doença é a infantilidade. Sua cura, transferir o anel da boca para o dedo, e reconhecê-lo como um objeto doado por Pele-de-Burro, não podendo devorá-lo.

Os vestidos também são significativos, além do sentido geral de elementos da natureza. Em inúmeras mitologias, esses elementos são deuses e costumam formar uma trilogia ou trindade indissolúvel: sol-dia-luz-fogo-sexo; lua-noite-treva-mistério-sexo; mar-água-abismo-sexo. Força vital, força mágica e força concebedora.

O número três, cujo significado preciso desconhecemos neste conto, é considerado em muitas culturas o número perfeito ou número da harmonia e da síntese dos contrários.

Possui poderes mágicos (repetir três vezes uma expressão ou um gesto). Na filosofia pitagórica, foram a figura perfeita e sagrada do triângulo constituído pelos dez primeiros números.

Na Cabala, três são as luzes mais altas do infinito, formando o "teto dos tetos" e três são as letras do nome de Deus quando esta passa de "nada" a "Eu". Três são as Pessoas da Santíssima Trindade. Três vezes Pedro negou Cristo. Três são as essências ou hierarquias celestes (na primeira: tronos, serafins e querubins; na segunda: poderes, senhorias e potências; na terceira: anjos, arcanjos e potestades). Três são as partes da alma. Três as virtudes cardeais (fé, esperança e caridade).

Três vestidos, três bailes. Em Branca de Neve, três vezes a madrasta vai à casa dos anões (na primeira, com o cinto de fitas, na segunda, com o pente, na terceira, com a maçã). Três são as filhas em A Bela e a Fera e na Gata Borralheira, como três são as irmãs no três Cisnes e nas Três Plumas.
Três vezes, na canção, "Terezinha foi ao chão" e "acudiram três cavalheiros/Todos três chapéu na mão/o primeiro foi seu pai/o segundo, seu irmão/o terceiro foi aquele a quem ela deu a mão".

A referência que fizemos aos contos de fadas foi muito sumária, deixando de lado aspectos importantes como, por exemplo, outros significados das próprias fadas e demais figuras maravilhosas, ou outros sentidos da relação entre a bondade e a maldade, para a criança, e a divisão dos bons e maus nos contos. 

Também não analisamos os vários significados dos animais e das plantas (oriundos de mitologias e simbologias de várias épocas), dos elementos naturais como água, fogo, ar e terra (sobre os quais o filósofo Gaston Bachelard escreveu, considerando-os arquétipos do inconsciente universal), das poções e filtros preparados por fadas e bruxas (sobre os quais os historiadores muito têm pesquisado), das palavras mágicas (que aprecem em outros contextos, como no filme de Fellini, Oito e Meio, onde, ao pronunciar as palavras "Asa Nisa Masa", o menino traz e expulsa fantasmas e realiza desejos).

Não analisamos os objetos mágicos, embora tenhamos feito breve referências às espadas, aos bolos, às botas, aos sapatinhos (mas nada dissemos sobre o espelho, em Branca de Neve e A Bela e a Fera, o espelho aparecendo no pensamento ocidental em idéias como "os olhos são espelho da alma", ou como feitiço perigoso, à maneira de Narciso que se apaixonou por sua própria imagem, propiciando o surgimento do conceito de narcisismo ou de fase do espelho, na psicanálise).

Apesar dessas lacunas, gostaríamos de sugerir aqui que os contos trabalham em dois níveis: um imaginário (a estória propriamente dita) e um simbólico (a construção implícita do enredo, o lugar e a hora de cada peripécia, os objetos, as cores, os números, as palavras).

Gostaríamos também de lembrar que os símbolos não estão no lugar de outra coisa não são substitutos, mas são a própria coisa presentificada por meio de outras. O símbolo realiza ou traz a coisa por intermédio de outra.

Também não nos detivemos nas posições sociais e políticas das personagens - reis, rainhas, príncipes, princesas, servos, camponeses. Nem no fato de alguns serem estrangeiros ou deformados (não é curioso, por exemplo, que haja uma Moura que é torta?). Nem nos demoramos na estrutura da família encontrada nos contos. Numa palavra, as dimensões históricas, ideológicas e políticas foram silenciadas.

Sobretudo não fizemos qualquer menção á alma dos contos, isto é, que são obras literárias. Nada dissemos de sua construção artística, de suas origens, transformações e reelaborações no decorrer do tempo (situações medievais tratadas com recursos do romantismo, por exemplo), do modo como participam de várias fontes diferentes de pensamento (como a Cabala, presente na escolha dos números, privilegiando o 2, o 3, o 7 e o 10; na escolha das horas, particularmente a meia-noite; na escolha de vegetais, cores, metáforas), do significado da ordem de aparição e desaparição de personagens ou da seqüência dos eventos (uma análise de tipo estrutural poderia mostrar, por exemplo, porque a seqüência é sempre a mesma).

Essa ausência da consideração artística é grave sobretudo quando consideramos dois fatos culturais: a pasteurização dos contos de fadas por Disney e o surgimento de um literatura infantil "realista".

Na disneylândia (exceção feita para duas obras-primas de Disney: Fantasia e Branca de Neve e os Sete Anões), opera-se uma curiosa inversão. Em lugar de encontrarmos, como nos contos narrados, a criança lidando consigo mesma ao lidar com a divisão dos bons e dos maus, encontramos adultos fabricando a "boa criança" com quem possam conviver sem medo. O desenho só é lúdico se for "bondoso" (a contraprova sendo o horror de um filme como Pinóquio).

Para melhor avaliarmos essa perda, podemos relembrar A Bela e a Fera, no filme de Jean Cocteau. Além da ambigüidade na relação entre pai e filha e na rivalidade das irmãs pelo amor paterno, Cocteau dá especial atenção à figura de Fera: na cena do desencantamento descobrimos que um mesmo ator faz dois papéis; num deles, é um adolescente enamorado de Bela que, voltada para o pai, sequer o percebe; noutro, é a Fera. 

O desencantamento é a reunificação das figuras que sempre foram uma só, estando duplicadas apenas por causa do medo de Bela. Medo magistralmente tratado na cena do espelho, onde se revezam as imagens de Bela, do pai, da Fera e do apaixonado. Na relação sexual, com que termina o filme, Bela e o Príncipe, enlaçados, as roupas agitadas pelo vento, suavemente elevam-se nos ares, sumindo por entre as nuvens.

Por sua vez, a chamada literatura infantil realista, além de privar a criança do acesso ao imaginário maravilhoso, fundamental para sua constituição, procura criar a "criança útil", que compreende o mundo "tal como é" (com o detalhe de que é "tal como é" para o adulto que escreveu a estória), aceita a divisão social dos papéis como divisão sexual correta, faz do trabalho e do sucesso valores centrais. A fantasia é considerada perigosa ou inútil.

Essa literatura, pretensamente realista, substitui a criança sabida, inventiva, crédula e astuta, amedrontada e valente, pela criança tonta e "bem-intencionada".

Talvez fosse bom relembrarmos a obra de Monteiro Lobato que não reprimiu "perversões" (Narizinho e o Príncipe Escamado, Emília e Rabicó), escrevendo na certeza de que a criança é inteligente, sabida e crítica.

Afinal, não realizou a mais extraordinária proeza quando, trazendo ao Sítio do Pica-Pau Amarelo as personagens dos contos de fadas, deu-lhes a oportunidade de convocar os autores dos contos e julgá-los, Emília propondo recontar doutro jeito as estórias? 

Pena que a televisão também tenha pasteurizado Lobato.

Enfim, não mencionamos o maravilhoso elaborado no folclore brasileiro. Por que será que o canto da Uiara seduz e mata os homens? O Saci-Pererê é preto, perneta, usa barrete vermelho e pita um pito de barro? O Curupira tem os pés virados para trás? No conto do Sete Estrelo os filhos abandonados viram estrelas, brilhando no céu? No conto A Figueira, a madrasta enterra as enteadas, cujos cabelos se transformam em árvore e cujo canto triste permite a um homem descobri-las e salvá-las? Mas não custará ao jovem leitor partir em busca desse imaginário, se quiser.

Nós lhe recomendamos vivamente que, se o fizer, aceite a companhia do Macunaíma de Mário de Andrade.
Quando iniciamos este tópico, dissemos que não concordávamos inteiramente com as interpretações de Bruno Bettelheim e demos alguns motivos de nossa discordância. Em particular, dizíamos, a excessiva centralização das análises em torno das relações familiares.

Para que nossa afirmação não pareça descabida, sobretudo após a pequena visita que fizemos a Pele-de-Burro, gostaríamos de transcrever aqui um outro conto de fada que se volta, de maneira extraordinariamente bela, para o fundo mais fundo, lá onde mergulha a busca do maravilhoso.


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em mote a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.



Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino.
Ela dormindo encantada
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Este poema encontra-se
 no Cancioneiro do poeta Fernando Pessoa
 e se chama Eros e Psique.

Num livro dedicado ao estudo da obra de Fernando Pessoa, intitulado Fernando Pessoa - Aquém do Eu, Além do Outro, a escritora Leyla Perrone Moisés interpreta a figura desse poeta cuja obra se desdobra em quatro, cada qual com um nome de poeta diferente, cada qual por ele atribuída a uma pessoa diferente. Na busca-recusa da identidade (aquém do eu, além do outro), a escritora nos lembra que, em latim, persona é a máscara usada pelos atores no teatro, e que, em francês, personne quer dizer: ninguém.
Eis a versão repressiva de Eros e Psique: dois seres, enclausurados num cubículo e em suas vestes, sem corpo e sem rosto, enlaçados pelas convenções. Encontro sem contato (as bocas não se beijam, beijam trapos) e sem intimidade, pois, no cubículo fechado e sob os panos que cobrem seus corpos e rostos, se descobre a presença da sociedade inteira, vigiando e controlando o pobre par.

Será Freud o primeiro a captar que Eros e Psique não são dois entes separados perpetuamente buscando um ao outro, mas que são um só e mesmo ser: Eros (o desejo) habita Psique (a alma). Como no poema de Fernando Pessoa, em que o príncipe destemido busca a princesa encantada para descobrir que ele era ela. Desejo de indivisão e de fusão perpétua (impossível), o laço que enlaça em terno e fundo abraço, é a sexualidade humana, perpetuamente reprimida.

 www.cefetsp.br/.../filosofia/contosfadaspsicanalisechaui
 Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
 Sejam abençoados todos os seres.

Nenhum comentário: