terça-feira, 2 de novembro de 2010

AÍSTHÊSIS E NÓÊSIS - Miguel Spinelli


Aísthêsis e nóêsis
de como filosofia grega rompeu com as aparências


RESUMO
Este artigo tem por objetivo destacar o lugar epistêmico de dois grupos de conceitos filosóficos entre si relacionados: o de aísthêsis, empeiría e nóêsis, versus o de ser <tò eón>, alêtheia e noêma. O que se impõe como questão fundamental, a par do suposto conflito entre o modo humano sensível (externo) de se relacionar com o mundo e o modo inteligível (interno) de o conceber, são os limites e possibilidades de o sujeito cognoscente construir tais relações e de tornar o seu saber comunicável.
Palavras-chave: Aísthêsis; Empeiría; Nóêsis; Alêtheia; Noêma.

ABSTRACT
This article aims to highlight the epistemic place of two groups of philosophical concepts mutually related: aísthêsis, empeiría and nóêsis versus to be <tò eón>, alêtheia and noêma. The fundamental issue, besides the supposed conflict between the human sensitive way (external) to be in relation to the world and the intelligible manner (internal) of conceiving it, are the limits and possibilities of the cognoscente individual to build such relations and make their knowledge communicable.
Keywords: Aísthêsis; Empeiría; Nóêsis; Alêtheia; Noêma.

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Alguns mitos foram criados a partir do que Platão e Aristóteles teorizaram a respeito do conhecimento humano. Em relação a Platão,1 o maior dos mitos consiste em fazer crer que ele refuta (ou despreza) a percepção sensível; em relação a Aristóteles, que ele atribui valor de ciência à empiria. Esses dois mitos são consequências do hábito que se criou desde tempos remotos (por força de conflitos entre aristotélicos e platônicos) de desassociar Aristóteles de Platão, o Liceu da Academia, esquecendo-se de que a educação filosófica de Aristóteles esteve vinculada por longos anos (pelo menos dezoito - de 366 a 348) ao ensino de Platão e da Academia. Por razões óbvias e justificadas, a tradição (em particular a aristotélica) não quis fazer de Aristóteles um platônico: alguém que religiosa ou sectariamente dedicou a sua obra (investigação ou pesquisa) e também o seu magistério filosófico à doutrina de um mestre. 

No entanto, ele é um platônico, e, de todos, o melhor: alguém que, sem desqualificar o pensamento crítico ou o exercício racional, se envolveu profunda e autonomamente com a doutrina de um mestre.

É certo que Platão e Aristóteles aglutinaram tendências filosóficas diferentes. Aglutinaram pelo fato de "Platão" e de "Aristóteles" não representarem tão somente o pensamento ou a doutrina de um indivíduo subjetivamente considerado, e, sim, de grupos de indivíduos (discípulos e admiradores) a eles associados. O conjunto da obra atribuído a cada um ultrapassa os indivíduos. Ocorre que era hábito no mundo grego colocar no nome do mestre (do feitor e mentor de uma Escola) tudo o que de melhor se produzia em torno dele. No caso, por exemplo, da Academia de Platão, ela foi mais do que uma simples Escola, pois se constituía em forum aglutinador de tendências e de debates filosóficos, em particular no tempo em que Platão viveu e nela atuou. 

Quanto ao Liceu, Aristóteles o concebeu com um propósito mais restrito: agrupar em torno de si indivíduos interessados em questões específicas, sobretudo concernentes às Ciências Naturais. Além dessa, uma outra razão que promoveu a autonomia do Liceu em relação à Academia foi o fato de ali se reunirem indivíduos que concordavam com a postura crítica de Aristóteles a certas teses do platonismo (da qual a Metafísica é um bom exemplo). 

Platão, subjetivamente considerado, era sobretudo um matemático e, digamos assim, "político", ou seja, dedicado a investigar questões conceituais referidas ao Kósmos e à estruturação da Pólis. Na busca, por exemplo, de um novo ordenamento para a Pólis, ele não o procurou na experiência, na ação (numa análise histórico-sociológica) do fazer político, e, sim, na reflexão racional-filosófica de conceitos — referentes ao que é ou o que significa fazer bem feito, e ao que é necessário ou o que é preciso (aquilo do qual não se pode prescindir) para bem ordenar... 

Aristóteles era um médico e também "gramático", interessado em questões estruturais referentes à vinculação entre o ser (o que existe ou o que as coisas são), o dizer (a estrutura formal do discurso) e o pensar (o exercício eficiente da phrónêsis). Claro que também Platão se ocupou com esses problemas teóricos, porém nunca foi considerado um lógico, ou, digamos, um dialético teórico, e, sim, prático. Dizer, com efeito, que Platão é um racionalista e que Aristóteles é um empirista é promover um conflito que não deve ter existido entre eles. Ambos priorizaram questões diferentes; todavia, foram filósofos completos, que se ocuparam, como era próprio da época, com um pouco de tudo. 

No caso específico de Aristóteles, em razão de ele ter tido ascendência médica, isso fez a grande diferença. Todo médico tinha necessariamente de se ocupar com o estudo da História Natural e não podia deixar de levar em conta a experiência (médica) ancestral. A par do diagnóstico da doença, cabia ao médico prover a cura (produzir infusões), o que o levava a recorrer à experiência (ou seja, à observação e à empiria) tanto quanto ou mais do que à teoria. Já o matemático, ao contrário, antes da experiência, ocupava-se com formas ou figuras do pensamento abstrato... Uma coisa, porém, era ser médico ou matemático e ter que satisfazer a necessidade de seu ofício (responder por um setor específico de conhecimento); outra, é a condição do filósofo, ao qual cabia teorizar, não sobre um setor particular de conhecimento, mas sobre o conhecer humano em geral. 

Ora, nenhum dos grandes mestres da filosofia grega, dos que de algum modo teorizaram sobre o conhecimento humano (praticamente todos os présocráticos, dos quais são herdeiros Platão e Aristóteles), admitiu e ensinou que a Ciência é racionalidade pura. Tampouco alguém ensinou que a Ciência nada tem a ver (não tem qualquer vínculo) com a empiria, ou que a empiria é destituída de qualquer valor no processo cognoscitivo. Ninguém, ao contrário, também ensinou que o fazer ciência se restringe à empiria, como se ela, além de fonte, fosse o único modo autorizado de se conhecer o real (o ser ou o que as coisas são). Sequer o matemático Filolau (tido como o escritor do pitagorismo e um dos mestres de Platão)2 admitiu tal coisa: que a empiria nada tem a ver com o processo cognoscitivo. Por certo ele não era um empirista... Esse tipo de clichê (dizer, por exemplo, que tal autor é um empirista, tal outro um racionalista, aquele um idealista, e assim por diante) é um tipo de informação (acadêmica) que parece dizer muito, mas, sem uma explicação devida, em geral não diz nada: quase sempre resulta em informação vazia. 

O grave é o fato de esse tipo genérico de informação passar, na maioria das vezes (sem levar em conta especificidades ou preferências), uma falsa ideia de que tal autor, no caso, é um empirista. Isso reduz a produção de Ciência à empiria, enquanto que, se é um racionalista, então não atribui à empiria qualquer valor no processo cognoscitivo. Ora, nenhuma dessas situações (a do racionalista puro ou a do empirista puro) se aplica aos grandes mestres ou teóricos da filosofia grega. No exemplo de Filolau, reconhecidamente um matemático, nem ele desvinculou o conhecer (ou seja, o pensar conectivo e abstrativo) da empiria, mais exatamente de sua referência ao ser ou à existência (das coisas) em geral: "todo ser cognoscível (diz ele) tem um número, sem o qual nada podemos colher ou conhecer";3 e diz mais: "nenhuma das coisas [existentes] é evidente em si mesma e em sua relação com outra, se não existisse o número e a essência do número".4

  "Portanto (conclui), é o número que torna todas as coisas adequadas à alma pela sensação, cognoscíveis e comensuráveis entre elas...".5
 
"Ter número", na expressão de Filolau, significa deixar-se enumerar,6 e isso quer dizer deixar-se conhecer como um indivíduo numericamente existente. Deixar-se enumerar significa, pois, evidenciar-se como um, do qual a razão infere os seguintes predicados: indivisível, inteiro, completo,7 etc. Significa, ademais, tornar-se adequado à alma (ao processo racional cognoscitivo da razão) humana, que, em si mesma, é capaz de harmonizar e, portanto, conectar, o um ao múltiplo. Por um lado, a razão, por um procedimento abstrativo, separa o um do múltiplo (de uma totalidade complexa); por outro, a fim de tornar algo (uma coisa, uma representação, um fato) conhecido, harmoniza-os entre si, ou seja, relaciona o um a uma totalidade. 

É só mentalmente (identificada mediante um termo, conceito, ou ideia) que uma certa unidade pode ser separada da totalidade. Quer dizer, o que conhecemos é sempre algo referido a um múltiplo. Aludido pela experiência, através dos sentidos, ele é vago e confuso. Com efeito, através da razão, na medida em que intelectivamente atribuímos ser ao que é, ele se torna claro e evidente, não só em si mesmo, como também em sua relação ao múltiplo. Daí por que fazer ciência é evidenciar, sobretudo porque a ninguém basta ver de longe: é sempre preciso ver de perto, tocar, experienciar e, de algum modo (movido pela curiosidade humana), desocultar o que está escondido, encoberto. Em outras palavras, fazer ciência (conhecer) significa tornar o oculto evidente, o confuso, claro, melhor ainda, o sensível, inteligível. E eis por que, em última instância (sendo que isto se deu desde os primórdios da Filosofia), o conhecer se restringiu a um conflito: entre o modo humano sensível (externo) de se relacionar com o mundo e o modo inteligível (interno) de o conceber.

1 A aisthêsis, a empeiría e a nóêsis
1.1 Aristóteles representa, no contexto da Filosofia grega e no que diz respeito à teoria do conhecimento, um ponto culminante. Foi ele quem efetivamente confrontou (sobretudo na Metafísica), em busca de uma solução, o empírico e o noético. Ele concebeu três momentos referidos ao modo humano de conhecer: o aisthêtikós, o empírico e o noético. A aisthêsis, ele a concebeu sobretudo de dois modos: um, enquanto expressão de um saber superficial, distinto de um conhecimento (racional-noético) profundo e especializado; outro, enquanto fonte de percepção e causa de certificação cognitiva.8 "Consideramos, a respeito das sensações, que nenhuma delas é sabedoria, mas são cognições <gnôseis> fidedignas das coisas particulares. Por elas não dizemos o porquê de nada, por exemplo, o porquê <dià tí> da quentura do fogo, mas tão somente que é quente".9
 
As sensações, tal como Aristóteles as concebe, são gnôseis, cognições, porém superficiais. Por elas percebemos formas, cores, tamanhos, movimentos e umas quantas qualidades em dependência da capacidade cognitivo-perceptiva de cada um dos sentidos (que é quente, frio, liso, rugoso, doce, salgado, etc.). Por serem superficiais (percepções do que é aparente), tais cognições não se constituem em ciência. Elas indicam o que é (que algo existe assim, que se dá de um modo "próprio"),10 mas não explicitam o que vem a ser (a ciência de) cada uma dessas coisas. A fim de que o percepto singular-sensível venha a ser explicitado, carece de intelecção, que seja racionalmente discriminado em sua essência <tí esti>, ou seja, no que é ser tal coisa ou ser assim; caso contrário, o que é percebido, quanto ao seu modo de ser, restará sensível, e sobre ele "não haverá ciência <epistêmê>, a não ser (ironiza Aristóteles) que alguém diga que a sensação é ciência <légein tên aísthêsin epistêmên>.11
 
Na medida em que Aristóteles concebe as sensações enquanto "cognições das coisas singulares", o que ele põe em questão, em primeiro lugar, é a singularidade da percepção enquanto percepção, ou seja, enquanto os sentidos evidenciam que algo é assim, por exemplo, que o fogo é quente, que a neve é fria, que o sal é salgado, etc., mas sem qualquer outra especificação. Além disso, a par da singularidade do que é percebido (aliás, sempre de modo fidedigno, porque, segundo Aristóteles, os sentidos não mentem) temos também a singularidade subjetiva no ato perceptivo do indivíduo senciente. 

A questão é a seguinte: é certo que todos os homens (esse é um dado objetivo), na medida em que são dotados das faculdades de percepção, experimentam objetivamente do mesmo modo (que o salgado é salgado, o doce é doce, etc.), porém, não com a mesma intensidade, ou intencionalidade, ou ponto de vista.12 Quer dizer, todos percebem o mesmo que percebem, veem o mesmo que veem, etc. Se cada um visse ou percebesse algo diferente, seria muito problemático. Entretanto, cada um se afeta (subjetivamente) de um certo modo, mas, por esse afetar-se, sabe com certeza (objetivamente) que algo é assim (frio, quente, salgado, etc.). Tal saber, com efeito, é subjetivo, mas dotado de um fundamento objetivo, cuja objetividade só se dá pela subjetividade perceptiva do indivíduo senciente. Por tratar-se, no entanto, de um saber subjetivo, bem por isso ele é objetivamente indescritível e incomunicável. No máximo, o que alguém a respeito dele (do percepto) pode dizer é que, por exemplo, no caso do fogo, "o fogo queima", restando tal proposição indecifrável (objetivamente imprecisa no que vem a ser a experiência do queimar), a não ser que o interlocutor ou já a tenha subjetivamente experimentado (posto a mão no fogo) ou venha a experimentá-la. 

Resulta claro, em Aristóteles, que o saber relativo à aisthêsis (ao sensível, à percepção do que é aparente) tem um valor meramente subjetivo. Pelo seu ponto de vista, a aisthêsis não é epistêmê, e sim gnôseis, um saber superficial, porém, fidedigno, dotado de uma certeza relativa à subjetividade humana; e se é humana, significa que não se trata de uma subjetividade qualquer, restrita ao indivíduo em particular, e sim comum a todos. Daí por que não sendo estritamente subjetiva, mas condizente com a objetividade relativa ao modo humano de ser, é tida, por Aristóteles, como o ponto de partida da ciência, mais precisamente do comum a todos noético, e, portanto, do pressuposto de universalidade (ou de objetividade) requerido na Ciência. Quer dizer, do comum a todos aisthêtikós (espontâneo e sem esforço), Aristóteles foi levado a pensar o comum a todos noético (elaborado, fruto do exercício de uma habilidade especializada); da singularidade das gnôseis (do modo humano de perceber ou de experienciar sensações), a singularidade própria do fazer ciência (da nóesis epistêmica). 

Todavia, nessa relação entre o aisthêtikós e o noético a primeira e fundamental questão diz respeito à empiria. Aristóteles distingue-a da aisthêsis, do universo das sensações humanas ou do modo humano de perceber, e a ela se refere sob três aspectos: um, o da empeirías dýnamin,13 como se a empiria resultasse em uma capacidade ou vigor <dýnamis> eficaz; outro (em decorrência do primeiro), o da empeiría téchnên,14 o da habilidade produtiva, e que é a fonte da experiência cognitiva (universal e objetivamente comunicável); o terceiro é o da empeirías ennoêmátôn,15 o da empiria noética, referida ao exercício do pensar <logismoîs> ou ao ato da reflexão <énnoia>, cujo operar se dá mediante noêmas (ideias, noções, conceitos), e com o qual se constrói a experiência epistêmica propriamente dita. Em si mesma dupla: a das explicações e a das indicações ou orientações noéticas. Essa última está voltada ou para o saber fazer manual (técnico-produtivo ou construtivo) ou para o saber agir, em sentido ético, e, portanto, voltada para a melhoria do comportamento ou dos costumes. 

A par desses três aspectos ou em dependência deles, Aristóteles concebe a empiria (num sentido amplo) como uma espécie de habilidade adquirida ou pelo acúmulo de sensações experimentadas ou pelo exercício (sobretudo manual) de alguma tarefa praticada em ofício <dè cheirotéchnas di' éthos>.16 Por esse ponto de vista, ele atribui à empeiría o significado, não, digamos, de um status quo de referência — por exemplo, o de mundo externo, ou o que é perceptível —, e, sim, a partir da relação homem-mundo, o que é gerado <gignetai>,17 ou que vem a ser, nos termos tanto de um saber identificar ou distinguir algo de algo, quanto de um saber fazer essencialmente prático (em ambos os casos, uma habilidade relativa à téchnê e à epistêmê). Trata-se, com efeito, de um vir-a-ser em sentido ontológico, ou seja, restrito à qualificação do tà ónta, do modo humano de ser ou de existir —, mediante empenho, uma vez que a qualificação do humano não nos é inata (dada espontaneamente ou por Natureza). Sendo assim, por tratar-se de um vir-a-ser gerado ou que se constrói, Aristóteles restringe, em última instância, a empeiría a um "fenômeno" essencialmente humano, que expressa, digamos, o que os latinos (na tentativa de dar ao termo uma significação genuína) denominaram de experientia: um modo humano de ser, colhido ou retirado (nas suas indicações, e não só por um indivíduo, mas também por uma comunidade de indivíduos) de fora de si mesmo. A empiria, com efeito, é um tipo de conhecimento, fruto do tempo, da prática, da vivência, e não rigorosamente da inteligência. 

Visto que a empeiría experientia> diz respeito a algo que é gerado ou que se constrói, Aristóteles concebe-a em diferentes níveis: a) no da aísthêsis, do que é identificado pelos sentidos, primeira etapa do saber, o da phantasía aísthêtikê, o da representação ou imaginação sensitiva, em que se dá o discernimento (natural) promovido pela perceção (p. ex., do que é quente, frio, doce, salgado, etc.). A aísthêsis também ativa a memória e desperta uma consciência espontânea do tempo;18 b) no da arte (da téchnê), da habilidade comunicável (sempre uma certa habilidade especializada que se interpõe à nóêsis, ao pensamento reflexivo); c) no da ciência <epistêmê>, da explicação teórica ou do conceito, e, portanto, do logos epistêmico, mediante o qual, da phantasía aísthêtikê advém a phantasía logistikê (raciocinante e deliberativa <bouleutikê>) e a memória reflexiva, e o discernimento se estende para além da dóxa e da phrónêsis (desta que, para Aristóteles, é fonte de um saber essencialmente pragmático, condizente com o éthos relacional).19
 
Na base do processo (e da disposição humana natural) de conhecer, Aristóteles sobrelevava a função prévia da memória, sem a qual não estaríamos por Natureza em condições de nos instruir (de reter ou acumular saber adquirido) e de fazer Ciência. "Por natureza (diz ele), todos os animais nascem dotados da capacidade sensitiva (da aisthêsis), mas nem todos dispõem de memória, a não ser alguns. Os que são capazes de recordar são mais prudentes e aptos para aprender".20 Os homens (prossegue), além da memória, dispõem "de arte e de raciocínio <téchnêi kaì logismoîs>", e são capazes de compartilhar da empiria <empeirías dè metéchei>.21 "Neles, a empiria nasce da capacidade de recordar, as recordações repetidas da mesma coisa surtem o efeito de uma única empiria, e a empiria se parece com a ciência e com a arte <epistêmê kaì téchnê>".22 "Se parece", porque a empiria, rigorosamente, não se confunde nem com a arte e nem com a ciência. Ela é restrita a um saber fazer; porém, "se parece" com a ciência e a arte na medida em que resulta numa experiência única (verbalizada enquanto princípio e mediante conceito). 

Ela se torna uma arte (uma téchnê) caso venha a ser comunicável (resulta num princípio instrutivo), de modo que venha a ultrapassar a singularidade do sujeito (experiente) que a detém. 

Ela se torna ciência à medida que, além de comunicável (ou seja, de ser universalizável mediante conceitos), converge para um conhecimento teórico (um logos epistêmico) "sobre certos princípios e certas causas <perí tivas archàs kaì aitías>".23 

Em síntese, ela vem a ser ciência porque é construída, pela via da razão e do discurso, como uma experiência objetiva, fonte de saber e de instrução. 

1.2 Antes de Aristóteles (e, evidentemente, de Platão) foi Heráclito o primeiro a distinguir que "o homem é dotado de duas possibilidades para o conhecimento da verdade: a percepção sensível e a razão <aisthêsei te kaì lógoi>...".24 Foi Sexto Empírico (do III século depois de Cristo) quem fez esse comentário. Na sequência, ele diz que Heráclito "afirmava (...) serem duvidosos os conhecimentos adquiridos pela percepção sensível e considerava a razão como critério de verdade".25 

Servindo-se do fragmento 107 (daquele que diz: "Más testemunhas para os homens são os olhos e os ouvidos, se suas almas são bárbaras"),26 Sexto Empírico também disse que Heráclito "refuta <elénchei> a percepção sensível". Em primeiro lugar, o que diz aqui Sexto Empírico está em contradição com o que disse anteriormente: que Heráclito admite a percepção sensível enquanto possibilidade para o conhecimento da verdade. 

Em segundo lugar, ele se serve do fragmento só no seu sentido negativo, pois o concebe assim: "é como se Heráclito tivesse dito: São as almas bárbaras que confiam na percepção sensível desprovida de razão".27 De certo modo, Sexto Empírico está correto, mas o fragmento tem também um sentido positivo, como se Heráclito dissesse: Só para as almas bárbaras, os olhos e os ouvidos são más testemunhas. Quer dizer, só são bárbaras as almas desprovidas de razão, que não sabem decifrar ("ouvir") a linguagem dos sentidos28 — assim como está dito nos fragmentos 19 e 34: "Homens que não sabem nem ouvir e nem falar";29 

"Também quando ouvem, não compreendem, são como surdos".30 Portanto, as almas que sabem "ouvir", não são bárbaras, de modo que os sentidos, para elas, não são más testemunhas.
Heráclito colocou sob suspeita a percepção sensível, mas não a ponto de refutar por completo a importância da aisthêsis no processo cognitivo. Entre o que pode ser visto e o invisível, entre o que se pode nomear e o inefável, eis, efetivamente, qual foi a sua preferência: "tudo o que se pode ver, ouvir e saber (algo efetivo sobre ele), eis o que prefiro".31 

"Saber" foi traduzido de máthêsis, termo que, em geral, designa a aprendizagem, ou, mais precisamente, a experiência dela resultante. No fragmento 17 consta o particípio mathóntes, no sentido de assimilar ou de apropriar-se, instruir-se. Esse é o fragmento que pode ser traduzido de dois modos:

a) "Muitos não compreendem as coisas que eles encontram; mesmo experimentando-as, não as entendem <oudê mathóntes ginôskousin>, mas pensam saber",

b) "Muitos não compreendem as coisas que eles encontram, e não as entendem quando ensinados <oudê mathóntes ginôskousin>, mas pensam saber".32 Na primeira alternativa, mathóntes expressaria o aprendizado que se realiza numa experiência pessoal; na segunda, a relação entre a instrução e o aprendizado (em que se destaca a relação entre mestre <didáskalos> e discípulo <mathetês>). 

Em ambos os casos, o termo máthêsis se aproxima do significado de guinôskô (de conhecer, compreender, entender). Ele acentua, mesmo que negativamente, um intercâmbio entre a instrução e o conhecimento, e indica, ao mesmo tempo, um modo intelectivo de proceder: uma disposição através da qual o aprendizado ou o saber passa necessariamente pela interioridade do aprendiz. Nesse processo, e, digamos, intercâmbio entre a aisthêsis e a nóesis, os órgãos sensíveis exercem a função de testemunha (marturía), como ficou expresso no fragmento 107: "Más testemunhas (mártures) para os homens são os olhos e os ouvidos se suas almas são bárbaras"; ou ainda, como está expresso no fragmento 101a: "Os olhos são testemunhas (mártures) mais exatos que os ouvidos".33 Mártures consta também no fragmento 34: "Muitos, quando ouvem, não compreendem, são como surdos; justificam o provérbio: presentes (martureî) estão ausentes".34 Enfim, enquanto testemunhas os sentidos dizem ou depõem algo, porém, esse dizer aisthêtikós requer do sujeito noético que ouve uma presença atenciosa, uma disposição intelectual "auditiva" (apta a discernir), porque diante do depoimento da testemunha é necessário um posicionamento. Sem ele, sem o exercício da inteligência ou do juízo, o depoimento deixa de dizer: há percepção, mas não aprendizagem; há observação, mas o saber humano não colhe, não resulta numa experiência digna de ser aprendida e ensinada. 

Está visto que Heráclito não "refuta" a percepção sensível; uma refutação ou negação desse tipo teria sido necessariamente banal. Mas nem Sexto Empírico, quando diz em seu comentário que Heráclito "refuta a percepção sensível", o diz em termos de uma negação da sensibilidade. O seu comentário põe em questão, no afazer cognoscitivo, o critério de verdade. Se bem que, como cético, ele não admite nenhum: nem sensível e nem racional. Esse, em última instância, é o problema. Por isso, o seu comentário também não pode ser visto como uma refutação trivial, por Heráclito, da percepção sensível, e, sim, do sensível enquanto critério de verdade

Alguns fragmentos de Heráclito induzem de fato a essa negação; como este: "Os homens se enganam no conhecimento das coisas visíveis...".35 Eles se enganam, porque "a vista é enganadora".36 E se, no caso, a vista nos engana, então não podemos nos fiar inteiramente nela, assim como não podemos confiar na percepção sensível como um todo: "Se (diz entretanto Heráclito) todas as coisas <ei pánta tà ónta> tornassem fumaça, conhecer-se-ia <diagnoîen> com as narinas".37 Ora, as coisas não são fumaça, pura aparência, e, portanto, o olfato e, do mesmo modo, os demais órgãos da percepção sensível não servem como critério de verdade.38

2 O ser <tò eón>, a verdade <alêtheia> e o noêma
2.1 A par de Heráclito, foi Parmênides quem pôs formalmente em evidência a premissa da existência como único caminho confiável na senda do saber ou ciência. Estas foram as suas palavras (de um mestre para seus discípulos): "É necessário que o dizer e o pensar se restrinjam ao existente"39 —, acompanhadas das seguintes advertências: a) porque o caminho de investigação do que existe merece total confiança: "é o caminho da Persuasão (porque segue a Verdade <Alethêíni )";40 b) porque a investigação do que nãoé (do que não existe) "é um atalho totalmente desconhecido. Pois o que não existe não o podemos conhecer (isso é impraticável), tampouco nomear <oúte phrasais>".41 "Consequentemente, só resta um caminho viável de discurso: o do que é <hôs éstin>".42
 
O que é de Parmênides, sintetizado nas fórmulas hôs estin e hópôs estin, é expressão do ser ou do existir <tò eón>. Tò eón (o ser ou o existente) de modo algum se refere a uma abstração. A abstração tem o seu lugar no dizer e pensar, não no ser (no que é). O ser diz respeito a algo concreto, ao existente de fato, ao que, sob certos aspectos, se deixa empiricamente especular — no sentido castiço do termo latino speculum (em que spec indica o ver, de modo que speculum diz respeito à imagem vista ou observada, que se deixa examinar com atenção e minuciosamente). Visto, com efeito, que o primeiro passo do processo cognoscitivo (para além do ver) é o da nomeação, por suposto o ser (o que é observado como coisa real) corresponderá ao que é enunciado. Por isso, segundo Parmênides, "pensar e ser é o mesmo"43 —, ao que dá a seguinte explicação: "O pensamento é idêntico àquilo em dependência do qual é enunciado. Por isso, é tarefa inútil expressar o que é, prescindindo dos existentes, ou inventar o pensamento". 

E acrescenta: "Nada existe ou existirá, não importa o que, para além dos existentes...".44
 
Na relação entre estes três elementos, o ser (o que é ou existe), o dizer (o que é nomeado ou enunciado) e o pensar (o que é dotado, ou melhor, o que dota o enunciado de significação e de uma certa ordem) é impossível, segundo Parmênides, encontrar o dizer fora do pensar (ou vice-versa), do mesmo modo como é impossível desvincular o dizer e o pensar do ser (ou seja, de algo em dependência do qual é inferido o enunciado). Dá-se que do nada, nada se enuncia! Portanto, se há enunciado, deve haver algo ao qual o dizer e o pensar se referem, caso contrário não haverá ciência, e, sim, um mero discurso vazio, pura invenção: fábula que não merece confiança (destituída de persuasão). 

No processo cognoscitivo, ser, dizer e pensar resultam, para Parmênides, numa única e mesma coisa, ou seja, numa ordem significante (referida à existência e ao discurso). O que existe, na medida em que existe, se manifesta, e se se manifesta, a fim de que possa ser conhecido, carece de ser pensado. Todavia, só nos é possível pensar o que é submetendo-o ao discurso: às regras da nomeação e do enunciado. Quer dizer, para que o existente venha a ser pensado é necessário que ele seja convertido em enunciado; melhor ainda, é necessário, para além do que dele se mostra (da aparência, do que é sensível, visto ou percebido), que o convertamos em noêma, ou seja, que o submetamos à verbalização nominal (à phrásis) com a qual damos ser ao ser. Daí a razão pela qual, segundo Parmênides, é impossível encontrar o ser, no que é enunciado, fora do pensar. Porque o ser, na medida em que forçosamente o acessamos enquanto noêma (noção ou conceito), ele resulta, para nós, em enunciado: num "produto" discursivo, em que se mesclam o ser, o dizer e o pensar. 

Ao estabelecer a existência como condição sine qua non do exercício do pensar e, por suposto, da construção de discurso, Parmênides fez da aisthêsis fundamento objetivo da pretensão humana de conhecer: ao mesmo tempo fonte de conhecimento e garantia da convicção cognoscitiva humana. Alguns de seus discípulos seguiram bem de perto tal recomendação, como Empédocles, por exemplo, do qual se conserva o seguinte fragmento:  

"Não nos é possível colocar (a divindade) ao alcance dos olhos ou apalpá-la com as mãos, principais caminhos pelos quais a persuasão <peithoûs> alcança a inteligência <phréna> humana".45 

Foi como se tivesse dito: a empiria (a aisthêsis) não é o único, mas o principal caminho da persuasão cognoscitiva. Também Melisso (discípulo e defensor do pensamento de Parmênides) dissera praticamente o mesmo: "não podemos afirmar nada definitivo sobre os deuses <perì theôn>, porque eles escapam ao nosso modo de conhecer".46 Heráclito (com o qual o logos de Parmênides mantém uma estreita ligação) costumava dizer mais ou menos a mesma coisa:
 
"[A maioria das coisas divinas] escapa ao conhecimento por falta de convicção <apistíni>".47
 
Por coisas divinas <tà theîa>, os antigos designavam dimensões etéreas e também ideias sublimes (relativas ao Cosmos e ao mundo humano) acessíveis tão somente pela via da razão e do discurso, ou seja, noética e verbalmente proferidas. "A fortuna <týchê> é uma causa (do Cosmos, disse Aristóteles), porém, escondida da razão humana, porque é como algo divino e altamente daimônica <theîon kaì daimoniôteron>".48 Por certo, dentre as "coisas" divinas, a dimensão, digamos, mais excelsa era a que se nomeava <onomázô> de psychê: termo com o qual se dava como identificado um certo domínio (nos termos de um governo, vigor ou força vital) inerente ao Kósmos e também a todos os viventes que do Cosmos participam; dentre as ideias, a do bem (o agathós) era a mais sublime, nomeada como pressuposto ou antecedente necessário à edificação de toda e qualquer ordem <kósmos> racional e idealmente concebida. 

Não sendo, pois, as "coisas divinas" empirica ou mesmo racionalmente evidentes (tidas como sendo do domínio do invisível), por suposto só poderiam ser abordadas mediante conjeturas racionais. Disso não se segue, porém, que, da empiria, ou seja, do que é passível de ser observado ou que é manifesto enquanto fenômeno, não se infere o divino: por sobre o visível o invisível. Ora, a tirar pelo que definiu Anaxágoras — que "os fenômenos são manifestações do invisível <ópsis gàr tôn adêlôn tà phainómena>"49 —, é de se pressupor que as aparências não eram tidas, rigorosamente, como pura ilusão. Ao contrário, eram tidas como manifestações mediante as quais o invisível ou o desconhecido (por força do que se vê) assediava a inteligência ou provocava no intelecto o desejo da explicação, do discernimento e da conjetura. 

O próprio conceito de verdade (de alêtheia) foi concebido em referência a algo que se busca, de modo que, antes de se referir ao resultado da investigação, a alêtheia era referida ao objeto investigado. Nesse sentido, o "objeto", ou seja, o que é <tí esti> (algo concreto e determinado <tóde ti>), o existente de fato <tò eón> ou a coisa real <tà ónta> é verdadeira (existe de fato) na medida em que se mostra, ou que se deixa ver, ouvir, degustar, etc. Quer dizer, algo por princípio é verdadeiro, na medida em que está à mostra — no sentido literal de a-lêtheia, em que o alfa tem um sentido privativo, designa uma negação, e, lêtheia (um derivativo de lanthánô), o que está escondido. Portanto, a-lêtheia diz respeito ao que não se oculta, de modo que, se não se oculta (não estando escondido), então está à mostra: é o que se põe frente ao nosso campo de observação e que se deixa ver, etc. Concretamente, é o que é (o que existe de fato), e se existe (se "é") então não é uma quimera, mas algo real, não uma fantasia... 

Mas, além de se referir ao objeto investigado, a alêtheia também diz respeito ao modo de investigar, a partir do que se mostra, o que se oculta. Eis, por esse ponto de vista, como Demócrito a definiu: "a alêtheia é o que está no fundo <en buthôi>".50 Etimologicamente, enquanto termo, pode ser concebida de diferentes modos: 1) destacando-se (como fez Heidegger) o "a" privativo vinculado a lanthánô e a lêtô; 2) destacando-se (como fez Platão) alê de theia, em cujo corte theia (ou théa) designaria a) o divino ou as coisas divinas <tà theia>; b) a investigação (observação ou contemplação) vinculada a theáomai

2.2 Heráclito e Parmênides são, sem dúvida, a fonte de tais vinculações, quer referindo a alêtheia a lêtô e lanthánô, quer vinculando-a a theáomai. Heráclito, no fragmento 1, faz um jogo entre os verbos lantháno (esquecer, ocultar, omitir) e epilantháno (fazer esquecer, omitir). Ambos estão vinculados a lêtô, que designa o esquecimento, e vêm comparados a uma inusitada situação, sob dois aspectos: a dos homens que, acordados, não sabem o que fazem, e a dos homens que, tendo dormido, esquecem o que sonharam. Vinculada a lêtô (ao qual se acrescenta o alfa privativo, igual alêtô), a a-lêtheia expressaria evidentemente o não esquecimento, ou seja, a lembrança, melhor ainda, o que se conserva ou se mantém (na alma — na sede do lógos) como um saber.51
 
A vinculação feita por Heráclito entre lembrança e esquecimento condiz exatamente com a situação (conflituosa) de quem cultiva o saber em oposição ao que se mantém num estado de ignorância. A todos (reconhece Heráclito) foi "facultado o conhecer a si mesmos e o pensar correto",52 porém, uns não se ocupam com a investigação (theáomai), outros se "esquecem para onde leva o caminho".53 A alê-théa (como consta no fragmento 112, em que Heráclito a vincula com o saber <sophíê> e o dizer <légein>) diz exatamente respeito a esse caminho, porém, não se refere só ao lugar em que se está (atualmente) observando, mas também o para onde se deve ir, ou até onde, percorrendo a senda do saber, é possível chegar. Visto que Heráclito reconhece que "longo é o caminho da alma e profundo o logos que ela retém", concluiu que a busca do saber é sem fim, e que, portanto, jamais encontraremos os seus limites.54 Sendo assim, há, então, um único caminho para a verdade: caminhar nele (investigar sempre). 

Platão, no Crátilo, verbalizou assim a alê-theia: como uma caminhada errante (alê) em busca do divino (theia) — têi alêtheiai, hôs theia ousa alê.55 Alêtheia, segundo diz (em que acentua um certo pioneirismo na senda do saber), expressava um vaguear (alê, aláomai) ao modo de quem anda errante, sem saber exatamente (o caminho) para onde ir, a ponto de (digamos), por causa dessa falta de rumo ou mapa, experimentar até mesmo uma situação de "transtorno" ou desorientação mental (alê). Com efeito, quem vagueava, do fato de não saber para onde ir na descoberta do desconhecido, por suposto só poderia ser alguém que se dispunha a construir o próprio caminho caminhando nele; alguém que, no caso específico do filósofo, por ter rompido com as aparências, saía em busca do que não se vê, do oculto, do em si mesmo excelso <tò theîon>, mas passível de ser desvelado. 

Para além de um sentido etimológico, alêtheia adquiriu, logo nos primórdios do filosofar, um decisivo significado: o de que, assim como o que é ou a coisa real era em si mesma verdadeira, o logos (pensamento e discurso) também deveria sê-lo. Ora, visto que Heráclito e Parmênides vincularam ao logos o pensamento e o discurso, que atribuíram ao filósofo a tarefa de congregar numa só unidade (num kósmos significante) o ser, o dizer e o pensar, a alêtheia veio a expressar (por força dessa vinculação), em decorrência e para além do que se mostra (nos termos do que é), o que pode ser enunciado <phrazô>. 

Em outras palavras, o filósofo, mediante o seu logos, ao verbalizar o que existe, deveria fazer conter ou manifestar (dar à luz) a a-lêtheia, ou seja, fazer ver o que não se vê, mais precisamente o invisível que se oculta para além do que se vê. 

Foi, pois, em dependência desse modo de pensar que a alêtheia veio a designar duas coisas: a) o ser verdadeiro, ou seja, o "objeto" (empiricamente considerado), o ser ou a coisa existente de fato — em cujo sentido, verdadeiro <alêthês, alêthinós> condiz com o que é real <ón, óntos>, em oposição ao que é imaginário ou fantástico. É nesse sentido, por exemplo, que Demócrito denominava o verdadeiro <alêthés> de real <tò eteón> —, de cujo substantivo (segundo comentário de Galeno), ele forjou o termo realidade <eteêi>;56 b) o ser verdadeiro expresso (manifesto, dito, revelado) pelo logos — em cujo sentido a verdade é o que condiz com o noêma: com aquilo que o enunciado expressa ou o que o logos (palavra ou discurso) racionalmente deve conter ("trazer à fala <oúte phrásais>").57 Pois, como disse também Heráclito, "a sabedoria consiste em dizer a verdade <sophíê alêthéa légein>".58 E se consiste, então significa que a verdade é algo que se diz, ou melhor, que o logos, na medida em que a recolhe <légein> é o lugar da verdade. Nele, sabedoria e verdade coincidem, ao modo assim como disse Demócrito: "só uma coisa é verdadeira: o que é examinado pela razão".59
 
Parmênides em particular observou que o logos, a fim de tornar-se verdadeiro, deveria atender a pelo menos três condições: 1ª) que resultasse num kósmos (numa ordem) de palavras proferidas <kósmon emôn epéôn>,60 porém, dignas de serem ouvidas <kósmon akúôn>;61 2ª) que manifestasse inerente ao dizer <tò légein> e ao pensar <te noeîn>, o ser <tò eón>, condição indispensável a fim de que o noêma (o pensamento nominal ou verbalmente expresso) condissesse com a verdade <nóêma amphis alêtheíês>;62 3ª) que fosse capaz de conter uma convicção vigorosa <pístios ischýs>, qual seja, a força persuasiva requerida pelo saber e pela razão.63 Pois, sem compromisso com a verdade <pístis alêthês>,64 o logos não será jamais convincente <pistòn lógon>.65
 
Eis aí, portanto, as três condições, segundo Parmênides, que fazem com que o discurso venha a ser valioso, autêntico e verdadeiro (por suposto, filosófico). São elas, com efeito, que elevam o logos à condição de ciência, tornando-o comunicável e disponível ao aprendizado (meio através do qual se veicula e promove a convicção). O logos, no entanto (e nesse ponto Parmênides coincide com Heráclito), só é capaz de provocar a convicção se percorrer o caminho da verdade <alêtheíê gár opedeî>.66 Sob qualquer circunstância, se quiser ser filosófico, da verdade o logos não poderá escapar. Necessariamente deverá contê-la, senão deixa de ser válido, perde a eficácia de sua comunicação. A palavra perde a força evocativa e a sua capacidade de nomeação: de recolher (do que é) o que só o pensamento é capaz de manifestar. 

A verdade é o caminho <alêthês éstin hodós>67 —, eis o postulado fundamental de Parmênides. 

Este, segundo ele, é o modo de veiculá-la: é necessário que aquele que diz ou enuncia algo a respeito de alguma coisa intencione o seu dizer (o seu logos), que inserira nele o seu pensamento ou razão, a fim de que aquele que ouve, do qual também se exige atenção racional, seja capaz de compreendê-lo, isto é, de apropriar-se ou de acatar o pensamento (a respeito de algo ou de alguma coisa) que o logos promove. Daí por que a validade da comunicação noética não pode ser tão somente subjetiva; tampouco a verdade pode restringir-se ao meramente nominal <ónoma alêthê>.68 

A mensagem que o logos veicula deve vir dotada do que é inteligível (real, objetivo), para todos igualmente verdadeira. Caso contrário, sem esse compromisso (mesmo em se tratando de questões subjetivas, particulares), o logos deixa de dizer, veicula somente palavras retóricas, e não filosóficas. Não sendo filosófico, o logos não será edificante: não produzirá naquele que profere, tampouco em quem ouve, qualquer mudança, nem crise, nem insatisfação. Quer dizer, se um logos não promove qualquer mudança, e se nem sequer é provocativo, então será infértil, nada despertará, e, por consequência, quem profere e quem ouve continuarão sempre os mesmos, imutáveis (como que dormindo), sem renascer na própria ignorância. E se é assim, ou seja, se não há crise, nem insatisfação e nem provocação, por certo não haverá igualmente educação filosófica. 

2.3 Em conclusão, do fato de os filósofos antigos darem préstimo ao modo humano sensível de perceber (de identificar, de reconhecer ou de individuar) o que é, não significa que atribuíssem ao sensível valor irrestrito no procedimento humano de conhecer. Aliás, como já se salientou, nenhum filósofo foi tão insensato a ponto de admitir que o conhecimento humano (o identificar, reconhecer, discernir, etc.) se dá diretamente pela vista, ou pelo ouvido, ou pelo tato, ou pelo olfato, ou pelo palato; em contrapartida, ninguém foi igualmente insensato a ponto de teorizar que o conhecimento humano (o identificar, etc.) nada tem a ver com os sentidos, ou a ponto de dizer que o melhor dos sábios teria de ser cego, surdo, ou em tudo insensível. Ora, se assim fosse, ou seja, se fossemos totalmente desprovidos dos sentidos, o que haveria de ser da razão humana? Uma coisa é certa, na falta do pressuposto empírico (de objetos ou fenômenos que se põem ao alcance de nosso horizonte perceptivo) teríamos muita dificuldade de conhecer. Por certo não convirá à razão humana inventar o ser, tampouco dar ser (status de realidade) ao que não tem ser. 

A empiria é indispensável ao processo cognoscitivo, porém, insuficiente. Com efeito, as "amarras" dos sentidos não são assim tão reforçadas, a ponto de a razão humana ser deles totalmente prisioneira. Ela é capaz de se libertar. Mas além de indispensáveis, os sentidos são em si mesmos extraordinários; no entanto (como disse Anaxágoras), "instáveis", razão pela qual não nos permitem "discernir a verdade <krínei talêthés>", ou seja, colocar em crise a suposta verdade que, pelos sentidos, somos corriqueiramente levados a, de pronto, admitir.69
 
Se, porém, dos sentidos não podemos nos valer irrestritamente, deles tampouco podemos nos descartar. Eles têm sobre nós uma influência poderosa, e deles carecemos necessariamente. Juntos (o sensível e o inteligível), constituem-se na nossa própria condição humana. Sem o sensível, o intelecto, por exemplo, não despertaria, tampouco teria parâmetros, de modo que se perderia no universo da conjetura, ou mesmo do imaginário e da fantasia. Nada com segurança saberíamos sem eles. São eles, em última instância, que dão vigor às nossas convicções. A falta de convicção <apistíni> ou falta de persuasão, como disseram Heráclito e Empédocles, decorre da carência do pressuposto empírico. 

Os sentidos também nos proporcionam prazer e nos ativam na busca da felicidade. Sem o gozo e estímulo das sensações (acuados pelo intelecto), teríamos dificuldades em realizar inúmeras coisas, quer referidas à autoconservação e procriação, quer ao desejo de conhecer tudo o que nos afeta e, até mesmo, de ser melhores. São os sentidos que estimulam em nós, a partir da percepção do múltiplo, a ideia noética do um, a partir da variedade a escolha, dos impulsos a deliberação, etc. Inclusive, a base fundante do arbítrio (do fazer ou deixar de fazer) não é estimulada primariamente pela ideia (noética) do bem e do mal moral, e sim pela percepção (sensível) do bem e do mal empíricos, em decorrência das afecções, do seguinte modo: o que nos faz bem (é útil, bom, proveitoso, ou satisfaz) nos estimula a repetir (a fazer de novo), enquanto o que é mau (nocivo, pernicioso, desagradável) nos leva a recuar.

Muitas de nossas escolhas são feitas em função da textura e de outros fatores sensíveis: da cor, do odor, da beleza, etc. 

Todavia, mesmo que os nossos sentidos não nos sirvam como critério de verdade e como órgãos de deliberação (de representação de leis e de fins), são eles, no entanto, que atiçam a nossa razão: promovem o desejo da deliberação (pressuposto do ordenamento social e do agir ético) e da busca da verdade (pressuposto do conhecimento ou ciência). No afazer cognoscitivo, são como janelas através das quais nos comunicamos com o Mundo, frente ao qual o nosso intelecto se vê solicitado (desperto) a investigar para além das aparências — o que é oculto, invisível.
Nesse domínio, no do invisível (tal como alertou Alcmeão), "só os deuses <theoí> detêm um conhecimento certo; a nós, humanos, só conjeturar <tekmaíresthai> é permitido".70 

Ora, conjeturar <tekmaírô> (em decorrência da expressão de Alcmeão) significa atribuir (determinar ou fixar) ao desconhecido sinais ou marcas de reconhecimento. Antes, com efeito, é preciso lembrar que o desconhecido não diz respeito exclusivamente ao que não vemos, e sim ao que vemos, ao que, mais precisamente (mesmo vendo, ouvindo, degustando, etc.), não sabemos com precisão o que é, a não ser nomeando-o: atribuindo-lhe signos prévios de reconhecimento. Mas uma coisa é instituir (por "convenção <nómisma>, ou por costume" — essa expressão remonta a Demócrito) que o doce é doce, ou que o fogo queima, e assim para os demais perceptos; outra, mais complexa, consiste em explicar por que o doce é doce, ou por que o fogo queima, etc. O processo, porém, em qualquer circunstância, mantém-se sempre o mesmo, e seu primeiro passo consiste em nomear (expressar em noêma, ou seja, mediante um signo de reconhecimento) as afecções perceptíveis. Quer dizer, é aduzido pelo noêma (mediante ideias, noções ou conceitos) que o desconhecido (o que é tido como invisível ou oculto) "adquire" ser, ou seja, vem a ser reconhecido (noética e nominalmente) como algo verdadeiro. 

Daí que se impõe a grande dificuldade no affaire cognoscitivo humano: na medida em que atribuímos status de realidade ao desconhecido, corremos o risco de inventar o real, independentemente do ser; corremos o risco de dar ser (existência concreta) ao que não tem ser, ao que, sendo tão somente um pressuposto ou conceito, referido a dimensões não empíricas (por exemplo, o bem supremo, ou a alma, etc.), tem uma função meramente explicativa. 

Corremos igualmente o risco de supor ver o que não vemos, que só a "convenção" nos faz ver. 

Supomos, por exemplo, ver uma árvore, ou um toco, ou uma madeira, porém, na verdade, os nossos olhos não veem nada disso, a não ser formas e cores. Árvore, toco, etc. são noêmas atribuídos àquilo que, em dependência do que vemos (dos fenômenos), convencionamos nomear de árvore ou toco e tomamos como sendo a coisa mesma (em si). Daí por que os fenômenos <phainómena> são a principal fonte de nossos acertos e de nossos enganos. Eles cercam-nos de todos os lados, provocam-nos de diferentes maneiras e ativam a nossa inteligência a trilhar a senda do desconhecido. Mas, enfim, se deles não temos como fugir, então é sábio tê-los por aliados. Temos que, com eles (como disse Epicuro), cingir-nos, e bem, a fim de podermos "fazer indução a respeito do que nos é invisível".71

Miguel Spinelli
Professor de História da Filosofia Antiga do Departamento de Filosofia da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). migspinelli@yahoo.com.br

 Fonte:
SciELO - Scientific Electronic Library Online
http://www.scielo.br/scielo
Artigo recebido em mar. 2007 e aprovado em 2 set. 2008.
Sejam felizes todos os seres. 
Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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