Estudo de “A Idéia da Fenomenologia” de Edmund Husserl.
Por Marcos Paulo L. Vieira.
No singelo evocar desse nome uma radiosa e venerável tradição pede a palavra. Em Husserl a tradição filosófica ocidental fala, mais uma vez, a sua palavra.O presente texto apresenta-se como um esforço de escutar essa palavra e preserva-la através de uma compreensão das três primeiras lições da obra Husserliana “A Idéia da Fenomenologia.”. Em todas essas lições uma única e fundamental questão ressoa , qual seja : como é possível , em geral , o conhecimento ? Atentos pois a esta questão motora , procuraremos nos mover por estas lições ,que intentam em sua motivação primordial fundar a Fenomenologia.
Passemos, pois, às lições . Na primeira delas Husserl procura efetuar uma distinção radical entre o que seria o pensamento natural e o pensamento filosófico . Uma semelhante distinção é fundamental por um motivo na verdade muito simples: é preciso atribuir previamente a quem de direito cabe a pergunta pela essência do conhecimento e sua possibilidade, pois que como nos diz o próprio Husserl em sua primeira lição:
“A atitude espiritual natural não se preocupa ainda com a crítica do conhecimento . Na atitude espiritual natural viramo-nos , intuitiva e intelectualmente para as coisas que , em cada caso, nos estão dadas obviamente.” 1
“Seguindo os motivos da experiência , inferimos o não experimentado a partir do diretamente experimentado ( do percepcionado e do recordado) ; generalizamos , e logo de novo transferimos o conhecimento universal para as coisas singulares ou deduzimos , no pensamento analítico , novas generalidades a partir de conhecimentos universais.”2
É, pois, do interior de uma profunda e fundamental carência de resposta para o enigma da essência do conhecimento que desponta uma atitude espiritual propriamente filosófica . Neste ponto, a obviedade em face da natureza do conhecimento que a atitude natural encarnava é dissolvida e cede lugar então a uma necessidade intrínseca de investigar. Assim sendo, é precisamente do interior de uma semelhante carência fundamental que surge a questão : como pode o conhecimento , à medida que a cada momento é sempre uma vivência subjetiva , atingir e [1]alcançar cognocitivamente um ente que está totalmente para além , transcendente ontológica e fisicamente, daquela vivência que intenta conhecer ?
De que forma o conhecedor pode entrar em consonância com aquilo que almeja conhecer se uma diferença abismal subsiste entre os dois ?
No seio,portanto, de uma tal questão começa a se desenhar o perfil da tarefa fenomenológica propriamente . A sua tarefa mobiliza, mais uma vez, no sentido de uma crítica da razão que deseja conhecer e inquirir pela essência do conhecimento.
Para realizar com satisfação plena uma tal tarefa , a filosofia , na forma da fenomenologia , precisa construir para si mesma bases integralmente novas . Nenhum recurso, portanto, das ciências naturais pode aqui ser assomado . Essa proibição encontra a sua justiça numa razão que, em verdade, já foi apresentada , qual seja : as ciências naturais não vêem o caráter enigmático da possibilidade e da essência do conhecimento . Sendo assim, à medida que tem por tarefa uma elucidação efetiva da essência do conhecimento, da essência do modo de constituição da objetalidade conhecida , a fenomenologia encontra-se solitária – e tem de encontrar-se neste estado- para a edificação de fundamentos inteiramente outros e novos nos quais precisa se estabilizar.
Nesse sentido, a consecução dessa tarefa – à medida que a fenomenologia se entende como sendo uma atitude intelectual especificamente filosófica e um método especificamente filosófico – , depende de a fenomenologia situar-se em bases totalmente novas. E tudo isso sempre a partir do caráter enigmático da essência de todo conhecimento . Enigma que, por si mesmo, constrange para que surja a questão da possibilidade do conhecimento, ou mais precisamente: de como ele pode atingir uma objetividade que é em si o que é – para além, inicialmente, de qualquer compreensão ou incompreensão humanas.
O primeiro passo, pois, para uma crítica coerente e radical do conhecimento – Husserl nos mostra a partir da segunda lição – se revela em um questionamento integral da efetividade. Isso quer dizer aqui que o mundo, a natureza física e psíquica, o homem e todo a entidade, bem como todas as ciências naturais que se referem a estes entes estão , a partir de agora , sob questão. Esta dúvida total, essa suspensão radical de todo saber referente a entidade do ente remete e toma por exemplo a dúvida hiperbólica que Descartes opera em suas Meditações Metafísicas.
O caminho cartesiano é-nos,suponho eu, bem conhecido e será o mesmo que Husserl procurará trilhar. Pois que, mesmo que e ainda que eu duvide de tudo da maneira a mais radical que me for possível , é-me inteiramente impossível duvidar que sou à medida que duvido. E isto, como é bem sabido, vale para todos os atos do cogito, para todas as cogitationes . Husserl nos apóia em mais um ponto quando afirma consoante a nós:
“Sempre que percepciono, represento, julgo, raciocino , seja qual for a certeza ou incerteza , a objetalidade ou a inexistência de objeto destes atos, é absolutamente claro e certo , em relação à percepção , que percepciono isto e aquilo e , relativamente ao juízo , que julgo isto e aquilo.” 3
No que diz, portanto, respeito à percepção : pouco importa se o que eu percebo é , inicialmente , verdadeiro ou falso , mas o que importa é a verdade , clareza e distinção da minha percepção . Em outras palavras, o que importa aqui é sobretudo uma coisa : eu percebo. O “eu percebo” constitui aqui uma medida definitiva , um fundamento a partir do qual a mobilidade da investigação poderá conquistar segurança,chão, solo.
O ”eu percebo” é então uma intuição imanente que tem como garantias de si mesma a sua própria clareza e a sua própria distinção. Não podemos, como Husserl nos ensina , ao passo que colocamos radicalmente em questão tudo o que transcende a experiência intuitiva e imanente do “eu percebo” tentar resgatar nenhuma transcendentalidade exterior . Não podemos sequer inquirir o que é percebido no “eu percebo” visto que o percebido enquanto um possível objeto transcendente já fora banido pela dúvida total , por aquilo que Husserl denominou de a redução fenomenológica .
À medida, portanto, que a fenomenologia pretende elucidar e clarificar a essência do conhecimento e a pretensão de validade pertencente a uma tal essência , ela precisa seguir passo a passo e contentar-se inicialmente com a verdade intuitiva imanente : “eu percebo”.
Temos então que, a nossa redução fenomenológica , o nosso pôr em dúvida radical a estabilidade ontológica do mundo nos proíbe de admitir a existência de qualquer coisa que transcenda os atos do cogito, as cogitationes. Porque tomamos o ato da percepção como o ato paradigmático para a nossa exposição, tal como o faz Husserl toda e qualquer movimentação argumentativa ulterior deverá se fundar no dado absoluto intuitivo imanente : “eu percebo”. Apesar disso, porém, continuamos apartados do mundo que colocamos em questão. Chegar mesmo até ele para compreendê-lo – transcender o âmbito puro de um “eu percebo” para descobrir como é possível conhecer o mundo propriamente - continua um enigma para nós .
Com estas considerações adentramos no elemento da terceira lição . Cumpre que se compreenda uma coisa : nesta altura da exposição husserliana não importa saber se o transcendente é real ou não , mas como podemos conhecê-lo. Temos, por outro lado, como livre de dúvidas a esfera de dados imanentes absolutos que são as cogitationes : penso, vejo, percebo puros. É justamente no elemento destas cogitationes puras, nos ensina Husserl, que a auto-presentação de algo puramente intuído pode se dar , isto é , é no âmbito de um perceber puro que um fenômeno puro pode , com força ainda maior, se apresentar. O fenômeno puro se apresentaria então para uma percepção pura absoluta . É o próprio Husserl quem, uma vez mais , traz o esclarecimento :
“A fim de obter o fenômeno puro , teria então de pôr novamente em questão o eu , e também o tempo, o mundo ,e trazer assim à luz um fenômeno puro , a pura cogitatio. Mas posso também , ao percepcionar , dirigir o olhar , intuindo-a puramente , para a percepção para ela própria tal como aí está , e omitir a referência ao eu ou dela abstrair : então , a percepção visualmente assim captada e delimitada é uma percepção absoluta , privada de toda transcendência , dada como fenômeno puro no sentido da fenomenologia”. 4
“Não devia haver uma percepção intuitiva de outros dados como dados absolutos , por exemplo , de universalidades ; de tal modo que um universal chegasse intuitivamente a dado evidente por si ?” 5
Com este breve escrito acreditamos ter nos aproximado compreensivamente daquilo que as três lições iniciais do texto “A Idéia da Fenomenologia.” expôs em seu desenvolvimento.
Bibliografia
HUSSERL, Edmund. - A Idéia da Fenolmenologia .Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70,s
Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
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