A fenomenologia de Edmund HUSSERL, por Bochenski
EDMUND HUSSERL
por J. M. Bochenski
Tradução de Antônio Pinto de Carvalhopor J. M. Bochenski
in A filosofia contemporânea ocidental, Herder, 1968
A. EVOLUÇÃO E IMPORTÂNCIA DE SEU PENSAMENTO.
EDMUND HUSSERL(1859-1938) que, juntamente com BERGSON, exerceu e continua ainda exercendoa influência mais profunda e duradoura sobre o pensamento contémporâneo,foi discípulo de BRENTANO. Estudou também com o psicólogo CARLSTUMPF (1848-1936). Desenvolveu sua atividade acadêmica nas universidadesde Halle, Goettingen e Friburgo de Brisgóvia. Trabalhador infatigável,aliava uma extraordinária capacidade de análise a uma rara penetraçãode espírito. Sua obra, muito extensa, é de leitura extremamente difícil,não por deficiências de linguagem, senão por causa da aridezdo assunto. Como escritor de filosofia, é modelo de precisão e, nesteparticular, faz recordar ARISTÓTELES . Quanto ao seu sistema, depende,em parte, de BRENTANO e de STUMPF e, indiretamente, através do primeiro,da escolástica. Nota-se, outrossim, nele, uma certa influência neokantiana.
Globalmente considerados o caminho seguido pelo pensamentode HUSSERL, pode resumir-se da seguinte maneira: partindo do estudo filosóficoda matemática, desenvolve primeiramente um método objetivista e intelectuale, na aplicação deste método à consciência, desembocano idealismo.
A influencia de HUSSERL opera em várias direções. Em primeirolugar, as penetrantes análises de suas Investigações lógicasrepresentam sério golpe no positivismo e no nominalismo, que imperavamno século XIX. Ao mesmo tempo, seu método, que sublinha o conteúdoe a essência do objeto, contribuiu poderosamente para a elaboraçãode um pensamento antikantiano. Sob este aspecto, é um dos grandes pioneirosda nova filosofia.
Por outro lado, criou um método, denominado fenomenológico,aplicado hoje em dia por grande parte dos filósofos. Além disso, seus trabalhoscontém tamanha quantidade de análises sutilíssimas e penetrantes queparece ser mais que duvidoso que esta multidão de conhecimentos tenha sido aplicadae aproveitada em sua totalidade. Tem-se a impressão de que a obra de HUSSERLesteja prestes a se converter numa fonte clássica da filosofia do porvir. HUSSERLfoi o fundador de uma escola muito numerosa e importante. Mas sua influencianão se confina nesta escola, senão que se estende, como dissemos, a toda a filosofiacontémporânea.
É claro que não podemos pretender resumir aqui nem sequer uma só de suas obrasriquíssimas de conteúdo. Com maior razão do que noutros casos, torna-se misterremeter o leitor para o próprio texto, especialmente para as Investigaçõeslógicas. Limitamo-nos a dar uma vista de conjunto muito sumária do métodode HUSSERL, de sua teoria da lógica e do caminho por onde ele chegou ao idealismo.
B. CRÍTICA Do NOMINALISMO. HUSSERL, em suas Investigações lógicas,submeteu à crítica demolidora o nominalismo que, sob o nome de empirismo, depsicologismo, etc., invadia, desde LOCKE e HUME, quase toda a filosofia. Segundoos nominalistas, as leis lógicas seriam generalizações empíricas, e indutivas,comparáveis às leis das ciências da natureza, e o universal seria somente umarepresentação esquemática. HUSSERL mostra que as leis lógicas não são, em si,por forma alguma, regras, que a lógica tampouco é ciência normativa, embora– como aliás todas as ciências teóricas – sirva de base a uma disciplina normativa.De fato, a lei lógica nada. diz sobre o "dever", mas diz alguma coisasobre o "ser".
O principio de contradição, por exemplo, não diz quenão seja possível enunciar duas proposições contraditórias, mas única e simplesmenteque uma e a mesma coisa não pode possuir predicados que se contradigam. Assentesestes princípios, HUSSERL ataca o psicologismo, segundo o qual a lógica seriaum ramo da psicologia. O psicologismo está em erro, sob duplo aspecto: se elefosse verdadeiro, as leis lógicas teriam o mesmo caráter vago que as leis psicológicas,seriam, quando muito, prováveis e pressuporiam a existência de fenômenos psíquicos– o que é absurdo. Pelo que, as leis lógicas pertencem a uma ordem inteiramentediferente: são leis ideais, aprióricas. Em segundo lugar, o psicologismo falseiacompletamente o sentido das leis lógicas.
Com efeito, estas nada têm que vercom o pensamento, o juízo, etc., mas referem-se a algo objetivo. O objeto dalógica não é o juízo concreto de um homem, mas o conteúdo deste juízo, sua significação,que pertence a uma ordem ideal. Finalmente, o fundador da fenomenologia entratambém em conflito com o nominalismo em sua teoria da abstração. Mostra eleque o universal nada tem que ver com uma representação generalizada. O que podemosnos representar, quando apreendemos um termo matemático por exemplo, quase nãotem importância. LOCKE, HUME e seus sucessores, incapazes de compreender objetosideais, hipostasiaram o universal, convertendo-o falsamente em mera imagem.Mas não existe tal coisa. O universal é, na realidade, um objeto de naturezamuito peculiar, um conteúdo ideal universal.
Com a teoria da significação prende-se uma gramática pura,a teoria filosófica da gramática. Neste como em muitos outros domínios,introduziu HUSSERL valiosos enriquecimentos que a lógica matemáticapermite hoje apreciar. Esta deve-lhe, entre outras coisas, a noçãoda categoria semântica (Bedeutungskategorie). Outro aspecto importantee interessante das Investigações lógicas é a doutrinado todo e das partes. É impossível entrar aqui nos pormenores destasteorias, pois, embora elas devessem pertence ao que há de mais valiosona filosofia contemporânea, são demasiado abstratas e, por outrolado, não tiveram a mesma repercurssão que as demais doutrinasde Husserl.
D. O MÉTODO FENOMENOLÓGICO. HUSSERL propõe-se estabelecer umabase segura, liberta de pressuposições, para todas as ciênciase, de modo especial, para a filosofia. A suprema fonte legítima de todasas afirmações racionais é a visão, ou também, comoele se exprime, a consciência doadora originária (das origindrgebende Bewusstsein). Devemos avançar para as próprias coisas.Esta é a regra primeira e fundamental do método fenomenológico.Por “coisas” entenda-se simplesmente o dado, aquilo que vemos ante nossa consciência.Este dado chama-se fenômeno, no sentido de que phainetai,de que aparece diante da consciência. A palavra não significa quealgo desconhecido se encontre detrás do fenómeno. A fenomenologianão se ocupa disso, só visa o dado, sem querer decidir se este dadoé uma realidade ou uma aparência: haja o que houver, a coisa estáaí, é dada.
O método fenomenológico não é dedutivo nem empírico.Consiste em mostrar o que é dado e em esclarecer estedado. Não explica mediante leis nem deduz a partir de princípios,mas considera imediatamente o que está perante a consciência, o objeto.Conseqüentemente, tem uma tendência orientada totalmente para o objetivo.Interessa-lhe imediatamente não o conceito subjetivo, nem uma atividadedo sujeito (se bem que esta atividade possa igualmente tornar-se em objeto dainvestigação), mas aquilo que é sabido, posto em dúvida,amado, odiado, etc. Mesmo nos casos em que se trata de uma representaçãopura, é preciso distinguir entre o imaginar e o imaginado: quando, porexemplo, nos representamos um centauro, este centauro é um objeto que importadistinguir cuidadosamente de nossos atos psíquicos. De igual modo, o tom musical dó, o número 2, a figura círculo, etc., sãoobjetos, não atos psíquicos. Contudo, HUSSERL rejeita o platonismo:este só seria verdadeiro no caso de cada objeto ser uma realidade. HUSSERLqualifica-se a si próprio de “positivista”, enquanto funda o saber sobreo dado.
Mas os positivistas cometem, segundo ele, erros grosseiros, dos quais importaque nos desembaracemos, se quisermos chegar à verdadeira realidade. Elesconfundem o ver em geral com o ver meramente sensível e experimental. Nãocompreendem que cada objeto sensível e individual possui uma essência.Sendo o individual, enquanto real, acidental, ao sentido deste acidental correspondeprecisamente uma essência ou, como diz HUSSERL, um eidos que precisaser captado diretamente. Existem, portanto, duas espécies de ciências:ciências de fatos, ou fácticas, que estribam na experiência sensível,e ciências de essências ou eidéticas, às quais compete aintuição essencial (Wesensschau), a visão doeidos.Mas todas as ciências de fatos se baseiam em ciências de essências,porque, em primeiro lugar, todas utilizam a lógica e em geral tambéma matemática (ciências eidéticas) e, em segundo lugar,cada fato alberga uma essência permanente.
As ciências matemáticas são manifestamente ciências eidéticas.A filosofia fenomenológica pertence à mesma espécie: seu objetoé constituído não por fatos contingentes, mas por conexõesessenciais. É puramente descritiva, e seu método consiste, antesde mais nada, em descrever a essência. Seu processamento é um esclarecimentogradual, que progride de etapa em etapa mediante a intuição intelectualda essência. Ao abordar os fundamentos da ciência ela é “filosofiaprimeira” e procede com uma ausência total de preconceitos. Ao mesmo tempo,é ciência exata e apodíctica. Seu exercício não éfácil; todavia, HUSSERL e seus discípulos mostraram que o métodofenomenológico abre vasto campo a investigações extraordinariamentefecundas.
À redução eidética acrescenta HUSSERL, em suas obrasposteriores, o que ele chama a redução transcendental. Esta consisteem por entre parêntesis não só a existência, senãotudo o que não é correlato da consciência pura. Como resultadodesta última redução, nada mais resta do objeto além doque é dado ao sujeito. Para bem compreender a teoria da reduçãotranscendental, é necessário que examinemos agora a doutrina da intencionalidade,que lhe serve de base.
F- INTENCIONALIDADE. IDEALISMO. A redução transcendental é aaplicação do método fenomenológico ao próprio sujeitoe a seus atos. HUSSERL já tinha afirmado anteriormente que o domínioda fenomenologia precisava ser constituído com diferentes regiõesdo ser. Uma destas regiões do ser, região característica, éa consciência pura. Chega-se a esta consciência pura medianteo muito importante conceito de intencionalidade, que HUSSERL recebeu de BRENTANOe, mediatamente, da escolástica. Entre as vivências sobressaem algumasque possuem a propriedade essencial de ser vivências de um objeto.
Estasvivências recebem o nome de “vivências intencionais” (intentionaleErlebnisse), e na medida em que são consciência (amor, apreciação,etc.) de alguma coisa, diz-se que tem uma “relação intencional” comesta coisa. Aplicando agora a redução fenomenológica a estasvivências intencionais, chegamos, por um lado, a captar a consciênciacomo um puro centro de referência da intencionalidade, ao qual o objetointencional é dado, e, por outro lado, chegamos a um objeto que, depoisda redução, não tem outra existência senão a de serdado intencionalmente a este sujeito. Na própria vivência, considera-seo ato puro, que parece ser, simplesmente, a referência intencional da consciênciapura ao objeto intencional.
Deste modo a fenomenologia se converte na ciência da essência dasvivências puras. A realidade inteira aparece como corrente das vivênciasconcebidas como atos puros. É mister advertir insistentemente que estacorrente nada tem em si de psíquico, que por conseguinte se trata unicamentede puras estruturas ideais; portanto, a consciência pura (que no estadode atualização se chama “cogito“) não é um sujeitoreal, nem seus atos são mais do que relações meramente intencionais,e o objeto não é mais do que um ser dado a este sujeito lógico.HUSSERL opera ainda na corrente das vivências uma distinção entrea hylé (matéria) e a morphé (forma) visada.Chama “noese” àquilo que configura a matéria em vivencias intencionais,e “noema” à multiplicidade dos dados que se podem mostrar na intuiçãopura. No caso de uma árvore, por exemplo, distinguimos o sentido da percepçãoda árvore (seu noema) e o sentido da percepção comotal (noese); de igual modo, distingue-se no juízo o enunciadodo juízo (isto é, a essência dêste enunciado, a noesedo juízo) e o juízo enunciado (o poema do juízo). Este últimopoderia ser denominado “proposição em sentido puramente lógico”,se o noema não contivesse, além de sua forma lógica,uma essência material.
O mais importante em todas estas análises é que nelas fica solidamenteestabelecido o caráter bipolar da vivência intencional: o sujeitoaparece como essencialmente referido ao objeto, e o objeto como essencialmentedado ao sujeito puro. Quando estamos ante a realidade – o que nem sempre éo caso, porque um ato intencional pode apresentar-se sem objeto real – sua existêncianão é, entretanto, necessária para o ser da consciênciapura; por outro lado, o mundo das “coisas” transcendentes depende totalmenteda consciência atual. A realidade é essencialmente privada de autonomia,carece do caráter do absoluto, é somente algo que, em princípio,não é senão intencional, cônscio, algo que aparece.
Deste modo, a filosofia de HUSSERL desemboca num idealismo transcendental que,em muitos aspectos, se assemelha ao dos neokantianos. A diferença entreele e a escola de Marburgo consiste essencialmente em que HUSSERL não reduzo objeto a leis formais e admite uma pluralidade de sujeitos aparentemente existentes.Contudo, sua escola não o seguiu no terreno deste idealismo
Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
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