quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

EMILIA - Marcus Quintaes e Amnéris Maroni




Emília
A Ousadia de uma boneca sem papas na língua

                                
Marcus Quintaes
“ Mas, afinal de contas, Emília, o que você é? Perguntou o Visconde .

 Emília levantou para o ar aquele implicante narizinho de retrós e respondeu; - Sou a Independência ou Morte!

  E Continua: 

  “ Nasci no ano de ... ( três estrelinhas), 
na cidade de .... ( três estrelinhas) 
filha de gente desarranjada ...


Quando o Visconde de Sabugosa , escritor compulsório das memórias da boneca, lhe pergunta: Por que tanta estrelinha? Será que quer ocultar a idade? Emília responde sem titubear e, como sempre, sem papas na língua: “Não. Isso é apenas para atrapalhar os futuros historiadores, gente muito mexeriqueira..”

Memórias da Emília
Esta é Emília, uma boneca de pano de quarenta centímetros costurada pelas mãos   Tia Anastácia, e “que evoluiu e virou gente”. 

Emília nasceu boneca de pano, de trapo e macela, e ficou sendo a companheira preferida de Narizinho. Narizinho é o apelido de Lúcia, neta de Dona Benta, uma simpática senhora de mais de sessenta anos, óculos de ouro na ponta do nariz e dona do famoso Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Emília foi fabricada com retalhos de uma saia velha, olhos de retrós e recheio de macela por Tia Anastácia, gorda senhora negra, cozinheira e espécie de faz de tudo no sítio.

Emília é aquela que protagoniza a grande maioria das obras infantis de Monteiro Lobato e que, possui a incessante capacidade de incendiar a imaginação de todos os seus leitores, adultos e crianças.

No livro “ A menina do narizinho arrebitado”,  O narrador chama a boneca de “Excelentíssima Senhora Dona Emília” e a apresenta  da seguinte forma:
“ .. uma boneca de pano, fabricada pela preta e muito feiosa, a pobre, com seus olhos de retrós preto e as sobrancelhas tão lá em cima que é como  ver uma cara de bruxa.
. mas apesar disso, narizinho quer muito bem a Sra. Dona Emília, vive a conversar com ela , e não se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha armada entre os dois pés da cadeira” 


                                                           “A menina do narizinho arrebitado”


Emília, sem nenhum pudor, 
assume com desembaraço sua feíura 
e a pobreza dos materiais de que é feita:

 “ nasci de uma saia velha da tia anastácia.
 E nasci vazia...
  
Nasci , fui enchida de macela 
e fiquei no mundo feito uma boba, 
de olhos parados como qualquer boneca.
Feia. 

Dizem que fui feita feia que nem uma bruxa.
Meus olhos 
Tia Anastácia os fez de linha preta”

Prestemos atenção as imagens:  O texto aponta “ Narizinho vive a conversar com ela” . Apenas esta menção não faz de Emília, até então, nenhuma boneca especial, afinal, é fato comum, sempre foi e sempre será , as crianças conversarem com seus brinquedos.

 Ao pesquisarmos o imaginário da literatura infantil, percebemos que  Monteiro Lobato não inovou ao fazer de uma boneca personagem, nem ao atribuir-lhe fala e outras características humanas. Este é um tema recorrente no universo literário infantil, ou será que já esquecemos da relação apaixonada e tumultuada entre o menino Calvin e seurso Haroldo nos quadrinhos de  Bill Waterson???

A excepcionalidade de Emília tem dia e hora marcada. Ela começa quando Emília começa a falar de verdade: Deixemos a boneca contar sua história: “ Fiquei falante com uma pílula que o célebre Dr. Caramujo me deu”  

O episódio da conquista da fala é fundamental 
na biografia e no decorrente fascínio que a boneca exerce sobre nós. É pelo exercício da palavra, falada e escrita, é pela aquisição da linguagem que Emília atinge um outro patamar, transformando-se de rélis boneca de trapo e macela- igual a tantos outros comuns brinquedos do cotidiano lúdico infantil- na irresistível, cintilante, inusitada e espevitada criatura a encantar e desconcertar a todos nós, leitores das suas estripulias geniais.

De boneca de pano como nasceu, o percurso da boneca sofre alterações significativas a partir do momento em que aprende a falar graças a uma pílula falante do Dr. Caramujo. Vamos salientar que a solução “pílula” foi sugerida depois de Narizinho recusar, por razões nobres e humanitárias, um transplante de língua de papagaio. 

Imperdível é a consulta da boneca com o médico da corte do Princípe Escamado, Dr. Caramujo, um dos habitantes do Reino das Águas Claras.
“ Veio a boneca. O doutor escolheu uma pílula falante e pôs-lhe na boca – Engula de uma vez! Disse Narizinho ensinando à Emília como se engole pílula. E não faça tanta careta que arrebenta o outro olho.

Emília engoliu a pílula muito bem engolida, e começou a falar no mesmo instante. A primeira coisa que disse foi: Estou com um horrível gosto de sapo na boca. E falou, falou, falou e falou. Falou tanto que Narizinho , atordoada, disse ao Doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir outra mais fraca.
Não  é preciso – explicou o grande médico. Ela que fale até cansar! Depois de algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente .
Isso é fala recolhida que tem de ser botada para fora.

E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se”
 Calou-se? Pergunto eu? Calou-se nada. Daí para frente Emília será sempre uma falante de língua afiadíssima e sem papas na língua.
Aqui lanço uma pergunta: Como, sendo analistas, podemos nos debruçar sobre esta pérola literária descrita por Lobato e não nos deixarmos ser arrebatados por ela?

Pois é somente como analista que posso reconhecer  o trabalho do Dr. Caramujo como o trabalho de um analista. Sim, esta é a minha proposta, Dr. Caramujo como imagem de uma analista trabalhando a favor da fala. Libertando a fala de seu silêncio neurótico.
E como Dr. Caramujo opera esta proposta? Com sua indicação de uma pílula falante. 

Palavras e pílulas, pílulas e palavras. 
Pílulas que matam as  palavras 
e pílulas que libertam as palavras.


Em tempos atuais de circulação excessiva de pílulas como  Prozac, Ritalina, Viagra, Rivotril, Zoloft, pílulas estas que nos conduzem para a nova mitologia dominante sobre o universo psíquico: a mitologia do cérebro com suas dopaminas, serotoninas, neurotransmissores, sinapses, desequilíbrios químicos, enfim  a criação do  homem neuronal, modelo onde as palavras sucumem à força das pílulas, reencontrar a sabedoria e proposição ética do Dr. Caramujo se faz um alívio.


Esta é a indicação de Dr. Caramujo para Emília: Falar até cansar. Fazer uso do verbo, apropriar-se da linguagem liberta a imaginação contida nas palavras. Não é isto senão o que Freud chamou de  método da associação livre?
Não é este o convite que todo analista faz a seu paciente: falar até cansar?
Não seria o espaço analítico o lugar privilegiado para a possibilidade de manifestação daquilo que Dr. Caramujo diagnostica como “fala recolhida”? 

Proponho imaginar que uma análise se inicia quando um paciente consegue encontrar um analista como  Dr. Caramujo, que o instiga a ir atrás, produzir, imaginar ou criar modos de dar existência às suas “falas recolhidas”.


Porém, não esqueçamos um detalhe. Outra absoluta preciosidade apontada por Narizinho: Não se trata apenas de falar, fala comum e ordinária, pois se este fosse o caso, o transplante de língua de papagaio para isto serviria.
Não se trata de falar com ou como língua de papagaio. Afinal, para onde nos aponta esta imagem “língua de papagaio”?  Repetição, imitação, cópia, eco, previsibilidade, recorrência do mesmo. 

Repetir a fala do outro, usar o discurso do outro ao invés da criação do meu discurso, indiscriminação, serei eu um papagaio do outro? 

Haverá individuação numa língua de papagaio?

 Imaginemos , então, um princípio teórico que possa vir a nortear uma clínica do analista Dr. Caramujo: Do sujeito imerso na língua de papagaio, ao encontro/convite com a pílula falante proposta pelo analista ( seria a transferência um dos nomes da pílula falante?) a fim do encontro com a fala recolhida.

Retornemos a nossa Emília: a falação , que no diagnóstico do Dr. Caramujo era consequência temporária da fala por tanto tempo recolhida, será a marca singular de Emília, apontada ao longo de toda a obra de Lobato, que a ela se refere como torneirinha de asneiras.

Bendita torneirinha e bendita asneiras! 
 Pois é justamente a capacidade de falar e seu exercício ilimitado a condição essencial para que Emília desempenhe a importante função que é a sua em todas as aventuras do sítio.

É exatamente esta potência contida na “torneirinha de asneiras” que Emília simboliza que confere e adiciona vida e realismo mágico a paisagem convencional do sítio do Pica-Pau amarelo. Não há espaço do sítio que não carregue as marcas de Emília. É esta a grande diferença encarnada por Emília, ser uma boneca falante, cuja fala possui uma lógica implacável e sem papas na língua, que se alterna com um surrealismo cheio de non-senses e de trocadilhos. 

Emília fala, sabe falar e pela fala convence
 os outros de seus pontos de vista, o que faz dela ponto de partida das principais aventuras narradas nas histórias. 


Emília é o princípio da imaginação, 
onde nos mostra que imaginação é realidade. 

 As atitudes e as travessuras de Emília tem como função cancelar as fronteiras entre o fictício e o real, o metafórico e o literal, o verídico e o imaginativo. Emília encarna aquilo que James Hillman denomina como uma das atividades da Alma: a reanimação das coisas em termos metafóricos onde a metáfora dá sentido e paixão aos objetos inanimados. Emília com seus olhos de retrós, inaugura uma perspectiva metafórica que revê os fenômenos do mundo como imagens, possíveis de encontrar sentido e paixão onde a mentalidade cartesiana vê, simplesmente, a mera extensão de objetos desalmados e inanimados. 

Émília é o nome dessa possibilidade imaginativa 
que não se restringe ou sequer se conforma 
com aquilo que denominamos princípio de realidade.

  Ela o subverte e busca ampliar-se para além dos seus domínios.Não é à toa que Emília é aquela que melhor faz uso da mais famosa invenção do engenhoso Visconde de Sabugosa: O famoso Pó de Pirlimpimpim!

O Pó de Pirlimpimpim possuia efeitos mágicos
que possibilitavam que todos os personagens se transportassem no tempo e no espaço, ou permitia que os mesmos adquirissem a capacidade de ver ou sentir coisas de “outros”mundos . 

Quando cheiram o pó, todos sentem a vista turva, a cabeça tonta e são transportados para destinos fantásticos. Lembremos do episódio onde Emília, Narizinho e Pedrinho convencem Tia Anastácia a cheirar o pó de Pirlimpimpim dizendo que se tratava de um simples e puro rapé. O desfecho da estória revela a incrível força do pó: Tia anastácia vai parar na lua fazendo bolinhos para lanchar com São Jorge.!

Curioso lembrar que o famoso Pó de Pirlimpimpim
 foi considerado ofensivo pelos censores do regime de 64 e teve de ser proscrito da TV na época.O Pó de Pirlimpimpim torna possível o passeio a outros universos além do Reino das Águas Claras. 

Ele é o elo de ligação entre o real e  a fantasia que permite transportar-se para outros tempos e espaços em aventuras que dialogam com a mitologia grega, com o desejo ancestral de exploração do espaço sideral,ou com famosos personagens literários como Dom Quixote e Peter Pan

Cheirar o Pó de Pirlimpimpim se assemelha a atravessar o espelho
como ocorre com Alice nos País das Maravilhas: atravessamento do campo das aparências, cancelamento das fronteiras do ego, desterritorialização da consciência, sucumbir ao rumo errante da imaginação, a  possibilidade de ser  outro em si mesmo. 

Não é esta a experiência do inconsciente? Desindentificação com a Persona, atravessamento do Narcisismo, abrir-se para outras “terras” e “reinos” ainda pouco íntimos de cada um, dialogar com as figuras da imaginação ou as figuras do outro que nos habitam?

É Peter Pan que introduz as crianças no Reino das Maravilhas, transportando-a através do pó:    

  “ O reino das maravilhas está em toda parte... velhíssimo.
Começou a existir quando nasceu a primeira criança 
e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra.     
É facil de ir lá, perguntou Pedrinho? 
 Facílimo ou impossível. Depende. 
Para quem possui imaginação é facílimo”
                                  

    “Reinações de Narizinho"
                                                                            
Aqui, somos fiéis ao métdo junguiano da circumambulação: andar ao redor da imagem, traçar paralelos, buscar associações, encontrar semelhanças, tudo em torno da imagem a fim de como Hillman diz, aumentar o volume da imagem.

E, se nossa imagem é Emília, aumentemos o volume!

Ao contrário de todos os outros personagens lobatianos, que se mantém estável ao longo de todos os títulos da série do Sítio do Pica-pau amarelo, Emília ao exercer sua capacidade de fala de modo inventivo, crítico e irônico, ganha uma crescente trajetória de independência em relação aos demais.
Neste percurso, Emília é aquela que questiona o inquestionável, abusa frente as verdades estabelecidas, inaugura novos pontos de vista, desafia normas, condutas e padrões vigentes. 

 Para muitos críticos, Emília é interpretada como sendo porta-Voz de Monteiro Lobato, também ele um intelectual crítico e participante das principais discussões políticas e culturais da primeira metade do séculoXX.. Um crítico feroz e arguto, e assim como a boneca , que expressava suas posições sem medo e nem papas na língua.

Se faz importante aqui falar um pouco mais da relação entre Lobato e Emília e até lançar a pergunta: Afinal quem é autor? quem é personagem?  
Quem é criador, quem é criatura?

É Narizinho que nos dá uma pista desse enigma: 

“ Exigente! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília, de tanto o Lobato contar suas asneiras. Ele é um enjoado muito grande. Parece que gosta mais de você  do que de nós – conta tudo de jeito que as crianças acabam gostando mais de você do que de nós. É só Emília prá cá, Emília prá lá, porque a Emília disse, porque a Emília aconteceu. Fedorenta!”
                                                  “D.Quixote das crianças”

 Uma personagem com ciúmes de outra personagem? Reclamando da preferência do autor/escritor sobre um em detrimento dos demais? 

Quem é o personagem? Quem é o autor?

Monteiro Lobato conta que, muitas, vezes ria sozinho ao escrever, das asneiras que colocava na boca da boneca. Emília tem a mesma independência de personalidade e autonomia intelectual que caracterizavam o escritor, mas também possuia uma esperteza e um jeitinho brasileiro que em nada se assemelhavam a Lobato.   O poder de Emília origina-se nas suas idéias ( idéias de Emília e não de Lobato) , frequentemente classificadas como “asneiras” pelos outros personagens e pelo próprio escritor, e da coragem de passar ao empreendimento e a ação.

Sobre Emília, Lobato comenta:
 “  ela começou como uma feia boneca de pano, dessas que nas quitandas do interior custavam 200 réis. Mas, rapidamente foi evoluindo e adquirindo tanta independência que.. quando lhe perguntaram “mas o que você é, afinal de contas, Emília? Ela respondeu de queixinho empinado: sou a independência ou morte! E é tão independente que nem eu, seu pai, consigo domá-la. (...) fez de mim um “aparelho” , como se diz em linguagem espírita (..)    

É Emília hoje que me governa, em vez de ser por mim ouvido              
                         “A barca de Gleyre.M.L”

 Monteiro Lobato se assemelha neste depoimento a algo que Jung descreve em seu texto “A relação da psicologia analítica com a obra de arte poética” como sendo o processo visionário de criação onde o objeto prevalece sobre o sujeito

Neste, o autor deixa-se levar pelo texto e seus desdobramentos, não determina qual efeito ou solução para os conflitos. Para este, a obra traz em si a sua própria forma. Tudo aquilo que gostaria de acrescentar será recusado, o que não gostaria de aceitar lhe será imposto. 

Ao autor, só cabe obedecer e executar, ele está submetido a sua obra, ou, pelo menos, ao lado como uma segunda pessoa que tivesse entrado na esfera de um querer estranho.

Um homem dominado por uma boneca.

Lobato criou Emília ou Emília criou Lobato?

Retornando a Emília, quero apontar três episódios onde a boneca demonstra todo o seu inesgotável repertório de desconstrução daquilo que se insinua naturalmente estabelecido e codificado.

O primeiro é a história do casamento de Emília.
No primeiro livro da série, Emília casa-se com o porco Rabicó, bicho de estimação de Narizinho, que sempre o protegia das investidas de Tia Anastácia , para não virar assado de dia de festa.

Guloso e relaxado, Rabicó, é temporariamente marido de Emília, que concorda em casar-se com ele com o objetivo exclusivo de virar marquesa, já que Narizinho tinha inventado que Rabicó era um príncipe disfarçado que reassumiria sua identidade original quando encontrasse um certo anel mágico. Narizinho caprichou tanto na história , convencendo Emília, a ponto de dizer ser este o motivo pelo qual o porco Rabicó vivia a fuçar a terra com seu imenso focinho, estava ele em busca do anel?

 Emília engole a história. Diz o narrador: Ser princesa era seu sonho dourado e se para ser princesa fosse preciso casar-se com o fogão ou a alata de lixo, ela o faria sem vacilar”
 Assim, o casamento da boneca com o porco é um casamento de interesse, e curiosamente, isto é assumido explicitamente por todos os personagens. 
 Aqui Emília, rompe com a primeira tradição do código: a de que todos devem se casar por amor. Emília não ama Rabicó, Emília ama poder ser Marquesa. 

Se casar não motivada por amor se constitue uma falta grave, o que dirá então do desenlace da história: O casamento não dura nada, termina no mesmo dia de sua realização quando o noivo, para escândalo e indignação de todos, devora apetitosamente a mesa de doces.

Furioso com o porco, Pedrinho conta a Emília o engodo em que caíra com a história que Narizinho havia lhe contado sobre Rabicó ser marquês.
Indignada, Emília não vacila: Poclama em alto e bom som o seu divórcio imediato do marquês.

Antes do episódio Narizinho, chega a comentar com o princípe escamado: Tenho vontade de desmanchar seu casamento com o marquês para casá-la com o gato fé lix, pois não está sendo feliz no primeiro casamento”

 A atitude de Emília escandaliza a igreja católica da época , que primeiro desaconselha e depois proibe a leitura de Lobato em colégios católicos.
A polêmica questão  da indissociabilidade do casamento não é o único comportamento de Emília que escandaliza setores mais conservadores da sociedade brasileira.

 Na história “Viagem ao céu” , um episódio em que Emília se envolve desagrada os mesmos segmentos que já não tinham gostado da ousadia da boneca que se divorciara anteriormente.

Numa viagem a Via Láctea, Emília encontra um anjo de asa quebrada, o traz para o sítio e, com medo que ele fuja, pede para Tia Anastácia cortar a ponta da asa dele, como se fazia para impedir que aves, voando, escapassem do cativeiro.

A imaginação irrefreável de Emíla era demais para o clero brasileiro: um anjinho de asa quebrada e ainda por cima tratado como galinha fujona ou como papagaio de poleiro era muito para certas cabeças católicas, que a partir disto, fizeram grandes fogueiras com a obra de Lobato, imitando de modo triste e vergonhoso terríveis autos de fé da inquisição.
É esta imprevisibilidade e irreverência de Emília que a colocam num lugar diferenciado dentro do nosso imaginário infantil. 

Emília é aquela que através de atitudes novas e ousadas desconstrói e renova símbolos religiosos ou culturais de determinada época. 

Nisto ela cumpre sua função de Trickster como formulada por Jung: .Emília é um Trickester. O arquétipo do Trickster é a um só tempo, humano e não-humano, costuma pregar peças nos outros através dos truques, ardis, da mágica , da sedução e ás vezes da violência.  O trickester é aquele a quem é permitido dizer sob,a forma de bufão, clown, bobo da corte, as verdades em forma de piadas ( asneiras como no caso de Emília?)

Jung escreveu em seu artigo “ A psicologia da figura do Trickster” que este evolui de um indivíduo psiquicamente inconsciente até atingir a categoria de um ser socialmente desenvolvido. Não é este o caso de Emília? De boneca inanimada a , como define, Tia Anastácia, uma boneca que evoluiu e virou gente?

Finalizando, diríamos que se pela fala , Emília transcende sua condição de ser inanimado, ao manter-se boneca, ela goza de uma liberdade muito maior do que a de nós, humanos, dos quais, ela é afinal, um mero simulacro. 

Além de imortal por natureza, bonecas envelhecem mas não morrem, por ser uma criatura híbrida – boneca falante , um indecidível, Emília desfruta do melhor dos dois mundos: o das coisas do mundo e o dos humanos, fecundando um com o ponto de vista do outro, e vice-versa, cancelando as diferenças e apagando as diferenças, num exercício infindável e dialético de dar vertigem a qualquer leitor mal avisado.

 Como dissemos no início, Emília começou como boneca de trapo e macela e , apesar de tornar-se falante, continua boneca, sempre será uma boneca de trapo e macela, o que faz com que se mantenha o impacto que ainda causa hoje, início do século  XXI .

Sabemos que boneca não é gente. Mas o que dizer de uma boneca que, como disse uma espantada Tia Anastácia, “fala mesmo, Sinhá, fala que nem gente!!” .

É esse espanto de Tia Anastácia , criadora da Emília de Pano e Macela, que se renova, de geração em geração, através da leitura das obras de Monteiro Lobato ,formando em cada um de nós , a possibilidade de virmos habitar, com o uso do pó de pirlimpimpim, este lugar encantado chamado Inconsciente, .......quer dizer, Sítio do Pica-Pau amarelo.   

   - Marcus Quintaes       
      
A DIVERGÊNCIA ENTRE
O DISCURSO E A PRÁTICA
 
Amnéris Maroni

A fissura entre o dizer e o fazer permeia toda a sociedade moderna: presente na família, na escola, na política, nas organizações. Ninguém escapa dela e, todavia, por ser sutil, também ninguém reflete sobre ela. Este capítulo -como parte de um todo que se propõe a levantar questões essenciais no plano da responsabilidade social das organizações- tem exatamente o propósito de discutir este auto-engano, à primeira vista superficial, mas, de fato, revelador de uma das engrenagens básicas de nossa cultura.

Dou exemplos: o conhecido “faz-de-conta”, que talvez seja uma das mais significativas, embora não assumida, instituições da sociedade moderna. As escolas fazem de conta que dão cursos relevantes, os alunos, com o reforço de seus familiares e da sociedade em geral, fazem de conta que fizeram cursos relevantes em escolas relevantes; os funcionários fazem de conta que estão trabalhando a serviço dos clientes mesmo que os processos e instrumentos de trabalho que estejam usando dêem ênfase à performance da empresa. Todo mundo hoje em dia parece fazer de conta: eu faço de conta que trabalho, você faz de conta que me paga, eu faço de conta que atendo o meu cliente, o cliente faz de conta que é atendido. E assim por diante. Quando, por ventura, alguém não quer mais brincar de fazer de conta, há uma espécie de curto-circuito do sistema - e sua irracionalidade vem à tona.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa recente que tive com um amigo: ele estava almoçando com as suas duas filhas, em um dia qualquer da semana, quando uma delas perguntou se poderia começar as férias letivas mais cedo “porque as provas já acabaram, eu já passei de ano, os professores não vão dar mais matéria e eu quase não tenho faltas; nada vai acontecer se eu não for mais às aulas”. Esse meu amigo devolveu a pergunta com outra pergunta: “Mas filha... você está indo à escola para passar de ano ou para aprender coisas que você possa usar na sua vida, que possam lhe ajudar mais tarde a expressar a sua natureza?”

Uma bela pergunta, convenhamos; mas pouco usual nos dias de hoje. Alguns dias depois, novamente almoçando, a filha desse meu amigo comenta: “Hoje não teve aula; os professores dispensaram a turma porque a matéria já tinha acabado. Ficamos à toa... enquanto os professores corrigiam provas no horário de aula”. As aulas, portanto, acabaram uma semana antes, ainda que as crianças continuassem a ir à escola... fazendo de conta que estudavam. No retorno das férias das filhas, outra surpresa aguardava o meu pobre amigo: não houve várias aulas e não se deu matéria alguma durante aquela semana porque... bem, porque era a primeira semana de volta às aulas. É esse o espírito da coisa; os exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito.

Outra instituição moderna, também não assumida, que aponta a fissura entre o dizer e o fazer, é o que chamo de “área de foco”: a sociedade moderna, cada vez mais especializada, concentra-nos numa parte minúscula do fazer em qualquer organização e, todavia, somos convidados a falar em nome do Todo. “Posso ajudá-lo?”, “May I help you?” Sim, desde que o que você me peça não fuja das minhas atribuições. Se fugir, você deve procurar o gerente. Gerente, nesses casos, é para isso, para resolver as exceções à melhor conveniência organizacional.

Em outro plano, porém, a área de foco tem uma implicação ainda maior: a fragmentação do propósito da organização. Em outras palavras, quando o foco é estreito não é possível saber se a ação empreendida favorece ou não o propósito do conjunto. Sustento que há especializações nas empresas que nem sempre trabalham em favor das metas do negócio.

Toda essa introdução apenas para dizer que há códigos implícitos, não refletidos, não verbalizados e inconscientemente assumidos nas organizações e que vale a pena trazê-los à tona e lidar um pouco com eles.

Quando por qualquer motivo alguém resiste a esses códigos implícitos, quando alguém sai fora do padrão esperado, surge a possibilidade de reflexão: alguma consciência a respeito da fissura entre o dizer e o fazer pode vir à tona como um problema a ser mais bem equacionado. Em geral, porém, as pessoas aderem a tais códigos implícitos sem nenhuma reflexão, sem nenhuma resistência, mesmo porque são inconscientes. Elas dizem A e fazem B: todo mundo “faz de conta” porque as pessoas não têm consciência, não têm clareza dessa fissura entre a sua fala e a sua ação.

Por que esse problema se põe com tanta volúpia em todas as esferas do social? Talvez porque a velocidade seja uma das marcas mais características das sociedades modernas. O mundo, as relações, os papéis transformam-se incessantemente; o tempo reflexivo necessário para que tais transformações possam ser assimiladas e assumidas conscientemente é quase nenhum. O jeito é aderir ao “politicamente correto”: os pais sabem que é politicamente correto dialogar com os filhos e dizem que assim agem - embora não raro contratem detetives para saber se os seus filhos estão se envolvendo com drogados, desconfiem e rebusquem as suas gavetas.

O professor sindicalizado, atuante e com grande consciência de cidadania sabe que é politicamente correto dialogar com os seus alunos e afirma que assim age; comumente, porém, notas e controle da presença continuam a ser instrumentos eficazes para calar qualquer senão. O político sabe que é politicamente correto agir em nome da ética; a corrupção, entretanto, nunca foi tão expressiva e tão declarada. Mesmo diante de fortes evidências, sempre prevalecem os mecanismos de proteção social erigidos para os que parecem mas não são.

Enfim, a fissura entre o dizer e o fazer, que não faz senão alargar-se perigosamente, explica-se em parte se considerarmos as transformações alucinantes -inclusive no plano das emoções- pelas quais a sociedade está passando. Elas são de toda a ordem, explicitando-se particularmente no plano da política com a ampliação de direitos e de práticas democráticas que impõem determinadas falas e condutas e, todavia, o sujeito é ainda o velho sujeito que reage emocionalmente à “maneira antiga” quando as questões são mais concretas e a ele diretamente relacionadas.

E já que mencionamos isso, vamos pensar um pouco sobre esse processo democrático no nível das organizações. Há duas ou três décadas, a questão da participação democrática passou a rondar o ambiente organizacional e, gradualmente, uma infra-estrutura que a viabilizasse foi sendo construída. Isso se impôs por vários motivos e um deles parece banal: o controle das pessoas através de feitores, supervisores, chefes, gerentes, diretores e vice-presidentes estava caro demais para suportar uma concorrência que cada vez mais se fazia sentir no mercado. No lugar dessa estrutura de controle dispendiosa, foram gradualmente entrando no ambiente organizacional diferentes práticas democráticas. Talvez a que tenha ganho mais notoriedade seja a que ficou conhecida como gerência participativa. 

Mas, para que pudesse haver democracia de fato num ambiente tradicionalmente controlador -e uma democracia traduzida por liberdade de atuação e agilidade-, era necessário construir um eixo central em torno do qual as pessoas se pusessem de acordo e cumprissem a sua parte nos objetivos da organização. Surgiram, então, as definições de missão e os “códigos de conduta”: em outras palavras, a direção, os valores e os princípios que deveriam ser assumidos por todos. Doravante, as pessoas trabalhariam em torno dessas definições e desses códigos de conduta, que passariam a se constituir, com “ares mais democráticos”, nos novos instrumentos de controle.

Todos parecem concordar hoje, nas organizações, que as gestões são bem mais participativas; muitos parecem concordar que as relações são bastante democráticas e que há espaço para criar, inovar, enfim, para se expressar. Mas, será que essa é toda a verdade? Se tomarmos a inovação como referência, ela não conhece fronteiras, se traduz em verdadeiras explosões de possibilidades, se refere a uma re-invenção, à criação permanente de novas realidades. Será que já percebemos que qualquer organização é um sistema vivo em permanente transformação e que esse sistema vivo se dá na complexidade da sua rede de relações? E que é exatamente isso que legitima a inovação? Ou a proposta de inovação nas empresas ainda é um faz-de-conta com aspirações de ser para valer algum dia?

Não basta então a definição da missão e do código de conduta. Isso é muito pouco, tanto para as expectativas das pessoas como para as expectativas das empresas. É preciso desenvolver ainda uma postura de acolhimento para novas possibilidades criativas; é preciso que nós, as pessoas, possamos re-inventar permanentemente o nosso trabalho, construir a trajetória do que nos propomos a realizar juntos, amadurecer um sentido de responsabilidade para com o outro e para com o coletivo. Esse, de fato, é o ambiente que interessa a todos.

DIÁLOGO E ALTERIDADE
O fetiche das palavras é algo muito mais poderoso do que imaginamos. Falamos de participação, democracia, liberdade, criatividade nas organizações e, passo seguinte, acreditamos que o mundo se cria pela palavra. Ora, a palavra é um signo arbitrário, mas que pode ser muito sedutor e, ao seduzir, seduz não só ao outro que me ouve; pior, seduz a mim mesmo, que falo. Vivemos ainda o mito bíblico: 

Deus criou o mundo por meio da palavra; 
nós agimos da mesma forma: acreditamos que o mundo se cria
 pela palavra. Esse é um dos lados da moeda: a palavra como instrumento de alienação, como fetichização do mundo.
Mas há também o lado redentor da palavra. O diálogo pode se tornar o fator revolucionário de toda e qualquer organização social. Talvez, exatamente por isto, o diálogo é tão difícil, tão absolutamente raro. O diálogo é uma arte, infelizmente limitada a círculos restritos da sociedade. Isso é muito curioso porque a sociedade moderna tagarelar intensamente.  

Mas tagarelar não é dialogar. 
Em geral, as pessoas falam de coisas absolutamente acidentais e exteriores; quem fornece os temas de discussão são os meios de comunicação, o maquinário com o qual trabalho ou o manual de instruções do novo Windows 2001! Ou melhor, o problema não é propriamente o tema da conversa, mas o quanto estou dissociado daquilo que falo: o ser profissional dissociado do ser social, dissociado das emoções, das experiências e por aí vai. A tarefa, como diz Enrique Pichon-Rivière, é fundamental. Em torno dela o diálogo deve girar. O diálogo exige requinte e, dificuldade suprema para uma cultura narcisista, capacidade de apreender o outro como outro. Na ausência disso -o que é o mais comum- o diálogo produz tensões, conflitos. 

Dialogar é conviver com o conflito, geri-lo, e não, como é usual, reprimi-lo, paralisá-lo, escondê-lo. Os grupos operativos, nascidos na Universidade e respondendo às necessidades interdisciplinares, proposto por Pichon-Rivière, rapidamente ganharam as escolas, os hospitais psiquiátricos; com vagar ganham também as organizações produtivas. 

Há, portanto, um instrumento psicológico -os grupos operativos- dotado de flexibilidade, capaz de adaptar-se a vários níveis das exigências institucionais que pode ser o “vaso alquímico” capaz de conter os conflitos e tensões que o diálogo necessariamente produz. Além dos grupos operativos, há inúmeras outras modalidades de facilitação psicológica que podem ser úteis às instituições, inclusive empresas, especialmente quando face a processos de consultorias organizacionais, planejamento estratégico ou outras situações, que, justamente por imporem a necessidade de intenso diálogo, são geradoras de tensão.

Vou dar um exemplo muito freqüente do diálogo -ou da ausência dele- no processo terapêutico. Aliás, aprendi a valorizar o diálogo e ver nele uma potencialidade revolucionária como psicoterapeuta. No processo terapêutico o diálogo é peculiar e, todavia, acredito que tenha aí o seu paradigma. Tão velho quanto a dialética socrática, o diálogo terapêutico re-inaugura uma prática esquecida. Não raro, uma criança adoece porque a família também está doente. Uma das práticas terapêuticas comuns nesses casos é pedir para a família conversar durante 15 minutos semanalmente. 

O diálogo que no início se limita à expressão do desejo de cada um, pode demorar meses para se tornar uma prática durante 15 minutos por semana! Simplesmente as pessoas não têm o hábito de se ouvirem e, coisa mais rara ainda, de responderem àquilo que foi perguntado. Hoje, temos monólogos; as pessoas moram juntas por anos a fio na mais radical solidão.

A fissura entre o dizer e o fazer, através do diálogo poderia ganhar outras dimensões, porque se o diálogo efetivamente se estabelece, acontece um fenômeno revolucionário: começamos a perceber o outro como outro, as máscaras sociais caem, a verdade pontual a respeito de um problema, pouco a pouco, aparece. Para os românticos (Jean-Jacques Rousseau, Carl Gustav Jung) o social, a natureza, o mundo é coberto de véus. Projetamos nos outros, todos os outros, os nossos processos inconscientes, nossas fantasias, nossos jogos imaginativos. 

A tendência é que o outro seja extensão desses jogos; oculto pela minhas fantasias, ele é incapaz de se revelar como alteridade. Por isso, o monólogo é a tônica: falamos e encontramos a nós mesmos sob mil disfarces. Ora, o diálogo desarma exatamente isto. Quando me dirijo ao Sr. Fulano coberto por meus véus, o Sr. Fulano pode me dizer: “Alto lá, eu sou diferente do que você afirma que eu sou” ou “Esse Sr. Fulano só existe na sua imaginação”. Se eu puder escutá-lo e aprender com a situação, serei capaz de estabelecer uma relação mais autêntica, mais verdadeira.

A revolução, no meu entender, é dialógica e pontual. Não há remédio-macro que dê conta da nossa realidade social. Se nos voltarmos, porém, para o micro, o pontual, o pequeno, o sutil -na família, na escola, nas organizações em geral- será possível obter importantes resultados, pois quando de fato há diálogo, as pessoas tornam-se criativas porque colocam sobre a mesa quem elas realmente são (seus sentimentos, seus desejos, suas capacidades de realização, suas necessidades de expressão). 

Na ausência do diálogo autêntico, as pessoas são artificiais, vivenciam papéis estereotipados, repetitivos, absolutamente não criativos. Vivenciam profunda solidão, sentem-se despersonalizadas e massacradas por um mecanismo gigantesco onde cada uma é peça intercambiável. Para criar é preciso abrir passagem para o deus Eros, o deus do amor, da junção, da união, da multiplicação. É preciso abrir passagem para a idéia de que cada um de nós é insubstituível e, quero enfatizar: cada um é insubstituível tanto nas organizações, sejam elas quais forem, como na vida. 

Pense por um momento, leitor, como uma empresa seria outra realidade simplesmente adotando como paradigma o fato de que ninguém é substituível. Pense como seria a organização sem a visão mecanicista de mundo na qual somos todos assemelhados a peças que podem ser substituídas por outras sem afetar o funcionamento do maquinário.


Pense como seria considerar 
que as relações que integramos jamais seriam as mesmas
 sem que as integrássemos. 

Pense, leitor, em como você é bem mais do que 
uma peça amorfa para que assim seja considerado.


Esta proposta que estou fazendo de aprender a dialogar -e de exercer o diálogo- é muito simples. Não implica custos que não possam ser absorvidos, e pode vir a se tornar uma prática realmente transformadora das relações, em direção àquilo que todos almejamos: a sua autenticidade. Quando nos abrimos para o diálogo, quando fazemos esse gesto supremo, passamos a ter outra referência de nós mesmos e do outro, passamos a sentir a dor, o sofrimento e a solidão do outro. Tornei-me psicoterapeuta exatamente porque precisava começar a conversar de uma nova forma.

Fui professora por mais de 20 anos, na UNICAMP, e lá vivenciei o que chamo de “solidão coletiva”: transmitir conhecimento para classes de mais de 50 alunos não pressupõe diálogo; nessa forma de ensino nem perguntas cabem, pois atrapalham um cronograma exigente, burocrático e imposto de fora. As universidades tornaram-se os mais perniciosos reprodutores dessa solidão e alienação; lá as pessoas são amargas, pouco receptivas, competitivas. No lugar de Eros, Tanatos: desunião, separação, enfraquecimento, morte.

AS MÁSCARAS SOCIAIS
Outra fissura importante da sociedade moderna se dá entre o fazer e o ser. O ser e o fazer dissociados. O dizer e o fazer dissociados. Todas essas dissociações fundam-se a partir da fissura entre o ser e o parecer. Jean-Jacques Rousseau teceu essa argumentação no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, no início da segunda metade do século XVIII. É essa fissura entre o ser e o parecer que permitiu ao filósofo um olhar crítico sobre a modernidade no seu alvorecer. 

Explicando um pouco: se tivermos como referência as sociedades tradicionais e a própria cultura ocidental até o início da modernidade, percebemos que as pessoas tinham lugares muito definidos na “cadeia do Ser”; o que elas deveriam fazer e, inclusive, falar, estava dado. 

A fissura entre o que eu sou e o que aparento ser simplesmente não se punha, não tinha sentido e, com ela, também não tinha sentido a fissura entre o dizer e o fazer e a fissura entre o ser e o fazer. Essa fissura, no entender de Rousseau, só fez alargar-se. Talvez tenhamos chegado ao seu ponto culminante, pois aquilo que somos -quando sabemos quem somos- escondemos, diminuímos, espezinhamos; só é permitida a emergência do aparecer, das máscaras, daquilo que Jung chama de persona. 

As máscaras nos permitem realizar no social um pequeno fragmento do nosso ser - o restante permanece atrofiado, reprimido e, muitas vezes, como o sangrento século XX provou, pronto a emergir de forma sombria, projetada nos “bodes expiatórios” sociais. Sem caminhos, os “melancólicos da cultura” sabem que perderam algo: partes importantes do ser; mas não sabem nomear o que perderam. Como seres errantes, passam a identificar-se com suas máscaras sociais. O parecer agiganta-se, o ser atrofia-se.

O homem confunde-se com o papel social que realiza, com os penduricalhos sociais (títulos, cargos etc.) que as organizações lhe permitem ter, tornando-se cada vez mais frágil, inseguro, instável. Obviamente não há possibilidade de uma sociedade saudável com um abismo tão grande entre o ser e o parecer, entre o dizer e o fazer, entre o ser e o fazer. É preciso que haja uma nova recomposição do ser. 

O diálogo, de novo, 
poderia ser o elemento fundamental
 de recomposição do ser dissociado de si mesmo.


A PITIÉ E A RE-DESCOBERTA DO OUTRO
Para Rousseau, o “homem natural” é dotado de duas paixões: o amor de si e a pitié (a compaixão). O amor de si é o cuidado consigo mesmo e tudo aquilo que garante a sobrevivência do homem; a pitié é uma paixão que nos transporta para o outro, todos os outros, pois através dela nos é impossível ficar indiferentes diante daquele que sofre. A pitié tempera o amor de si, impedindo que se transforme em amor-próprio, que, para o filósofo, é uma paixão social que transforma o homem num ser egoísta, voltado para os seus interesses pessoais.

Ora, o processo civilizatório enfraqueceu sobremaneira a pitié: convivemos com a miséria, a iniqüidade, a desigualdade social extrema, a morte e a destruição e permanecemos completamente indiferentes. O outro na sociedade moderna deixou de nos fazer apelos. A pitié enfraqueceu-se e, com isso, agigantou-se o amor-próprio: o egoísmo extremado do homem moderno, o furor pelo mundo do aparecer, das imagens, dos simulacros, das máscaras. O “mundo do ter” substituiu o “mundo do ser”, como tão bem apontou Erich Fromm. Com o enfraquecimento da pitié só resta o “mundo do eu”, a fúria do eu que só cuida dos seus interesses e é incapaz de alcançar o outro.

O eu identifica-se com os interesses e os valores dados pelo imaginário coletivo. Queremos aquilo que o “imaginário coletivo” afirma ser bom e belo. O que Rousseau chama de “estima pública” pauta nossos pensamentos, nossos valores, nossa moral e, até mesmo, nossas emoções. Evidentemente, a identificação entre cada um de nós e o “imaginário coletivo” varia; na modernidade, todavia, a identificação é tão intensa que indivíduos que preservam ou conquistam a sua singularidade tornaram-se heróicos. 

Entre seres coletivos, é bom que se frise, não há diálogo, mas tagarelice. Para Rousseau, a renovação social e mesmo cultural só seria possível com o re-florescimento da pitié, da compaixão. Com o renascer dessa paixão natural, o outro, todos os outros seres -a própria natureza- passariam a fazer apelos, doravante perceptíveis. O outro deixaria de ser indiferente para o eu. É esse despertar do outro em cada um de nós que dará base ao diálogo.

Não há formulas, não há receitas para esse despertar. Cá e lá, se tivermos ouvidos para esse som, perceberemos falas indizíveis daqueles que estão tentando “furar o cerco” desse tecido espesso que é o “imaginário coletivo”. Se, de perto, pudermos acolher essas falas, ouvir esses sons, será possível facilitar o caminho desses novos buscadores. 

Na grande maioria dos casos tal busca começa independentemente da vontade das pessoas; não raro a busca começa contra a vontade do ego que, como órgão de adaptação da realidade interna e externa, vê com muita má vontade o despertar da singularidade. Como afirma Jung, a natureza é extremamente conservadora, a libido (a energia psíquica) quer percorrer os caminhos desde sempre trilhados, quer repetir o mesmo. Se tal busca da singularidade se impõe, se o processo não pára, tal se dá, como diziam os alquimistas, “contra a natureza” - e não em favor dela! 

O bonito é que quando esse processo começa não tem mais fim; puxa-se o fio de uma meada que nos leva ao infinito de nós mesmos. Toma-se gosto por essa estranha aventura que é o encontro consigo mesmo, com seus obstáculos, sutis pontos de apoio, guerras titânicas não audíveis, não visíveis, impensáveis. A cumplicidade no encontro com o outro que também busca e que reconhece o eco de suas palavras é prazeroso e dotado de tal sutileza que encanta.

Talvez o momento seja propício para esta tomada de consciência em favor do singular. Eis que habitamos um mundo contraditório e uma época tensa: ao mesmo tempo que vivemos a alienação, o fetichismo das palavras, a especialização, a unilateralidade, a banalização da democracia, temos também a oportunidade de viver a pluralidade, a emergência de novas possibilidades, a re-invenção do mundo, o diálogo, a singularidade. 

Em nenhum outro momento histórico tal tensão seria suportável ou imaginável. Nós temos postos os dois lados da balança: de um lado a unilateralidade, o coletivo massacrante e, de outro lado, crescente busca da singularidade, da criatividade. Se a crítica da modernidade é pertinente, não podemos nos esquecer que a modernidade e a democracia são as parteiras dessa incrível novidade: a “produção” de indivíduos singulares.

E, todavia, há “perigo no ar”: catástrofes naturais produzidas pelo desequilíbrio ecológico; catástrofes sociais e políticas produzidas pelo desequilíbrio da alma; catástrofes que podem ser produzidas pela própria ciência quando esta separa-se da ética. É responsabilidade de cada um de nós, mas também das Instituições, mudar a direção da seta: da catástrofe para a esperança de um mundo que re-conhece e venera Eros. Agir no pequeno, no pontual, permite a todos exercer-se aqui e agora ancorados no diálogo e no coração: não existe arma mais eficaz do que trazer à tona o outro e a si mesmo.


Fonte:
RUBEDO
 Marcus Quintaes e Amnéris Maroni
  Setembro/2004 -2007
- quintaes@rubedo.psc.br
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.Sejam abençoados todos os seres.


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