quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A FORMAÇÃO DO EU (moi) EM LACAN


Comentários para uma leitura do Estádio do Espelho.

.Este trabalho se propõe oferecer elementos para facilitar uma leitura do texto do estádio do Espelho como formador da função do Eu.
Lacan fala pela primeira vez dele no congresso de Mariembad em 1936, logo o retoma e é apresentado em uma comunicação feita no Congresso Internacional de Psicanálise em Zurique em 1949 

No texto, Lacan nos dará elementos para pensar na constituição do Eu, trabalhando o fenômeno pelo qual uma criança reconhece sua imagem no espelho, fenômeno este que se da por volta dos 6 meses. É a partir do movimento que se produz entre a criança e sua imagem refletida no espelho que se logrará à constituição de um Eu unificado ortopedicamente. 

À imagem virtual, inexistente como realidade (já que ao retirar-se o espelho ela desaparece) lhe serve como primeira identificação de um si mesmo. Nesta imagem a criança se aliena fazendo deste Eu a sede do desconhecimento.
Apesar de que no texto de Lacan encontramos reiteradamente a palavra “Je” nos encontramos com uma dificuldade.A tradutora numa nota esclarece que se trata do Eu como JE (sujeito do inconsciente) na verdade para nos, está refirendo-se a constituição do Moi, porque é uma tentativa de elaboração de uma teoria que de conta do primeiro esboço de Eu que se constitui como ego ideal e tronco das identificações secundarias, sede do narcisismo.

Pensamos que apesar de que Lacan já tinha começado a esboçar a diferencia entre Je e Moi, em 1949, ainda não os diferenciava claramente.Lembremos que naquela época, na psicanálise francesa, era freqüente traduzir o “ICH” por “Je”(1).
(1) Alguns autores propõem traduzir o JE como Eu formal, diferenciando-o do Moi Eu substantivo.

O “JE” e o”Moi”, são duas articulações possíveis do Ich(Ego) Separa o sujeito que fala, do sujeito como instancia narcísica.

O “Je” é o sujeito da oração, o que fala em primeira pessoa do singular.A criança demora muito mais tempo em poder dizer o “eu” do” je”do que o mim (moi),ela diz”neném quer água”, ou se denomina pelo nome antes de dizer o Eu: ”Susu gosta de cachorro.” Mas pode dizer antes: “dá pra mim”. 

O Eu (Moi) se constitui sobre a imagem do próprio corpo. 

O corpo do recém nascido, apresenta um caos interoceptivo, transbordado em sensações incoordinadas, que configuram um corpo fragmentado. 

O Eu é efeito de uma imagem, efeito psíquico de uma imagem virtual de si, que “o” produz, o que não é dizer pouco. Estudaremos de que modo à imagem vem para colocar uma ordem nesse caos sensorial. Veremos de que modo, quando o bebe se olha no espelho rebota (desde ele, o espelho) uma imagem tranqüilizadora de uma integração que acalma, alegra, produz jubilo a esse bebe em caos. 

Que promessa! Logo você será assim, será Um, integrado, dominará um corpo que você não domina..Ele se constituirá em Um a partir da imagem, portanto, ela antecipa algo, é constituinte de uma unidade que ainda não existe. Esta imagem de unidade escapa permanentemente e a criança corre atrás dela, tenta capturá-la, fixá-la, e acaba sendo capturado nela. 

O estádio do espelho aparece como uma matriz simbólica da constituição do Eu desenhando um primeiro esboço da subjetividade.
Lembremos que Lacan nos indica diferenciar este Eu, do cogito cartesiano. 

O Eu ao qual vamos nos referir, pouco tem a ver com dar ao Eu um lugar de saber- pensar ou para existir.Este eu não esta centrado na relação percepção- consciência, lugar de síntese, autonomia, clareza, permanência. Deste último Eu trata a fenomenologia, as terapias que pensam o Eu como lugar de conhecimento. Enquanto nós sabemos que o Eu do qual estamos falando é o Eu do desconhecimento, do imaginário. 

Um Eu falsário que nos ilude frente a uma completitude que encobre a fragmentação. 

Se o Eu se conforma com o que o espelho lhe mostra, (aquilo que antecipa) permanecerá fixado num lugar de miragem. Pensemos num sujeito no deserto, vê uma miragem, se ilude achando que tem um paraíso, um oásis que acalmará sua sede, mas na verdade onde vê o lago e as palmeiras não há nada, não tem mais do que a imagem virtual que permite continuar em frente e não desistir por sede. Qual é o oásis que o infans enxerga na sua imagem ilusória? 

Pensemos como dizíamos, no desconforto de não poder se apropriar dos movimentos, não poder coordená-los, pensemos no desamparo vivido por esse acontecer incoordenado de seu próprio corpo que lhe impede alcançar, pegar, tomar aquilo com o que acalmaria uma necessidade. Ele não pode, por falta de maturidade neurológica, dar conta de seus movimentos, de seu corpo. A pré-maturação deixa a criança na dependência absoluta dos outros, a criança para olhar-se deve ser sustentada, precisa de um suporte, um andador, um adulto. 

Lacan diz que o bebe supera os entraves desse apoio para resgatar um aspecto instantâneo da imagem. Esquece que é sustentado, olhado desde o Outro, a mãe, para poder se ver por um momento como integrado.
Mas esta boa forma que ele encontra no espelho, que o alegra e tranqüiliza, terá inúmeros desdobramentos na formação da subjetividade.
Não só o acalma, deixará marcas, marcas profundas sobre as quais se constituirá a matriz da subjetividade. 

A criança experimentará uma tensão frente à imagem que o espelho lhe devolve.Uma tensão entre a imagem unificada do corpo e a impotência motora. Cria-se uma tensão agressiva, uma rivalidade entre a imagem unificada e a falência motora. Uma rivalidade entre o corpo fragmentado e o outro de si, sua própria imagem no espelho.
Esta rivalidade é vivida como ameaça de fragmentação pelo poder unificador e a fascinação frente a esta imagem. O infans rivaliza consigo mesmo, tensão entre o corpo fragmentado e a imagem unificada, agressividade em jogo, que em um primeiro momento é de si para com a imagem de si e depois será de si para com outra criança semelhante. 

O terror de perder a imagem unificada faz que o infans se debruce sobre a antecipação de sua unidade, como se dizesse: antes de estar fragmentado me debruço e me transformo na imagem,roubo à imagem seu lugar e me coloco no lugar dela, isto é o que Lacan chamará de libido eroto-agressiva. Júbilo, alegria, rivalidade, agressividade, tensão frente a imagem, elementos estes que acompanham os processos escópicos.
Vejamos um pouco mais, sobre esta incoordenação motora que é marca da espécie humana quando nasce. 

A cria de homem tem uma maturidade neurológica parcial. Não tem mielinização dos fechos piramidais, razão pela qual não consegue coordenar seus movimentos. Quando mieliniza o córtex e pode reconhecer sua imagem no espelho, ainda não coordena os movimentos. Neste sentido tem uma verdadeira condição de desvantagem frente a outras espécies. 

Lacan, no texto que nos ocupa, menciona à condição de desvantagem que encontramos no filhote homem em detrimento do filhote chimpanzé em relação a coordenação e a inteligência instrumental. 

A psicologia comparada(2) mostra que o chimpanzé, por um curto espaço de tempo, supera em inteligência instrumental a cria humana.(Estudos de Elza Kohler L'Intelligence des Signes Superieurs, Alcan 1927, nova edição P.U.F – C.E.P.L) 

Quando percebe sua imagem, o chimpazé passa a mão atrás do espelho,ao não encontrar nada parece decepcionado, logo se recusa obstinadamente a interessa-se por isto, a imagem aparece e se esvanece com rapidez. Não acedem ao conhecimento da imagem, esta não os prende, desaparece logo. O estranho é que os chimpazés, que não se reconhecem no espelho, parecem reconhecer- se numa fotografia deles mesmos, quando se lhes apresenta.
(2) Comentários tomados do livro Merlau Ponty na Sorbone.Resumo de Cursos,cap: as relações com o outro na criança.

Estas condutas contrastam com as da criança enfrentada ao espelho. A criança reconhece antes o outro no espelho, do que a própria imagem especular. 

A criança dá um sorriso a imagem de seu pai, por exemplo, no espelho, o reconhece, mas se estranha quando o pai lhe fala, ela se volta para ele com surpresa, não havia ate então percebido uma diferencia entre à imagem e o modelo. Neste momento algo de novo acontece, a criança apreende algo novo. Não se trata de uma simples educação. Algo começa a acontecer na relação modelo-imagem, apesar de não tomar pose ainda.
Neste primeiro momento parece que a imagem tem existência própria. A criança reconhece a seu pai de um modo prático. 

Porque reconhece ao semelhante,ao pai no espelho, e não é capaz ainda de reconhece-se? 

A criança dispõe de duas imagens visuais de seus pais, a do espelho e a imagem deles próprios 

Mas de si própria só dispõe de uma imagem completa: a de seu corpo no espelho. Ela não consegue olhar seu próprio corpo, seu corpo é visível para um outro, no lugar onde nela estão suas sensações proprioceptivas. O Outro a vê como integrada, a vê também no lugar de seu ideal. Estas aquisições não são intelectuais, media o processo de identificação.

Os adultos projetam um futuro para a criança. A criança encontra no espelho varias coisas, por um lado à identificação imaginaria com o falo materno, por outro, com sua integridade inexistente, mas através do olhar do Outro encontra também aspectos do ideal do Ego, è nela que se depositam projetos do que se é ou gostaria de haver sido. 

É a partir do olhar do Outro que ela também se constitui. Para que exista essa precipitação, esse se submergir na imagem é necessário que exista algo previamente, isto é a “matriz simbólica”. O caso não é tanto se olhar no espelho, a questão é se olhar num espelho no qual esta imagem está sustentada pela mirada do Outro, primeiro Outro simbólico que é a mãe. A matriz simbólica parte do desejo da mãe. É a castração da mãe que dá ao outro, seu filho, o lugar de falo imaginário.

Vejamos a complexidade desta miragem especular. Nela se antecipa o que a criança desejaria ter: coordenação motora, unidade, integração, domínio de si. O que ela desejaria ser, o falo imaginário que completaria a mãe, desde o que a ela (mãe) lhe falta, se submetida a castração. Também lugar do ideal, do super- eu parental. Lugar no qual se projetam aspirações e esperanças. É desde o Ideal do Eu (no simbólico) que se regula a estruturação imaginaria do Eu (moi).

Descrever este processo se faz necessário para entender porque Lacan nos diz ,que esse efeito da imagem, longe de se esgotar, como no caso do macaco uma vez que adquire o controle, repercute na criança em uma serie de gestos que, experimenta com alegria e ludicamente em relação aos movimentos adquiridos, modificando seu próprio corpo, sua relação com os objetos próximos e sua relação com as pessoas. Esta é a função fundante do estádio do espelho já que ele é revelador do “dinamismo libidinal”. 

Entendamos mais um pouco de como isto acontece. 

A imagem do corpo no espelho opera como disparador da libido que circula do corpo à imagem, da imagem a o Eu e ao mundo. Se produzem efeitos de rebote entre estas instancias, a partir da imagem. Dispara, veicula e fixa a libido. A imagem que interessa, não é a imagem na sua objetividade, mas nos atributos que lhe são conferidos a essa imagem. Imagem que provee unidade, volume, corporeidade. Imagem que garante uma unidade do desunido, imagem que e à articuladora e que ocupará um lugar que ainda o corpo deixa vacante.

O corpo é uma coisa e a imagem desse corpo outra. 

Uma imagem que lhe permite antecipar no nível psíquico a futura unidade do corpo, imagem que supera à discordância entre o avanço do psíquico e o lento organizá-se do orgânico. 

Como não ficar encantado com esta promessa de domínio futuro do corpo. Como não se fixar nesta imagem? A defasagem entre Innenwelt (do sujeito) e umwelt (o mundo), esta relação entre o ser e a realidade é o que Lacan trata na fase do espelho. 

Porque a imagem tem tanta importância? Que imagem é essa, porque o olhar, a mirada, a função escópica tem tanta importância?
Como se sabe do ambiente se não pela imagem que através da mirada se tem dele, pelo que a visão retrata do ambiente. Podemos destacar que entre os analisadores sensitivos o olhar tem um espaço privilegiado. 

A relação organismo ambiente não é direta: a visão opera como articulador.Ao mesmo tempo a visão produz diferentes efeitos, Lacan fará referencia a diversos estudos que mostram diferentes processos que se produzem a partir desta articulação. 

Um destes trabalhos é de Roger Caillois(3) sobre o mimetismo, do qual daremos alguns elementos, porque a partir deste autor, Lacan circulará por diversos conceitos de identificação que será necessário explicitar.
(3) Roger Caillois ,sociólogo, poeta,critico literário,nasceu em 1913 morreu 1978.Contemporaneo e parceiro de G.Bataille formou parte do movimento surrealista.Exilio-se na Argentina por causa do nazismo de 1939 ate o fim da guerra.Escreveu numerosos textos sobre o imaginário humano,o mimetismo e a mascara.

Ao estudar o mimetismo, Caillois demonstra que à experiência do animal com o méio está regulado pela visão. No ser humano estes efeitos produzem modificações no psiquismo. 

UM ser se transforma, se acomoda ao espaço, se confunde com ele muda ate sua cor, textura, forma volume através da visão. A imagem retiniana é capaz de transformar a superfície do corpo. A imagem, plasma na pele a marca que recebe do ambiente. As mudanças na vestidura são reguladas pela visão. O animal se adequa a cor do ambiente a partir da percepção e nos casos em que o animal é cego, não consegue mutar a pele e sucumbe aos ataques do inimigo. No mimetismo se põem em jogo armadilhas, ilusões, enganos do mirar. O organismo se desrealiza transformando sua estrutura externa, ”com-formandose” com o cenário para sobreviver. 

Mas não vamos a pensar que no sujeito humano se trata simplesmente de mimetismo. No caso do humano se trata de um processo psíquico que explicaremos mais adiante. A utilização do exemplo tem por intenção reforzar o que Lacan vai destacar como pulsão escópica, como a importância do olhar e as tranformações que um organismo pode sofrer a partir da visão.
Como vemos já vamos nos aproximando a destacar que o texto trata o tema da identificação. 

Identificação heteromórfica quando se trata do mimetismo no qual organismo assume a forma do entorno. Identificação homomorfica num outro tipo de mimetismo, o mimetismo no qual as transformações no corpo se produzem pela visão do congênere. 

É o caso dos gafanhotos(lagostas peregrinas) ou das pombas que estuda a etologia. Estes animais reconhecem o congênere e em função disto se modificam, mas o fazem em primeiro lugar na presença do outro, na pura presença. O gafanhoto migra da forma solitária à gregária pela visão do congênere, basta que a imagem esteja animada por movimentos similares aos da sua própria espécie que se produz a mutação. A imagem do outro tem um efeito formador 

No caso das pombas a maturidade das gônadas tem como condição necessária a visão de um semelhante, inclusive pode ser a imagem de um semelhante no espelho, nesta identificação homomorfica o organismo seria tomado pelo sentido da beleza como formadora e erógena.
No animal há uma imagem da espécie, o recorte perceptivo reponde a uma gestalt que corresponde ao instinto.

O humano se aliena na própria imagem e impõe a partir dela a imagem da espécie. 

Quando Caillois descreve a “Psicastenia lendária”(4), transtorno no qual se produz uma captação do sujeito pela situação, já não mais está falando de um organismo, mas de um sujeito.O espaço exerce uma sedução que obriga ao sujeito a renunciar a si para confundi-se com o espaço, ate à despersonalização e a desrealização.

(4) Se descrevem casos de misticismo nos quais o sujeito fica em absoluta inmovilidade,chamada também por P.Janet de “doença da ilha deserta”

  Agústia de êxtases onde o sujeito fica sem reagir a estímulos externos. 

 Bem mais digna de nota é a teoria de Pierre Janet. Na obra De l'angoisse à l'extase , o mestre do Collège de France refere, com extraordinária minúcia, a observação, prosseguida durante 22 anos, duma doente designada pelo pseudônimo de Madeleine, que apresentava fenômenos místicos comparáveis, segundo Janet, aos da grande Teresa de Ávila. 
 
No sujeito à identificação com a imagem do corpo refletida no espelho tem efeitos psíquicos. É diferente dos casos anteriores, podemos ver que no estádio do espelho há registro psíquico da imagem unificada,da integração da imagem de si, que atuará como formadora como constituinte do que está por vir.

A criança pode assumir uma imagem de si atravessando os processos de identificação porém nunca se reduz ao plano puramente econômico ou puramente especular, por prevalecente que seja o modelo visual. A criança não se olha com seus próprios olhos, mas com os olhos da pessoa que o ama ou detesta. O que importa é sua mirada e a mirada que recaí sobre ele. 

O lactante realizará um processo pelo qual se reconhecerá no espelho. A diferença é que o gafanhoto reconhece o congênere, e a criança se reconhece a si próprio. No espelho aparecerá uma imagem virtual, que rebotando sobre as sensações proprioceptivas, descordenadas, esfaceladas lhe devolverá uma imagem integradora. Este corpo despedaçado corresponde ao auto-erotismo, de cada zona erógena partem sensações,que por enquanto não parecem comportar uma unidade. 

Logo o primeiro objeto da libido será o Eu, o Eu se forma por identificação, identificação a este Ego ideal (Ideal-Ich) que antecipa sua imagem. Estamos frente ao narcisismo, constituído e constituinte do sujeito, um Ego ideal que será também receptáculo das identificações secundarias.

Precisa-se da formação do Eu para que existam as relações de objeto.

O Eu se oferece ao idi como objeto (narcisimo). Os objetos são produto da paixão do eu por impor ao mundo sua imagem. Começa o dinamismo libidinal. Se criará uma linha de ficção para sempre irredutível. 

Entendamos a referencia de Lacan quando diz que “essa forma situa a instancia do Eu, desde antes de sua determinação social numa línha de ficção, para sempre irredutível para o individuo isolado,ou melhor que só se unirá assintoticamente ao devir sujeito, quaisquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais tenha que resolver, na condição de Eu, sua discordância com a realidade”. 

O sujeito no mais se encontrará a si mesmo, a não ser como uma curva assintotica que só se tocara, quase que imaginariamente, em algum ponto infinito com sua realidade. (Diccionario Aurélio, assíntota: que não pode coincidir, se trata a uma função geométrica tangente entre uma reta e uma curva que só se tocarão no infinito). Segundo Lacan, não haverá síntese dialética que apague a diferença entre o Eu da imagem e a própria realidade do corpo do sujeito. Este permanecerá como realidade, de algum modo, sempre desconhecido para si. 

Para Lacan o Eu é um precipitado em que o sujeito se reconhece em tanto se apresenta para si como um objeto outro. Este Eu se forma antes que o Eu que devem de sua determinação social (antes de sua passajem pelo Édipo). 

Este Eu é um cristal que pode se romper pelas línhas nas quais se uniu previamente. 

O conhecimento humano se estrutura como paranóico, sempre ameaçado de perder o conseguido,sempre em tensão e rivalidade com sua propia imagem.É mais autônomo que o do animal, nos diz Lacan, mas também o determina no “pouco de realidade” que ele tem. O Eu se reconhece nesta realidade ortopédica que lhe oferece a antecipação, mas funciona como uma identidade alienante. Constitui-se um Eu que precisará sempre de reconhecimento para que se assegure a permanência de sua imagem. Ninguém pode ter de si, a certeza de coincidir com a própria imagem, por isto se procura o reconhecimento desde fora. Para o infans, o semelhante parece ter a integridade, a unidade, a boa forma. 

O semelhante parece ter de si a certeza de coincidir com a imagem e desde ai ocupar o lugar único. A criança sustentada pela sua mãe, cuja mirada o olha, volta-se para ela para demandá-lhe autentificar sua descoberta. É o testemunho de sua mãe que ao dizer “você é”, permitirá a criança dizer “sou eu”. 

O outro ocupa o lugar único o que implica para o Eu a perdida de lugar e de reconhecimento. Isto promove uma resposta agressiva que cria um reflexo paranoide de fragmentar ao outro para ocupar seu lugar.
Avançando no texto nos encontramos com uma frase um tanto hermética. Que quer dizer Lacan quando nos diz que “o rompimento do circulo do innwelt para o umwelt gera uma quadratura inesgotável dos arrolamentos do Eu”.

A referencia a quadratura do circulo se deve a um dos problemas clássicos, irresolúveis, da antigüidade. Se tratava de construir um quadrado de tal forma que sua área fosse igual a área de um circulo e isto deveria ser feito com regula e compasso. A quadratura do circulo e algo impossível desde a geometria assim como é impossível fazer coincidir a imagem do corpo com a realidade. 

Há uma discordância do sujeito libidinal com sua realidade. O Eu vem se oferecer como lugar de uma síntese impossível, se tratará de fazer coincidir as bordas desta discordância primordial da imagem com a realidade. 

Lacan nos diz que este corpo estraçalhado aparece nos sonhos, sob a forma de membros disjuntos, nas obras de Bosh pintor do século XV, nas línhas de fragilização que definem a anatomia fantástica e se manifestam nos sintomas esquizóides ou nos espasmos da histeria. 

Lacan esclarece que nos dados da experiência do espelho, do visual, não se esgota esta experiência de formação do Eu,porque se assim o afirmasse-mos poderiam-se receber muitas criticas. O que sucede com a identificação vai além, tendo em conta o já dito ,que uma criança não se vê com os próprios olhos, mas se vê com os olhos de quem o ama ou detesta.

À referência no texto está dada, quando nos diz, que esta experiência está medida pela técnica da linguagem e inscrita na matriz simbólica na qual o Eu se precipita.Esta matriz simbólica é o desejo da mãe,a castração da mãe que da ao filho o lugar privilegiado de falo. Não existindo esta matriz,a criança não poderá se constituir como Eu por muito que se depare com sua imagem no espelho é o caso das psicoses infantis e do autismo. 

Chamama(5) nos diz que se aborda o campo do narcisismo como fundante da imagem do corpo da criança a partir do amor materno. Para que a criança possa se apropriar desta imagem, se requer que tenha um lugar no grande Outro encarnado neste caso pela mãe, que está inclusa na ordem do simbólico.
(5) R.Chemama, Diccionario de Psicanálise, “Espejo”,Bs As Amorrortu,1998
 
A passagem do Eu especular, o ego ideal, para o eu social, ou Ideal do ego estará dada pela intermediação cultural que, como nos diz Lacan, estará mediada “no que tange ao objeto sexual, no complexo de Édipo. Chamama diz “o signo de reconhecimento da mãe vai funcionar como um “rasgo unario” a partir do qual se constituirá o Ideal do Eu. 

Ressalta Lacan que alem da importância do reconhecimento na imago que ate aqui temos desenvolvido, a presença de outras crianças, semelhantes a ela tem um papel formador importante, por conta de um fenômeno descrito por Charlote Bülher(6), conhecido como transitivismo infantil.

É a aptidão da criança de encontrar no outro o que pertence a ela mesma. Uma criança se interessa por outra da mesma idade, bate num outro do lado esquerdo do rosto e toca seu rosto do lado direito, se da a mesma inversão que na imagem especular, mas o interessante que depois de bater, é ela quem chora. À criança se exibe ao outro como espectador e queda fundido, com ele. Se da uma confusão do si e do outro numa mesma situação sentimental.

Diz Lacan que se da uma dialética a partir da qual há uma passagem do eu especular para o eu social, começa a concorrência com outro. Bülher descreve situações nas quais uma criança fala, brinca, se mostra e a outra observa. Uma se exibe e a outra se submete, relação semelhante a do amo e o escravo, destacando que ambas crianças estão de algum modo fundidas na situação. O senhor busca reconhecimento de seu senhorio pelo escravo, dando-se uma confusão entre ele e o outro numa situação afetiva. Aparece o ciúme e a relação espectador- espetáculo, é interiorizada. O ciumento gostaria de ser aquele que ele contempla, tem o sentimento de ser frustrado. 

Se não fossemos sujeitos do inconsciente marcados pelas castração, amarrados a uma linhagem, e a tudo que nos faz um sujeito singular não poderíamos sair do transitivismo, tendo em conta que nunca saímos dele definitivamente. È a partir deste momento, entre a imagem especular e a imagem do outro semelhante, (pequeno outro) que aparece como competidor, ameaçador, que podemos falar da relação entre libido narcisica, como função alienante do eu, e da agressividade que “dela se destaca em qualquer relação com o outro”.
(6) Charlotte Bühler “Ètude Socilogique et Psycologique de la premier année.

Se reconhece aqui,nos diz Chemama a relação imaginaria, dual, da confusão entre si mesmo e o outro,da ambivalência e da agressividade estrutural do ser humano. Aliena-se em si e no outro ignorando sua alienação, com o qual o Eu fica preso a um desconhecimento eterno. 

Com esta posição Lacan se opõe a todas as teorias tradicionais que concebem a o Eu como sistema de percepção-consciência e deixa ao Eu no lugar da alienação e o desconhecimento. 

O ser do sujeito não se esgota no Eu, este não é mais que uma miragem e se contenta com ser isto. 

Lacan finaliza seu artigo dizendo que só a psicanálise da conta de uma junção entre natureza e cultura reconhecendo este ”no de servidão imaginaria que o amor sempre tem que redesfazer ou deslindar”. Não há promessa possível venha ela do pedagogo, do reformador, do idealista que supere esta fenda. A tarefa não é reforçar este Eu, consolidá-lo, fortificar a muralha na qual ele fica alienado mas permitir que o sujeito se depare com seu limite, seu destino mortal. 

Ana Maria Sigal (7) 

(7) Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes.Professora do Curso de Psicanálise do Sedes desde 1977. Coordenadora do Seminário “Diferentes teorias metapsicologicas na formação do sujeito e seus efeitos na clinica.M.Klein, Winnicot e Lacan

Ana Maria Sigal (7) 
http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/ana_sigal.htm

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