domingo, 29 de maio de 2011

AINDA OUTRAMENTE POR RICOEUR SOBRE LEVINAS - Ricardo Timm de Souza

"  O SENTIDO DA ALTERIDADE "

DÉCIMO ENSAIO 

- Ainda outramente - sobre a leitura de “Autrement qu’être ou au-delà de l’essence” por Ricoeur

Introdução

O objetivo desse texto é examinar brevemente a leitura que Paul Ricoeur faz da obra de Levinas, especialmente desde Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, no curto livro intitulado Outramente375.

Nosso objetivo, com esse estudo, é menos evidenciar as inconciliabilidades claras por si mesmas entre dois modelos bastante diversos de pensar, do que tentar precisar o sentido que assume o pensamento de Levinas exatamente ao posicionar-se, em sua construção, na situação de fronteiras onde desde sempre se encontra, especialmente quando contrastado com um modelo de pensamento credor de um modelo de argumentação mais tradicional, como é o caso de Ricoeur em suas análises.

Preliminares

Para Ricoeur, o texto de seu livro tenta compreender Levinas “em sua maior dificuldade”376: “O desafio maior que este livro (Autrement...) apresenta consiste no fato de ligar o destino da relação a ser estabelecida entre a ética da responsabilidade e a ontologia ao destino da linguagem de uma e de outra: o Dizer do lado da ética, o dito do lado da ontologia”377.

Eis, portanto, o ponto de partida da apreciação de Ricoeur. Este reconstrói a famosa separação levinasiana em termos de suas expressões, ou melhor, do “destino” de linguagem de uma ou de outra - o que, em princípio, nenhuma espécie causa no leitor de Levinas. Não poucas vezes este veio a utilizar exatamente essa forma de dizer para tentar tornar evidente a diferença entre a ética e a ontologia. 

Já aí, porém, pensa Ricoeur perceber um problema de grande monta, dividido em duas dificuldades de proveniência semelhante: “por um lado, dificuldade para a ética se libertar de sua infatigável confrontação com a ontologia; por outro, dificuldade para encontrar, para a ex-ceção que desregula o regime do ser, a linguagem que lhe convém, sua linguagem própria, o dito de seu Dizer378.

Não estarão aí, porém, expostas de maneira clara o que parecem ser duas aparentes incompreensões de origem com relação ao tema? 

Pois entender que a ética pretende, como que a qualquer preço, se “libertar” de sua “infatigável confrontação com a ontologia” trai uma visão, no mínimo, limitada e irrealista da realidade; afinal, o que seria a ética sem a ontologia “onde” se realiza? 

Como posso agir sem instrumentos de minha vontade e sobre um chão onde pisar? Como posso conceber um ato ético sem um alvo precípuo deste agir? Pois é por sobre a “espessura ontológica”(Levinas), nas relações que se estabelecem com esta, que a ética empreende o ético. 

Uma ética sem ontologia - exceto na circunscrição exata do nó de seu sentido de fundamento de realidade pensada - nada mais seria do que uma fantasmagoria evanescente: não há ética circunscrita meramente a seu espectro de intenções não realizadas, não há ações boas ou más em espírito, mas apenas ações boas ou más que se realizam e se realizaram efetivamente.

E talvez seja muito necessário lembrar que Levinas propõe não a absolutização de uma “ética” que simplesmente se substituísse à ontologia tout court, em uma “nova ontologia”, mas sim que a substituísse enquanto prima philosophia - na posição de filosofia primeira, fundante, e não absoluta ou totalizada. Esta distinção é fundamental, e dilui por si só boa parte das incompreensões que cercam o pensamento levinasiano. 

Levinas, na explicitação mais larga de seu pensamento, parte da fenomenologia de Husserl e de “ontologia fundamental’ no sentido de Heidegger379: é por sobre essa solidez “ontológica” que se permite, segundo ele, ir além das determinações da ontologia, em uma racionalidade que não se esgota nas determinações arquetípicas de ser e não-ser.
Que se compreenda, portanto: 
a ética necessita da ontologia
tanto quanto nós do chão por sobre o qual caminhamos 
- o que não significa que nós sejamos função desse chão,
ou que a ética seja função da ontologia. 

Como tentamos evidenciar alhures, para um universo cujo parâmetro de sentido seja o ético, o ser e o cosmo não são “nada”, mas antes “algo”, e algo muito importante: o palco privilegiado e monumental onde um drama ético se tem de desenrolar380 - nada mais e nada menos. Imaginar a “ética” e a “ontologia” engalfinhadas pelo status de realidade hegemônica, ou mesmo disputando este espaço, não é apenas grotesco: é, desde uma leitura elementar das obras de Levinas, completamente falso.

Terão estas aparentes incompreensões de origem conseqüências nas conclusões finais de Ricoeur a respeito de um ontologia rediviva pós-ética? É o que veremos ao longo deste breve estudo.
Uma outra dificuldade é percebida por Ricoeur: encontrar o “dito” do “Dizer” que desregula a ordem do ser381.

Após haver supostamente assumido a distinção dito versus dizer, Ricoeur volta a sugerir que o dizer nada possa referir senão um... dito, “sua linguagem própria”; e apóia-se, para tal, na pedra de escândalo “outramente”: “as duas dificuldades são indissociáveis e condensam-se no termo, no advérbio: outramente, outramente que...

Com efeito, torna-se mister arrancar-se sempre pelo outramente que... precisamente daquilo que se procura suspender ou interromper o reino; mas, ao mesmo tempo, é preciso empenhar-se em dar uma articulação discursiva àquilo em nome de que se é exigido e assegurado de poder, de dever pronunciar a anterioridade em relação ao ‘jogo que o ser conduz, o jogo da essência’...”382.

Examinemos de um pouco mais perto estas complicadas assertivas, iniciando por sua tradução em termos mais facilmente inteligíveis: Levinas sugeriria que é necessário, com a utilização da palavra “outramente”, evadir-se do domínio absoluto da onto-logia, mas, ao mesmo tempo, também é necessário que se articule discursivamente “em nome de que” tal evasão se faz, ou seja, é necessário que se pronuncie “logicamente” a precedência da ética. 

Ao que parece, vê aí Ricoeur 
uma incontornável dificuldade 
na afirmação de uma ética real.

A questão talvez não seja tão sinuosa, embora possa ser até mais complexa. Trata-se de estabelecer uma hierarquia prévia e absolutamente clara em termos de precedência do que interessa no discurso levinasiano. 

Estranhamente, ao contrário do que pensam muitos leitores pouco familiarizados com o autor, não se trata simplesmente de uma espécie de “apologia” do ético frente a outras dimensões da realidade, mas em mostrar que, em última análise, a viabilidade da própria possibilidade de pensar o que seja a realidade deriva de uma atitude ética original-anterior, poderíamos dizer: radical. 

Traduzido em termos elementares, poder-se-ia afirmar o seguinte: o fato real da conversa filosófica entre dois interlocutores a respeito de uma grave questão especulativa sobre as condições de possibilidade, por exemplo, da ética, depende de sua aproximação e da disposição mútua de encetar tal conversa; mas depende, antes e definitivamente, de que nenhum deles mate o outro antes do início da conversa e de que nenhum terceiro os aniquile - e esta não é uma questão especulativa, uma questão de especulação ética, nem uma questão de somenos importância só porque não é “especulada”, mas é, exatamente, uma questão ética fundante-determinante de modo absoluto, possibilidade de toda e qualquer especulação naquele contexto particular. Caso esse fato não seja plenamente compreendido, ocorre uma quase inevitável tendência a retroagir ao status da prescrição e suas infinitas discussões383.

O que está aqui realmente em jogo é um preconceito milenar: a idéia implícita de que toda ética se define enquanto realidade por sua dimensão de prescrição, e que a realidade do ato ético depende desta definição, e não - ou não tanto - de sua efetiva realização concreta

E que, se Levinas quiser permanecer fiel à sua profissão de fé na procedência-precedência da ética, terá de articulá-la, a bem do rigor, com a solidez de termos bem-acabados, cristais lingüísticos muito coesos e que se dão à arguta análise que os decompõem para ver se não se traíram a si mesmos.

Mas a palavra “outramente” (menos inusual no francês que no português, mas sempre exótica) escapa a esta solidez: envia adverbialmente a uma certa imponderabilidade de muito difícil consideração e acaba - como toda e qualquer palavra proferível e proferida - sendo o “dito” de seu pretenso dizer ético. 
 
Quem negará a qualquer palavra de qualquer teor sua “ancoragem” em si mesma? Toda e qualquer palavra inteligível em alguma língua contém a dimensão do dito: esta é simplesmente a condição de seu “existir”.

O que interessa a Levinas é que este é sempre um possível primeiro passo para a correlação e a simetrização absolutas- aí sim, a morte do dizer, mas um risco necessário - conforme a citação por Ricoeur: 

“A correlação do Dizer e do dito,
isto é, a substituição do Dizer ao dito,
ao sistema lingüístico e à ontologia 
é o preço que a manifestação solicita”384

Ricoeur reconhece aqui uma nova estrutura de afiliação: o dito afiliar-se-ia à chamada semântica do enunciado e o Dizer a uma pragmática da enunciação (“reconhece-se aí o dito e o Dizer”)385. Ricoeur baseia sua argumentação na oposição nominalização-verbalização que remonta ao Crátilo386. E lembra também que apresentará, em contra a proposta de assimetrização absoluta dito-Dizer, uma “certa revanche do nome”.

Adiante, Ricoeur pretende haver captado o “desafio metodológico da obra”: para que outramente que ser não se confunda com mero ser outramente - para evitar essa traição - Levinas necessita servir-se continuamente de um “desdizer”387. E a dúvida de Ricoeur é se “...o outramente que ser encontrará seu dito nas pegadas do seu desdizer”388, ou seja, se a negatividade recorrente do que tem de “desdizer para dizer” evitaria a traição referida.

Ao longo das complicadas páginas que Ricoeur dedica ao assunto – onde ressalta o sentido geral do “desdizer” em Levinas: uma “traição da traição do Dizer que se transforma em dito”, uma desconfiança básica de todas as figuras de alteridade logicamente redutíveis a termo de uma equação (citando Levinas: “outramente que ser que, desde o início, é procurado aqui e que, desde sua tradução diante de nós, se encontra traído no dito que domina o Dizer que o enuncia”389) -, Ricoeur pretende evidenciar, entre outras, uma dificuldade maior, e que seria, exatamente, o cerne da questão fundamental, exposta a seguir.

A questão central

Assim propõe Ricoeur sua questão central: “Na nossa reconstrução do discurso tecido em Autrement qu’être, encontramo-nos diante da dificuldade aparente de fazer coincidir o pré-original do discurso do Dizer com a contemporaneidade da aproximação do próximo.

Claro, o pré-original de Levinas é descronologizado, destemporalizado tanto quanto é possível. Mas vejo aí uma verdadeira dificuldade: a afinidade entre a “diacronia refratária a toda sincronização”(p. 23) e aquilo que não posso, ao que parece, pensar senão como contemporaneidade da aproximação, é questionável. Ora, é sobre esta questão que se abre a ética, ou melhor, é precisamente ela que abre a ética”390

O próprio Ricoeur ilustra sua questão em outros termos: “repitamos a dificuldade: como fazer coincidir o discurso exposto no Argumento em favor da irredutibilidade do Dizer ao dito com o discurso sobre a proximidade, a relação dissimétrica da responsabilidade e, coroando a obra, a substituição?”391. Ricoeur aponta então para a irrupção, no discurso, dos famosos temas do terceiro e da justiça, que seriam, segundo ele, como que corretivos para esta dificuldade392.

E destaca então a “subida a extremos”: “a subida aos extremos é rápida: a proximidade é nomeada ‘obsessão’; mediante essa súbita ruptura, a diferença entre o mesmo e o outro torna-se não-indiferença. Na obsessão pelo próximo efetua-se o Dizer...”393 – “um desdobramento do pático em patético e patológico”394. Inicia-se então, em Autrement... uma gramática de exceções e excessos, que traduz o temor da nova traição e equiparação lógica do outro ao mesmo395

Os temas recorrentes do terceiro e da justiça serão os corretivos dessa situação em meio a uma situação classificada por Ricoeur como de “terrorismo verbal”396

Ao fim e ao termo, o retorno simultaneamente triunfal e subreptício do Dito, segundo Ricoeur: “Já apresentamos o suficiente para ousar formular claramente a hipótese que segue: a posição do terceiro, lugar de onde fala a justiça, é também o lugar de onde fala Levinas, na medida em que seu Dizer se inscreve num Dito que é o livro que nós lemos”397 – e aduz trechos do livro para comprovar sua hipótese398. Permite-se, ao fim, indagar:

“Repetição da ontologia?”399

A idéia de Ricoeur é que há, no Levinas de Autrement... 

“uma quase ontologia, 
que pode ser caracterizada 
como pós-ética”400.

O autor de O si-mesmo como um outro pretende “discerni-la em alguns temas – no sentido forte da palavra ‘tema’, ‘temático’, ou seja, Dito -, que, a meu ver (Ricoeur), excedem a ética da responsabilidade. Retenho quatro deles que aqui me limito a nomear.

Em primeiro lugar vem a bondade
e o recurso ao Bem platônico que, 
como se sabe, está além da ousia...
A seguir vem o Infinito visado,
ao que parece, além do próximo e do terceiro, 
segundo a flecha do desmesuramento 
de toda tropologia violenta... 

Depois vem a ipseidade, que se alarga sobre a terceira pessoa, que o Tu de Buber corre o risco de captar numa intimidade por demais inocente... 

Enfim, e para culminar, o Nome de Deus, 
enquanto faz irrupção no discurso filosófico 
que Levinas sustenta. 
Este nome excepcional marca a revanche 
do nome sobre a condenação inicial da denominação, 
tal qual serviu de máquina de guerra
contra a ontologia”401.

Com isso, Ricoeur considera-se praticamente satisfeito em seu intento em demonstrar que, por trás da primazia da ética, ocorre uma primazia rediviva, anterior e maior da ontologia; e chega talvez a sugerir que Levinas de tal não se apercebe. 

E, com isso também,
oportuniza um breve e incisiva discussão 
sobre o sentido desta posição
e algumas lições a serem tiradas dela.

Uma breve discussão: a recorrência da restauração

Em nosso artigo “Sobre novas e velhas restaurações – sobre o conceito de verdade em Alain Badiou”402, procuramos evidenciar de que forma o pensamento tende a apoiar-se em si mesmo para, correndo todos os riscos inerentes à não-fidelidade de sua vocação original – vocação que consiste em dirigir-se de si para fora de si - abandonar-se e se reabandonar à sua segurança original. 

A questão fundamental é: o que motiva, exatamente, esta leitura de Autrement... por parte de Ricoeur? Uma dissensão de fundo? 

Mas então até mesmo esta discussão seria supérflua; bastaria a caracterização da diferença para que esta ficasse suficientemente caracterizada, sem a necessidade de longas e complicadas análises. Além disso, Ricoeur diz concordar, em muitas ocasiões, com idéias expressas por Levinas. Basear-se-ia então em uma questão de diferença de detalhes? 

Mas então, provavelmente, a linguagem não assumiria o fervor de certas passagens (“será que mostramos a contento que o Dizer da responsabilidade não pode acrescentar ao desdizer de toda relação igualante senão uma tropologia revulsiva desdobrada da ferida ao ultraje? Será que mostramos a contento que nada está dito sobre a responsabilidade como tema? 

Que o dizer da responsabilidade se esgota nesta subida aos extremos do discurso da maldade?”403). A questão nos parece bem mais profunda e decisiva. 

Nós diríamos: a questão é visceral. Ricoeur parece não suportar a “precariedade” de um sentido que se derrama desde um universo de significância que não se ancora em uma solidez auto-suficiente, aquilo que ele chamaria de “ontologia” e de “dito”. 

Todo o esforço do livro, todo seu discurso insinuante, no fundo, se reduz a isso: tentar mostrar de como a sagrada solidez do ser em última análise determina o possível e o real, apesar de todas as sutilezas e dos cuidados que se queira tomar com a questão da alteridade enquanto tal.

As ponderações que antes aduzimos, especialmente a situação de uma precedência da ética frente à ontologia, e não de um mero “embate heraclítico-ontológico” entre ambas, elemento claramente perceptível já a uma primeira leitura da obra levinasiana, não são suficientes; há que retornar ao porto seguro.

Isto é feito, ao fim do estudo,
com a alegação de que Levinas, 
para poder falar de ética, 
socorre-se de eminências ontológicas indiscutíveis:
a bondade, o Infinito, a ipseidade-socialidade 
– a subjetividade ética? 
- e o Nome de Deus. 

Mas a mais elementar das leituras de Levinas permite perceber que, se estas realidades têm valor – e indiscutivelmente o têm – não é porque redeterminam o ontológico nele mesmo, mas, exatamente, porque transcendem a órbita de poder que é meramente ser

A “bondade” nada mais é do que o ato ético concreto – e seu extremo, a substituição, significa até mesmo a abdicação do ser próprio em função da alteridade de Outrem: ética extrema; o Infinito, em sentido levinasiano, é o desregular definitivo da autodeterminação ontológica-totalizante da realidade, como cremos haver demonstrado à larga em vários outros lugares404; a “ipseidade” (que não é a ipseidade sutilmente reflexiva e especulativa de O si-mesmo como um outro, mas, antes de mais nada, um coágulo de auto-construção que tendo de escolher entre o ser e o tempo, escolhe definitivamente o tempo no sentido de Rosenzweig) é a subjetividade que corre o risco extremo de se destruir esvaziar-se lamentavelmente de ser - enquanto auto-sustentação, para redescobrir, em seu construir-se desde a sustentação de outrem, a possibilidade do sentido para além de sua auto-segurança (este é o tema, entre outros, de todo Autrement..., e exatamente neste ritmo, caso seja considerado o conjunto da obra levinasiana); e, finalmente, 

o Nome de Deus – 
que nem ao menos pode ser escrito,
quanto mais “determinado” – permanece obviamente
para bem além da órbita de poder da onto-logia405,
como, aliás, é de se esperar fosse claro a Ricoeur, 
teólogo além de filósofo.

Assim, os elementos escolhidos por Ricoeur para exemplificar a “quase-ontologia” de Levinas funcionam em realidade como incisivos contra-exemplos, a não ser que esteja contaminados a priori de um excessivo investimento logoreferenciado – caso em que tenderiam a se confundir com as destilações imanentes da modernidade e se anulariam enquanto repositórios de realidade propriamente dita, imergindo no mundo mais confortável e indiferenciado da analogia. 

Bondade, Infinito, ipseidade/
socialidade/subjetividade ética e Nome de Deus
– quais grandezas, ainda que cuidadosamente
escolhidas,
estariam mais longe do reino da ontologia 
ao qual Levinas constantemente se refere 
em uma atrevida atitude
que Ricoeur sugere até mesmo, 
em certos pontos, avalizar?

Eis que estamos portanto, novamente, na estaca zero. Os exemplos mais eminentes, que deveriam sustentar todo o discurso, escapam decisivamente da discursividade que os tenta apreender. Nem ao menos estes supereminentes Ditos são Ditos sem se dizerem, como bem o mostrou Rosenzweig em Der Stern der Erlösung406

Ainda uma palavra sobre a pretensa (im)possibilidade da memória em Levinas, impossibilidade afirmada na imemorialidade de um passado eminentemente outro e não-sincronizável: “com a justiça não é possível o retorno da lembrança, além da condenação do memorável? Senão, como Emmanuel Levinas poderia ter escrito a sóbria dedicatória ‘`a memória dos entes mais próximos...’?”407

É possível aventar 
uma resposta absolutamente simples, 
como a questão é simples: com a justiça é possível
esperar o retorno da lembrança, 
além da condenação do memorável.

O ato concreto da justiça, para Levinas,
é também a memória solidificada no presente
sem com isso se confundir com o presente

Tal como, em evocações benjaminianas, um conjunto de ferros retorcidos de um monumento justo destruído pela barbárie retrai à memória do presente a realidade do monumento, porém sem permitir confusão entre a presente realidade do monumento – os ferros retorcidos – e a realidade evocada, vestigial na massa informe do ferro. Duas realidade inconfundíveis, reais, diferentes408

A Diferença da multiplicidade do real 
que não se entrega a jogos lingüísticos 
de nenhuma espécie.

Conclusão: ainda outramente

Ricoeur ataca a construção levinasiana exatamente com armas que pertencem a um tempo que esta, levada a suas conseqüências mais sérias, acaba de deixar para trás: reflexões e auto-reflexões cuidadosas, estruturas bimodais de pensamento, jogos de polaridades semânticas, imagens constrastantemente elucidativas, súbitas detenções argumentativas em torno a nós algo mais complicados que o meramente “normal”, intrusões sutis no corpo da argumentação, como se essa argumentação fosse a coisa argumentada mesma.  

Outramente é um livro que traduz um determinado espírito filosófico: o da impossibilidade do desgarramento ético do ser de si mesmo, ou o aferramento à pouca segurança que é ainda disponível nestes tempos inquietos. 

Seus questionamentos maiores – inclusive, às últimas páginas, sobre a recorrência ameaçadora do “Há”(“il y a”)409, parecem ameaçar com o limbo não do “há”, mas do vácuo de ser ou do buraco negro do sem-sentido, ao qual a resposta só pode ser a de um outro sentido – elucidam a motivação de Ricoeur em circunscrever o conjunto da obra de Levinas a uma moldura filosófica respeitável.

A isto, seja relembrada a primeira citação deste livro: “(O projeto de Levinas) não era suplantar a filosofia, mas sim chocá-la, expondo-a a algo diferente dela própria”410: o Diferente. A apreciação de Ricoeur parece nos dar razões para acreditar que esta meta foi cumprida. Que não seja, enfim, mal-entendida.
1999

Ricardo Timm de Souza
1997
Publicado originalmente em Veritas 
– Revista de Filosofia da PUCRS,
junho/1999

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte:
Sentido e Alteridade
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
Porto Alegre - 2009
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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