I - ESTRUTURAS
PRIMEIRO ENSAIO - O delírio da solidão: o assassinato e o fracasso original
Como introdução: no extremo
Em um de seus livros, conta-nos Lie Wiesel a seguinte história:
“...O Oberkapo do 52. Kommando era um holandês: um gigante de mais de dois metros de altura. Setecentos prisioneiros trabalhavam sob suas ordens e gostavam dele como de um irmão. Ninguém havia sofrido uma agressão de sua parte, nem ouvido uma maldição de sua boca.
Ele tinha sob seu serviço um jovem criado, um “Pipel”, como era chamado, uma criança com os traços do rosto bem desenhados, que não se adequava ao nosso campo de concentração. (...)
Um dia voou pelos ares a estação elétrica de Buna. Chamada a Gestapo, concluiu esta por sabotagem. Localizou-se uma pista que conduzia ao bloco do Oberkapo holandês. Lá foi descoberta uma considerável quantidade de armas.
O Oberkapo foi preso. Torturado em vão ao longo de várias semanas, não forneceu nenhum nome. Foi enviado para Auschwitz e lá desapareceu.
Mas seu ajudante permaneceu em nosso campo de concentração, na prisão. Igualmente torturado, permaneceu ele também calado. A SS condenou-o, juntamente com dois outros prisioneiros que haviam sido encontrado com armas, à morte.
Certo dia, ao voltar do trabalho, vimos, montadas na praça principal do campo, três forcas. Ao redor, os SS com ameaçadoras armas, a cerimônia normal. Três candidatos à morte, entre os quais o pequeno Pipel, o anjo de olhos tristes.
Os SS pareciam preocupados, mais inquietos que de costume. Enforcar uma criança na frente de milhares de espectadores não era coisa de pouca monta. O chefe do campo leu a sentença. Todos os olhos estavam dirigidos ao menino. Ele estava cor de cinzas, mas quase quieto, e mordia os lábios. A sombra da forca cobria-o completamente.
Desta vez, o Lagerkapo negou-se a servir de carrasco. Três SS ocuparam esta posição.
Os três condenados subiram simultaneamente sobre suas cadeiras. Três pescoços foram envolvidos simultaneamente pelas cordas da forca.
Começou então a marcha diante dos executados. Os dois adultos não mais viviam. Suas línguas azuladas pendiam fora da boca. Mas a terceira corda não pendia imóvel: o leve menino ainda vivia...
Mais de meia hora ficou ele lá pendurado e lutou, frente aos nossos olhos, entre vida e morte. E nós tínhamos de olhá-lo no rosto. Ele vivia ainda, quando passei por ele. Sua língua ainda estava vermelha, seus olhos ainda não estavam apagados.
Nesta noite, a sopa teve gosto de cadáver.”9
“...O Oberkapo do 52. Kommando era um holandês: um gigante de mais de dois metros de altura. Setecentos prisioneiros trabalhavam sob suas ordens e gostavam dele como de um irmão. Ninguém havia sofrido uma agressão de sua parte, nem ouvido uma maldição de sua boca.
Ele tinha sob seu serviço um jovem criado, um “Pipel”, como era chamado, uma criança com os traços do rosto bem desenhados, que não se adequava ao nosso campo de concentração. (...)
Um dia voou pelos ares a estação elétrica de Buna. Chamada a Gestapo, concluiu esta por sabotagem. Localizou-se uma pista que conduzia ao bloco do Oberkapo holandês. Lá foi descoberta uma considerável quantidade de armas.
O Oberkapo foi preso. Torturado em vão ao longo de várias semanas, não forneceu nenhum nome. Foi enviado para Auschwitz e lá desapareceu.
Mas seu ajudante permaneceu em nosso campo de concentração, na prisão. Igualmente torturado, permaneceu ele também calado. A SS condenou-o, juntamente com dois outros prisioneiros que haviam sido encontrado com armas, à morte.
Certo dia, ao voltar do trabalho, vimos, montadas na praça principal do campo, três forcas. Ao redor, os SS com ameaçadoras armas, a cerimônia normal. Três candidatos à morte, entre os quais o pequeno Pipel, o anjo de olhos tristes.
Os SS pareciam preocupados, mais inquietos que de costume. Enforcar uma criança na frente de milhares de espectadores não era coisa de pouca monta. O chefe do campo leu a sentença. Todos os olhos estavam dirigidos ao menino. Ele estava cor de cinzas, mas quase quieto, e mordia os lábios. A sombra da forca cobria-o completamente.
Desta vez, o Lagerkapo negou-se a servir de carrasco. Três SS ocuparam esta posição.
Os três condenados subiram simultaneamente sobre suas cadeiras. Três pescoços foram envolvidos simultaneamente pelas cordas da forca.
“Viva a liberdade!”- gritaram os dois adultos.
O menino permaneceu calado.
‘Onde está Deus, onde está ele?’, perguntou alguém atrás de mim.
A um sinal do Lagerchef foram as cadeiras retiradas.
Fez-se absoluto silêncio em todo o campo.
O menino permaneceu calado.
‘Onde está Deus, onde está ele?’, perguntou alguém atrás de mim.
A um sinal do Lagerchef foram as cadeiras retiradas.
Fez-se absoluto silêncio em todo o campo.
No horizonte, o sol se punha.
“Retirar bonés!”- gritou o Lagerchef.
“Retirar bonés!”- gritou o Lagerchef.
Sua voz soou baixa. Nós chorávamos.
“Colocar bonés!”
“Colocar bonés!”
Começou então a marcha diante dos executados. Os dois adultos não mais viviam. Suas línguas azuladas pendiam fora da boca. Mas a terceira corda não pendia imóvel: o leve menino ainda vivia...
Mais de meia hora ficou ele lá pendurado e lutou, frente aos nossos olhos, entre vida e morte. E nós tínhamos de olhá-lo no rosto. Ele vivia ainda, quando passei por ele. Sua língua ainda estava vermelha, seus olhos ainda não estavam apagados.
Atrás de mim ouço o mesmo homem perguntar:
‘Onde está Deus?’
E ouvi uma voz atrás de mim responder:
“Lá - lá está ele, na forca’.
‘Onde está Deus?’
E ouvi uma voz atrás de mim responder:
“Lá - lá está ele, na forca’.
Nesta noite, a sopa teve gosto de cadáver.”9
A insuficiência da descrição fenomenológica e da aproximação hermenêutica
O fato “puro” de um assassinato perpetrado conduz a fenomenologia descritiva dolorosamente até seus limites. Se a descrição fenomenológica do acontecido for perfeita, igualmente perfeita será seu acabamento, que consistirá, exatamente, em: encontrar-se consigo mesma, com suas intenções filosóficas, ao fim de seu trajeto, reiterando sua vocação e reafirmando sua habilidade original. Pois as “sobras” e circunstâncias de uma tal acontecimento - aquilo que ainda poderia restar ao processo de descrição - pertencem tão pouco ao essencial do fato consumado quanto uma descrição de tal fato por um espectador casual a curta distância.
Há um excesso de concentração no acontecido,
um excesso e um peso que o discurso não acompanha.
A descrição pode ser perfeita
- e, quanto mais perfeita for, mais insuficiente será;
quanto mais dignos os procedimentos que utilize,
mais distante permanecerá da coisa mesma.
E não é pequeno sinal de seu refinamento o fato de não invadir - não poder faze-lo - o essencial da questão. Uma descrição fenomenológica de um assassinato completa-se na medida em que o núcleo do factum permanece intocado.
Quanto à aproximação hermenêutica, sem dúvida contribuirá para que se possa distinguir de forma definitiva esse fato de todos os outros; suas camadas sucessivas contribuirão para que o essencial retorne contínua e precisamente à sua posição central, essencial, ao seu estatuto de essencialidade irredutível, onde “essencial” significa, aqui: primeiro, original, primigênio. Trata-se do fato que se intenta interpretar, mas, antes de ser interpretado, trata-se de um fato real, de um factum, ou seja, uma dado que se inscreve de uma vez para sempre na ordem dos acontecimentos acontecidos, irrepetíveis e irrevogáveis em sua unicidade e particularidade.
Tanto a descrição fenomenológica como a aproximação hermenêutica em suas linhas gerais provam aqui sua validade: contribuem enfim para isolar o particular acontecimento do que é inessencial embora importante: os antes e depois, as circun-stâncias, as ex-plicações, causas e conseqüências, julgamentos, justificativas e legitimações com seus contrários: não-justificativas e não-legitimações.
Ao fim e ao cabo, permanece o fato nu,
concentrado em si mesmo, em sua verdade não passível
de ser suavizada - um dado que nenhum logos preenche
ou esvazia de sentido, uma inscrição,
acontecida no decorrer do tempo, na ordem da eternidade.
Do fenômeno à metafenomenologia
E, não obstante, o acontecimento do assassinato clama sua condição de excepcionalidade no espectro dos fenômenos observáveis da realidade. Trata-se, em seu instante preciso, de uma severa detenção da roda do tempo, uma hesitação fundamental, a concentração extrema de instante em si mesmo, sem sucedâneos justificantes, afastado do horizonte dos acontecimentos lineares por uma descrição e uma interpretação filosóficas rigorosas que nele provam seus limites.
Mas porque “excepcionalidade”? Talvez porque, como no caso de outros acontecimentos-limite, abra-se aqui uma brecha na ordem onto-lógica. Nenhum dos conceitos maiores da filosofia permanece como era até então - liberdade e necessidade, ser, vida e morte, ética e ontologia, lógica e cosmologia, tudo tem de ser reescrito. O ser do assassinado reduzido à sua inércia definitiva, “pré-lógica”; o logos do observador arrastado violentamente a seus limites: entre o ser e o logos abre-se um vácuo, um espaço sem anterioridades ou ligações perceptíveis com outros tempos e espaços, com outros mundos de significação mais compreensíveis.
Estamos frente à incompreensibilidade lógica radical, por mais que o logos reassuma imediatamente sua função de tentar neutralizar o incompreensível: será já tarde demais - o instante em questão é infinitamente curto, sua extensão racional é apenas sua condição de definitivo. Não há como matematizá-lo: ele é seu próprio universo e seu próprio parâmetro.
Mas que universo é esse? Um universo na verdadeira extensão da palavra, um novum. Ali se desenrola um drama que não se conhece anteriormente: um drama de limites. Estamos, aí, exatamente nestes limites.
Nossa condição humana nos leva até eles. Há de ir além - além de qualquer interpretação e descrição, de seguir em frente, apesar de tudo; há de se assumir os paradoxos que emergem da inquietação extrema dos limites no momento em que acontecem.
Há que tentar aprofundar eticamente o mergulho no vácuo que o preciso acontecimento de um assassinato abre à nossa frente.
O assassinato é uma questão ética por excelência, uma questão metafenomenológica, que envolve sempre mais de um solitário perpetrador. Há ali a vítima, ainda que fale, é reduzida à posição de sem-voz e, portanto, de sem-logos; e, não obstante, é na vítima exatamente que o resultado final do ato se consubstancia.
Se a descrição e a interpretação são dependentes dos acontecimentos onde, de algum modo, a vítima conservaria a palavra, ainda que em mero nível corroborativo ou negador, aqui, na precipitação metafenomenológica do instante inigualável, não há palavra de que lançar mão; a luta pela aniquilação da alteridade do Outro é uma luta eminentemente muda.
E a metafenomenologia é,
em certa dimensão, a arte da aproximação
de atos éticos, ainda que mudos.
A luta
"O assassinato é a contradição no auge da violência.
Nele a violência vai até ao absurdo e inverte-se em
impotência. Nele se chocam e se 'provam' o poder
ontológico e o poder ético."
L. C. SUSIN10
Nele a violência vai até ao absurdo e inverte-se em
impotência. Nele se chocam e se 'provam' o poder
ontológico e o poder ético."
L. C. SUSIN10
As bases
O assassinato, como ato extremamente concreto, baseia-se sobre fatos também concretos ao extremo. É necessário, para que ocorra, que uma série de dados "objetivos" se dêem; é sobre esses, a partir de sua articulação sob a forma de simultaneidade, que se constrói sua violência.
Qual é, agora, a condição primordial que pode dar origem a este ato extremo? Já o vimos rapidamente: antes de tudo, apluralidade - ninguém mata ninguém se estiver solitário em uma ilha deserta, e o suicídio pertence a uma esfera totalmente diferente de realidade, que não cumpre analisar aqui. Haverá, assim, no mínimo dois: o agente e o paciente do ato.
Mas algo mais é necessário, a saber: que tanto agente quanto paciente estejam na posse de suas vidas: estejam vivos.
Estar vivo para o agente significa:
ter a capacidade de organizar o seu ato
e perpetrá-lo, ainda que tal se dê de forma simultânea.
Para o paciente, estar vivo significa aqui, antes de tudo: ser humano ou seja, apresentar ao agente alguma possibilidade de resistência real ontológica - como na guerra entre iguais - ou ética - como na guerra ou no combate entre desiguais.
Todavia, o instante do assassinato11 é sempre ético, pois significa, exatamente, que as resistências ontológicas foram vencidas - o adversário (já) está desarmado, derribado, humilhado, desigual. É o instante daverdade uma verdade que se inscreve definitivamente na história. Sua única resistência que ainda persiste é aquela que advém exatamente de sua incapacidade de reagir de igual para igual.
Só pode agir de diferente para igual. Não se trata, ou não se trata mais, de um jogo de iguais a diferença imiscuiu-se definitivamente na situação. Trata-se de um cara-a-cara dediferentes e, precisamente por isso, de um frente-a-frente de gênero único, ético. A condição do agente pode ter passado do ter de se defender para não morrer à situação de poder escolher entre matar ou não o oponente (lembremos das antigas lutas de gladiadores); o drama pode mesmo ter-se iniciado nessa segunda fase, quando, por exemplo, um adulto se coloca a questão se matará ou não uma criança indefesa.
Em ambos os casos, a originariedade da questão é a assimetria que emerge da diferença de condições entre os participantes do drama; e é essa assimetria incontornável que conduz a questão indiscutivelmente ao estatuto ético.
Só existe ética
- e, por extensão, o seu "contrário",
entre "plurais", e plurais definitivamente diferentes.
E, se é o encontro entre diferentes que traduz o tempo propriamente humano, trata-se de uma inscrição definitiva de uma certa ordem de acontecimentos na ordem do tempo.
Esta ordem não pode ser invertida: também ela é única, como único é o instante em que a verdade do assassinato se oferece à inteligibilidade que não pode negá-la. Nada fará com que o tempo volte atrás e o vietkong atingido na cabeça pelo oficial sul-vietnamita - na conhecida cena real da guerra do Vietnã - levante-se e inverta os papéis daquele acontecimento marcante e definitivo em que se constitui seu assassinato frente às câmaras.
Como tudo o que é humano, trata-se de uma acontecimento absolutamente único , e não há força capaz de negá-lo nem sistema capaz de explicá-lo de forma a não sobrar nada - pois o "nada" em que se constitui o assassinado - exatamente por não se confundir com nada mais - não pode ser apagado do conjunto total de acontecimentos que preencheram a linha infinita de instantes que antecederam o preciso instante que agora vivemos.
As condições
Algumas condições são, agora, necessárias para que o assassino potencial cometa seu crime; ele deverá aproveitar-se da não-potência do outro para tentar reduzi-lo a “nada”.
E isso porque essa não-potência do outro, não-potência de ser (forte, hábil, armado...) não é “nada”, mas “algo” - exatamente: Alteridade ética (caso contrário, não haveria a vontade de reduzir o Outro àquilo que, para a cosmovisão ontológica, mais se assemelha ao Nada: a morte). E Alteridade ética irredutível à vontade de aniquilação do agente - do Mesmo - que pretende anulá-la. É isso que conduz ao ato extremo: “...é o “outro” que se assassina, aquele que se recusa à apropriação e totalização, o não-neutralizável”12..
Pois é exatamente isso que o assassino pretende: anular a Alteridade do Outro absolutamente, sua visage (olhar ou rosto em sentido levinasiano)13: aquilo que prova que o Outro, combalido em toda sua dignidade de ser, mantém intocada sua condição de ser Outro com relação a quem o observa ou que tem sobre ele o poder de vida e morte.
Assim, “o rosto (visage) recusa-se à posse, aos meus poderes. Na sua epifania, na expressão, o sensível ainda captável transmuda-se em resistência total à apreensão. Essa mutação só é possível pela abertura de uma dimensão nova. Com efeito, a resistência à apreensão não se verifica como uma resistência inultrapassável como dureza do rochedo contra a qual o esforço da mão se quebra, como o afastamento de uma estrela na imensidão do espaço”14 - como vimos, os poderes “normais” estão já definitivamente desequilibrados. “A expressão que o rosto introduz no mundo não desafia a fraqueza dos meus poderes, mas o meu poder de poder. O rosto, ainda coisa entre as coisas, atravessa a forma que entretanto o delimita. O que quer dizer concretamente: o rosto fala-me e convida-me a uma relação sem paralelo com um poder que se exerce, quer seja fruição, quer seja conhecimento”15.
Quando toda a racionalidade da força cessou com a vitória de um dos lados - do agente -, ou quando esta racionalidade nunca teve vez pelo desequilíbrio absoluto e desmedido das forças daqueles que configuram esse drama, é exatamente aí que a voz do fraco se faz ouvir; não uma voz física, mas uma voz ética, um convite à manutenção da pluralidade, um convite a uma relação com a diferença, o que é, sempre, uma oferta de paz.
“E, no entanto, a nova dimensão abre-se na aparência sensível do rosto. A abertura permanente dos contornos da sua forma na expressão aprisiona numa caricatura essa abertura que faz explodir a forma. O rosto no limite da santidade e da caricatura oferece-se, portanto, ainda num sentido a poderes... O assassinato visa ainda um dado sensível e, entretanto, encontra-se perante um dado cujo ser não poderá suspender-se por uma apropriação. Encontra-se perante um dado absolutamente não neutralizável”16.
A oferta de paz e relação pode ser rejeitada, porque é apenas uma oferta, e pode ser violentamente negada: não se estabelece com a solidez neutra da pedra, mas é em sua “essência” não-neutralizável - sua dimensão primordial é sua posição particular e inconfundível frente ao potencial assassino.
Uma posição que, por não indiferente,
desata a contenção de forças do agente poderoso,
e pode instigar à vontade extrema de apropriação
- o assassinato.
Essa vontade extrema de apropriação diferencia-se substancialmente da lógica da apropriação dos seres e dos objetos que estejam sujeitos à vontade do forte - “A ‘negação’ efetuada pela apropriação e pelo uso mantinha-se sempre parcial. A tomada que contesta a independência da coisa conserva-a ‘para mim’. Nem a destruição das coisas, nem a caça, nem o extermínio de seres vivos visam o rosto (visage), que não é do mundo. Revelam ainda trabalho, têm uma finalidade e respondem a uma necessidade”17.
Colho o fruto, caço o animal, em princípio, para me alimentar deles; derrubo a madeira para construir a casa; lavro o campo para arar; mas, em nenhum desses casos, enfrento-me com o tipo de assimetria que me coloca em uma posição de ser convidado a estabelecer relação, e relação ética18 - pois a relação ética só se pode estabelecer entre alguém e o Outro “que não é do mundo”, ou seja, que não pertence à ordem do apreensível como ente a partir do manuseio ou do logos - aqui, funções de uma mesma potência objetivante.
Literalmente, para além de qualquer fenomeno-logia, o Outro é “de outro mundo”, onde a relação intencional não mantém sua validade. O olhar (visage) não se mostra nem se dá à intencionalidade. Ninguém circunscreve um olhar, e todas as representações pictóricas deste não dão conta de sua realidade, ou seja, de seu sentido ético. Está fora do âmbito dos poderes do agente, e por isso pode provocá-lo ao extremo.
O exercício
Em contraposição às negações dialéticas parciais
pelas quais o ser humano constrói sua vida
a partir da produção de seu alimento
e da construção de sua casa,
“(só) o assassinato aspira à negação total.
A negação do trabalho e do uso, tal como a negação da representação, efetuam uma tomada ou uma compreensão, assentam na afirmação ou visam-na. Matar não é dominar mas aniquilar, renunciar em absoluto à compreensão”19 - a negação absoluta da paz que se instauraria se a oferta de encontro fosse aceita. Trata-se da mobilização de todo o poder possível por parte do criminoso: um poder que se inverte em loucura e impotência - “O assassinato exerce um poder sobre aquilo que escapa ao poder. Ainda poder, porque o rosto (visage) exprime-se no sensível; mas já impotência, porque o rosto rasga o sensível. A alteridade que se exprime no rosto fornece a única ‘matéria’ possível à negação total.
Só posso querer matar um ente
absolutamente independente,
aquele que ultrapassa infinitamente os meus poderes
e que desse modo não se opõe a isso,
mas paralisa o próprio poder de poder.
Outrem é o único ser que eu posso querer matar”20 - porque, definitivamente, não é “eu” e não me posso de nenhuma forma confundir com ele, como posso, em graus diversos de projeções e de delírio, confundir-me com o mundo que me cerca, apoiado que sou em minha tarefa de conquistar o mundo por um intelecto poderoso que, no dizer do filósofo antigo, “é de certa forma todas as coisas”. Aqui, não se trata da questão de ser, mas, fundamentalmente, de não ser eu nem o conjunto de minhas potências.
“Mas em que é que a desproporção entre o infinito e os meus poderes difere da que separa um obstáculo muito grande de uma força que se aplica a ele? Seria inútil insistir na banalidade do assassinato, que revela a resistência quase nula do obstáculo. Esse incidente, o mais banal da história humana, corresponde a uma possibilidade excepcional - dado que aspira à negação total de um ser. Não diz respeito à força que esse ser pode possuir enquanto parte do mundo. Outrem, que pode soberanamente dizer-me não, oferece-se à ponta da espada ou à bala de revólver e toda a firmeza inabalável do seu ‘para si’ com o não intransigente que opõe, apaga-se pelo fato de a espada ou a bala terem tocado nos ventrículos ou nas aurículas de seu coração”21. Tudo indica que, uma vez esboçado o drama, este se desenrolará até o fim, com a morte do paciente que sofre o ato violento.
Sua oposição eloqüente esbarra em sua materialidade, e ele já não é resistência considerável: acabará por ser traído por sua materialidade e desabará atingido pela desestruturação de suas entranhas ontológicas. Trata-se do paradoxo de seu “poder sem poder”, poder desafiar o assassino sem poder impedir a consumação de seu ato.
A origem desta contradição candente é que “na contextura do mundo, ele (a vítima, R.T.S.) não é quase nada. Mas pode opor-me uma luta, isto é, opor à força que o ataca, não uma força de resistência, mas a própria imprevisibilidade de sua reação.
Opõe-me assim não uma força maior - uma energia avaliável e que se apresenta, por conseguinte, como se fizesse parte de um todo - mas a própria transcendência do seu ser em relação ao todo; não como um qualquer superlativo de potência, mas precisamente o infinito da sua transcendência”22.
É de se destacar o uso que faz Levinas do termo infinito, que nada tem a ver com o conceito normalmente estudado na tradição filosófica, mas é, antes: o que se opõe desde si mesmo, eticamente, a uma totalidade de sentido em seu processo sintético-unificante de totalização - a condição irredutivelmente ética da Alteridade propriamente dita, insubsumível como dimensão de uma ordem que a englobe.
O Infinito é a expressão da Alteridade: “Esse infinito, mais forte que o assassinato, resiste-nos já no seu rosto, é o seu rosto, é a expressão original, é a primeira palavra: ‘não cometerás assassinato’”23 - ou seja: preservarás minha integridade diferente da tua, apesar de toda a provocação que a minha mera existência possa significar para a tua totalidade, e apesar de todo o meu sentido que tu não compreendes mas com o qual podes vir a te relacionar.
“O infinito paralisa o poder
pela sua infinita resistência ao assassinato que,
dura e intransponível, brilha no rosto de outrem,
na nudez total de seus olhos, sem defesa,
na nudez da abertura absoluta do transcendente”24 -
transcendente à minha totalidade, às minhas possibilidades e a toda criatividade de meu jogo integrador do Diferente.
Limite e nascimento da liberdade
É nesse momento que chegamos ao limite das possibilidades do assassinato. “Há uma relação, não com uma resistência muito grande, mas com alguma coisa de absolutamente Outro: a resistência do que não tem resistência - a resistência ética. A epifania do rosto (visage) suscita a possibilidade de medir o infinito da tentação do assassinato, não como uma tentação de destruição total, mas como impossibilidade - puramente ética - dessa tentação e tentativa”25.
Qual é, então, a diferença entre uma resistência de oposição, real, e uma resistência de alteridade ao projeto de assassinato? “Se a resistência ao assassinato não fosse ética, mas real, teríamos uma percepção dela com tudo aquilo que na percepção redunda em subjetivo. Ficaríamos no idealismo de uma consciência da luta e não em relação com Outrem, relação que pode transformar-se em luta, mas que já ultrapassa a consciência da luta. A epifania do rosto é ética. A luta de que o rosto pode ser a ameaça pressupõe a transcendência de expressão”26.
Estamos agora em um momento extremamente delicado do discurso. Prepara-se a subversão de uma tradição milenar, aquela, pregada já por pensadores tão antigos como Heráclito, que afirma na luta a origem mais primeva da realidade: “O rosto ameaça de luta como de uma eventualidade, sem que tal ameaça esgote a epifania do infinito, sem que dela formule a primeira palavra. A guerra supõe a paz, a presença prévia não-alérgica de Outrem; não assinala o primeiro acontecimento do encontro”(grifo nosso)27.
A guerra supõe a antecedência da paz, não uma paz que meramente a prepare, mas a paz que se oferece enquanto possibilidade de manutenção das diferenças originais e, a partir daí, proponha o acontecimento do encontro entre os diferentes. Pois, contrariamente à consciência dos séculos e à “lógica” dos fatos, não pode haver guerra, se antes não se der a pluralidade primigênia de ao menos “dois diferentes” que podem a vir entrar em guerra - ou manter e promover a paz.
Não pode haver assassinato,
sem que antes, como destacamos ao início,
não hajam dois diferentes postos
em uma posição, de alguma forma,
“face-a-face”.
E aí, exatamente, repousa a anterioridade do face-a-face com relação a tudo o que é humano - já que é neste esboço de encontro que o humano enquanto tal: o ético (ou seja, o propriamente humano) anterior à totalidade da guerra - pode vir a se definir como realidade determinante do futuro. Um futuro de paz que promete corroborar a impossibilidade de matar.
“A impossibilidade de matar não tem uma significação simplesmente negativa e formal; a relação com o infinito ou a idéia do infinito em nós condiciona-a positivamente”28 - em outros termos, é possível que percebamos em nós a incapacidade incontornável de abarcar o universo do diferente. “O infinito apresenta-se como rosto na resistência ética que paralisa os meus poderes e se levanta dura e absoluta do fundo dos olhos, sem defesa na sua nudez e na sua miséria.
A compreensão dessa miséria e dessa fome
instaura a própria proximidade do Outro”29.
Mas esta apresentação da Alteridade não é formal, estática nem meramente figurativa; ela se dá como discurso original, fonte da linguagem, desneutralização do encontro.
O discurso não surge por um capricho do Logos solitário que organiza a realidade externa “em sua consciência” e expressa essa organização a quem quiser, ou puder, ouvir - mas origina-se exatamente antes que o logos assenhore-se de sua solidão logo-cêntrica. “...é assim que a epifania do infinito é expressão e discurso.
A essência original da expressão e do discurso
não reside na informação que eles forneceriam
sobre um mundo interior e escondido.
Na expressão, um ser apresenta-se a si mesmo. O ser que se manifesta assiste à sua própria manifestação e, por conseguinte, apela para mim. Essa assistência não é o neutro de uma imagem, mas uma solicitação que me envolve a partir da miséria de sua Altura. Falar-me é transpor a todo o momento o que há de necessariamente plástico na manifestação.
Manifestar-se como rosto é impor-se para além da forma, é apresentar-se de uma maneira irredutível à manifestação, como a própria retidão do frente a frente, sem mediação de nenhuma imagem na sua nudez, ou seja, na sua miséria e na sua fome”30.
A linguagem original não é a das palavras.
O “encontro original”
entre os diferentes transmuta assim
uma outra crença como que intocada da tradição:
a de que os “bons” conceitos - ser, logos, etc.
- são neutros em sua origem, e,
exatamente por isso, são bons.
Não há conceito neutro,
pois todos advêm da situação não-neutra pré-original que se estabelece quando dois diferentes se encontram e podem - ou não - vir a estabelecer um “discurso” “decorrente” daí, intersubjetivo. O discurso original, como a verdade e como tudo o que pertence à esfera do humano, não é solitário em sua origem. Ele não se estabelece entre iguais, mas entre desiguais, porque ele deriva de uma situação infinitamente complexa, um encontro desde posições diversas e irredutíveis uma à outra.
Quem não tem posição própria, ou seja, quem não está em uma situação em que sua alteridade - sua dignidade - esteja realmente preservada, não tem, também, condições de estabelecer discurso nenhum; suas tentativas recairão no vale comum de meros ecos do logos dominante, que é muito mais do que suas palavras e sua boa vontade eventual. E por aí percebe-se claramente o perigo mortal que ronda as boas intenções das chamadas “Éticas do Discurso”.
Toda ética do discurso só terá espaço
caso parta da assimetria radical dos participantes,
e não de sua convertibilidade mútua
ou de sua mútua decodificação.
Há muito mais tensão na linguagem original, aquela que se instaura entre os radicalmente diferentes: ali já está o sentido em oferecimento pleno. Ou ela - a ética do discurso - indica inelutavelmente a sua própria superação na ação ética, ou se auto-destrói no artificial de alguma espécie de neutralidade, por belamente construída que esta seja..
E essa expressão nada leva consigo de irracional ou de numinoso - “...não irradia como um esplendor que se espalha apesar do desconhecimento do ser irradiante...
Manifestar-se assistindo à sua manifestação equivale a invocar o interlocutor e a expor-se à sua resposta e à sua pergunta. A expressão não se impõe nem como uma expressão verdadeira, nem como um ato. O ser oferecido na representação verdadeira continua a ser possibilidade de aparência...
O ser que se exprime impõe-se,
mas precisamente apelando para mim
da sua miséria e da sua nudez
- da sua fome de vida - sem que eu possa ser surdo a seu apelo. De maneira que, na expressão, o ser que se impõe não limita, mas promove a minha liberdade, suscitando a minha bondade.
A ordem da responsabilidade ou a gravidade do ser inelutável gela todo o riso, é também a ordem em que a liberdade é inelutavelmente invocada de modo que o peso irremissível do ser faz surgir a minha liberdade.
O inelutável não tem a inumanidade do fatal,
mas a seriedade severa da bondade”
(grifo nosso)31.
Estamos portanto às voltas com um fato deveras notável: a necessidade ética de responder à fome de outrem, ou à sua expressão “não me matarás!” tem origem não em uma imposição “natural” de alguma lei não nascida e imutável na ordem do cosmos, mas, sim, no fato definitivamente humano que me coloca face a face com outrem, e que me dá a oportunidade de, em respondendo a essa necessidade imperativa, fundar a legitimação ética de minha liberdade.
A antiquíssima questão da mútua exclusão
entre necessidade e liberdade toma aqui contornos novos
- é necessário que a necessidade seja radical
- uma questão de fome, de vida e de morte
- para que a liberdade seja radical:
a resposta ética a essa questão32.
Naturalmente, permanece a possibilidade de responder ou não ao apelo; mas o não responder significa o assumir de um modelo de liberdade que não leva em conta o que de radical habita o encontro; reduz-se à sua própria concha e se define como um modelo de atitude livre ao mesmo tempo fraca, porque eticamente intocada, e solitária, ou seja, não-humana, por mais racionalizações e projeções que construa ao redor do núcleo de sua vontade.
O “não”, possibilidade real de uma ação humana, nega, quando de seu exercício, a humanidade dessa ação e reduz, no fundo, o humano à sua caricatura, ou seja, a uma mônada sem relação com o outro: uma impossibilidade radical que indica, quando desdobrada no tempo, uma atitude intrinsecamente suicida.
A negação do encontro ético
é a forma mais trágica
de abdicação do humano.
Pensamento e Linguagem
Eis que penetramos assim no núcleo da expressão e da responsabilidade - ou melhor, da expressão que só pode ser completamente compreendida sob o aspecto da responsabilidade pelo que não sou eu. “O elo entre a expressão e a responsabilidade - condição ou essência ética da linguagem - essa função da linguagem anterior a todo o desvelamento do ser e ao seu frio esplendor permitem subtrair a linguagem à sua sujeição relativamente a um pensamento preexistente, cujos movimentos interiores ela teria unicamente a servil função de traduzir cá para fora ou de universalizar.
A apresentação do ser no rosto não é verdadeira, porque o verdadeiro refere-se ao não-verdadeiro, seu eterno contemporâneo, e encontra inevitavelmente o sorriso e o silêncio do céptico. A apresentação do ser no rosto não deixa lugar lógico à sua contraditória. Por isso, no discurso que a epifania abre como rosto, não posso furtar-me pelo silêncio, como tenta Trasímaco irritado, no primeiro livro da República (sem de resto o conseguir). ‘Deixar homens sem comida - é uma falta que nenhuma circunstância atenua; a ela não se aplica a distinção do voluntário e do involuntário’, diz Rabbi Yochanan. Perante a fome dos homens a responsabilidade só se mede ‘objetivamente’. É irrecusável”33.
Eis que a origem da linguagem não é o pensamento, nem a do pensamento a linguagem como articulação ordenada de signos lógicos; mas a origem da linguagem ordenada e do pensamento é a expressão original de Alteridade que antecede qualquer processo de interiorização e questiona desde seu princípio a noção de con-sciência; antes de tomar intelectualmente ciência de algo, sou atingido por uma exigência que vem de muito além de minha interioridade; é o acontecimento traumático original do encontro que tentamos analisar em outro lugar34 e que remete à noção de “consciência passiva”, “não-intencional”35.
O encontro humano é a possibilidade da verdadeira inauguração do sentido - “O rosto abre o discurso original, cuja primeira palavra é obrigação que nenhuma ‘interioridade’ permite evitar. Discurso que obriga a entrar no discurso, começo do discurso que o racionalismo exige com os seus votos, ‘força’ que convence mesmo ‘as pessoas que não querem ouvir’(Platão) e fundamenta assim a verdadeira universalidade da razão... Ao desvelamento do ser em geral, como base do conhecimento e como sentido de ser, preexiste a relação com o ente que se exprime; no plano da ontologia, o plano ético”36.
O assassinato como negação a priori da origem e mergulho no absurdo
Dessa forma,
o encontro ético com alguém
não significa “sair de sua própria interioridade”
para dedicar-se a outrem: significa expressar a crença,
inclusive, na própria humanidade,
na sua humanidade própria e mais profunda.
A expressão de outrem enquanto exigência ética de resposta é a única forma de romper a totalização ontológica, ou seja, a solidão dolorosa de ser, da qual o século XX se dá conta com particular incisividade e que não é mais do que a expressão desenvolvida e culminância de todo um complexo movimento civilizatório que nega a realidade do Diferente, a não ser para subsumi-lo em seu próprio roldão energético37.
Voltemos, agora, aos inícios desta reflexão. O que significa, então, nesse contexto, o ato de assassinar alguém? Provavelmente, a radicalização desse instinto de morte em solo ou em conjunto, pela negação a priori da possibilidade de qualquer encontro, ou seja, de qualquer origem, e a permanência no indiferenciado da poeira cósmica.
Assassinar não significa tirar a vida de um corpo
- significa, antes, tentar tirar de todo
um mundo de sentido a sua sustentação,
como se essa, imanentemente, ali fosse alcançável; em outros termos, como se a Alteridade de outrem fosse alcançável e aniquilável pelo aniquilar de seu infinitamente precário substrato ontológico. Em que consiste o absurdo do assassinato?
Consiste em que o assassino quer de sua vítima
a única coisa que dela não pode conquistar:
sua condição de Alteridade viva.
Pois o assassino pode ter, ao fim e ao cabo, despojos a seus pés - um corpo inanimado ou mesmo destroçado, ou mesmo corpo nenhum, indiferenciado ou volatilizado que foi por uma incineração ou explosão atômica; pode ter uma prova (de resto inútil, pois nunca esteve realmente em questão) de sua potência ontológica; pode ter sua solidão só para si, o que significa, em último sentido, o direito de morrer sozinho; pode afogar-se em sua violência e proclamar o sem-sentido. Só não pode inverter a roda do tempo e seqüestrar a Alteridade ali onde ela habita, o instante único que foi a possibilidade do encontro que nunca se deu.
O assassino quer a vida do Outro,
mas só conquista a Morte, um corpo morto;
a vida do outro - sua alteridade - refugiou-se
no pesadelo de toda ontologia:
no Nada, Nada de Ser.
Síntese
Revisemos o essencial do até aqui exposto. O Outro enquanto alteridade real é a possibilidade do rompimento de minha totalização, ou seja, de minha solidão de ser, ao constituir-se em expressão e oferta de paz original: fundamento da ética na qual a racionalidade se pode legitimar. Minha solidão pode, porém, escolher a morte da origem, ou seja, a negação da alteridade enquanto tal.
Essa negação, porém, não é uma possibilidade ética, mas meramente ontológica, que expressa as contradições do ser envolto em sua própria inescapabilidade e desembocando então no absurdo das contradições insolúveis que emanam de sua solidão raivosa. Por que?
Porque “matar... é tentar o impossível
e cair nas contradições do ódio...
há no ódio do assassino o secreto desejo
de “objetivação” do outro para totalizá-lo.
Mas objetivação “do outro”, não simplesmente de um cadáver, o que inclui a tentativa de torná-lo um objeto a seus próprios olhos, de tal forma que o outro possa testemunhar sua derrota e a destruição de sua transcendência, a sua objetivação e totalização no reino vitorioso do assassino.
Por isso o “prazer” do assassino
é matar o outro diante do outro mesmo:
quer o outro como objeto e como sujeito
que veja a humilhação da própria reificação,
quer a contradição do outro morto e vivo”38.
Chegamos assim ao coração da contradição, na plástica descrição de L. C. Susin: “Seria então necessário matá-lo vivo. É possível retê-lo no instante anterior ao golpe que determinará sua total objetivação, matar lentamente - até por anos a fio - e submeter à destruição através do sofrimento sem desferir o último golpe.
Este é o caráter absurdo do ódio:
quer satisfazer-se mas mantém o estado
de insatisfação para poder se satisfazer...
Mas... quando a objetivação está
por chegar à sua plenitude,
a vítima se retira deixando o assassino
solitário com sua vitória...
O outro revela, assim, na sua retirada, a infinitude do seu poder ético subtraindo-se ao poder ontológico do assassino, mostrando assim a fraqueza e a impotência deste, paralisando-o na insatisfação: é impossível que o outro veja sua objetivação. Há então uma inversão: o poder do assassino é daí por diante impotente para ir mais longe e tomar o outro que se retirou para além da morte, resguardado no mistério da transcendentalidade mesma que o assassino queria esmagar.
O poder ontológico,
espontâneo e sem justificações,
revela-se afinal sem fundamentos e uma fraqueza,
poder sem poder”39 - o fracasso original.
Conclusão
O momento único que representa para alguém o encontro com a Alteridade representa uma situação de fundamentos e de origem: situação em que os seus próprios fundamentos estão expostos em sua precariedade solitária e convidados a se legitimarem pelo assumir de seu próprio sentido não tautológico; e origem potencial, onde uma história pode ser escrita e um tempo vazio pode ser preenchido pelo assumir de um instante de inauguração da ética, ou seja, da manutenção e promoção da pluralidade dos sentidos.
O assassinato representa a mais radical negação unilateral dessa oferta de sentido, porque sem volta na ordem dos fatos e autofágico em sua paixão patológica pelo sentido único: o do assassino.
Mas o sentido único representa o aborto da linguagem e do pensamento, da liberdade e da necessidade, do próprio mundo e do tempo que transcende sua medição, da convivência e da relação de qualquer tipo - em suma, de tudo o que faz a humanidade do humano; e, portanto, o assassinato é dolorosamente suicida e não escapa dos limites que grotescamente se auto-impõe: os de um definitivo fracasso original.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte:
Sentido e Alteridade
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
Porto Alegre - 2009
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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