domingo, 29 de maio de 2011

INFINITO E ÉTICA EM LEVINAS - Ricardo Timm de Souza

"O SENTIDO DA ALTERIDADE "

QUINTO ENSAIO                                                                                                     - Infinito e Ética - sobre a concepção de “infinito ético” em Levinas

Introdução - o “infinito” enquanto conceito fundamental de qualquer racionalidade

Ao se acompanhar, ainda que em linhas muito gerais, a evolução do conceito filosófico de ‘infinito’ ao longo do desenvolvimento do pensamento ocidental, pode-se perceber com nitidez o lugar especial que tal conceito ocupa no corpo doutrinal da quase totalidade dos autores225.

Dos pré-socráticos até pelo menos os inícios do século XIX, é muito difícil encontrar-se um pensador que tenha passado à história da filosofia como representativo e que não tenha, direta ou indiretamente, explicitamente (pelo exame acurado da noção de mesma de ‘infinito’) ou implicitamente (pelo aproveitamento ou endosso mais ou menos claro de uma determinada concepção de ‘infinito’ corrente em seu tempo), dedicado boa parte de suas energias ao exame das sempre complexas implicações dessa questão. 

E isso não é um problema de escolas filosóficas determinadas, mas de coerência interna dos diversos autores no processo de elaboração e articulação de seu pensamento: poucos (e, de um modo geral, não os maiores dentre eles) se puderam poupar o trabalho exaustivo que se insinua a qualquer mente que tente abranger o sentido da realidade - a filosofia - ao se deparar, exatamente, com a questão do infinito. Trata-se, em qualquer universo de sentido, de uma questão radical.

Poder-se-ia indicar, entre muitas outras, uma fundamental razão para esse fato: é que os pensadores tendem a perceber, ao longo da história, a marcada importância que a idéia de ‘infinito’ assume em qualquer configuração racional minimamente ordenada, seja ela algum clássico sistema filosófico, seja simplesmente uma determinada articulação lógica, parcial mas conseqüente, de elementos ontológicos os mais variados.

Essa importância decorre, ao nosso ver, da característica até certo ponto comum que os diversos conceitos preponderantes de ‘infinito’ muito cedo assumiram e que os faz, a um tempo e de certo modo paradoxalmente, função da modalidade racional que o pensa e aferidor da potência dessa mesma racionalidade, que justamente no próprio conceito de ‘infinito’ se torna explícita

Isso configura uma espécie de relação “dialética”, que acaba por permitir que uma determinada época se encontre consigo mesma em sua forma mais abstrata - mas nem por isso menos efetiva - justamente porque seu conceito de infinito “depura” suas mais elementares energias racionais e a apresenta para si mesma como “síntese” de todas as suas potências.
Em outros termos, mais “kantianos”, poderíamos dizer que o conceito de ‘infinito’ tem se constituído, ao longo dos séculos, em uma espécie de “idéia reguladora” das suas próprias potências racionais em sua dinâmica de crescimento, as quais nesse conceito mesmo - em sua “infinita” grandiosidade - se podem refletir e legitimar.

Uma determinada época
depende de seus ‘infinitos’ como esses ‘infinitos’
dependeram, em seu próprio processo genético,
dessa que é justa e inconfundivelmente 
a “sua” época. 

De outra forma dito, e avançando-se essa tese, poder-se-ia dizer até que não se pode compreender o essencial da cultura de uma época - e nem de uma filosofia - sem se ter em mente o conceito de ‘infinito’ que paira em seu “céu” racional; bem como não se pode compreender um determinado modelo de ‘infinito’ sem ser pelo exame razoavelmente acurado das mais profundas motivações racionais que permitiram que precisamente “esse” infinito assumisse seu status privilegiado na constelação das categorias filosóficas suas contemporâneas.

Convergência de razão,                                 convergência de infinito

A consciência das linhas gerais de desenvolvimento da razão ocidental no sentido daquilo que temos chamado uma “totalização de sentido” e potenciação cada vez mais efetiva e abrangente não pode, portanto, senão sugerir que algo semelhante deve ter acontecido com o conceito de ‘infinito’. 

De fato, a história do conceito de ‘infinito’ filosófico no decorrer das variadas escolas filosóficas preponderantes em termos de tradição de pensamento é também de certa forma “convergente”: o ‘infinito’ originalmente “perigoso” para a tessitura de uma ordem de sentido racional - o ‘infinito’ enquanto “ápeiron” - e sempre provocativo aos primeiros pensadores aceitos como filósofos (os quais, não obstante, souberam já oferecer a essa questão soluções grandiosas) passa, no fim da Idade Média, a um conceito que em si sintetiza todos os seus próprios atributos - com os quais aliás era confundido anteriormente - configurando uma síntese magistral, sem que, nem por isso, a racionalidade (talvez por razões atrás aduzidas) hesite em acompanhá-lo.
 
Descartes propõe depois um modelo de ‘infinito’- cuja notável estrutura formal é aproveitada por Levinas - que seja cognoscível “antes de o ser” - ou seja, do qual de certa forma se possa conhecer o “todo” a partir do conhecimento de uma determinada parte, ou, melhor expresso, que é por não compreender que posso entender maximamente, no caso da idéia de Deus226

Na prática, e pela hipertrofia da razão, está em pleno curso o processo de “domesticação” (no sentido de “inofensibilização”) da noção geral de ‘infinito’; o logos já não tem medo do poder desestruturante (presente apesar de toda a dialeticidade atrás referida) de uma noção teoricamente - pretensamente, já que infinita - indomesticável, incontrolável.

O racionalismo pós-cartesiano se encarregará de espraiar as conquistas desse modelo de racionalidade por todos os nichos possíveis de realidade concebível.

A mútua fecundação de diversas escolas filosóficas, que mantêm em comum apenas o fato de se desdobrarem crescentemente “para fora de si”, constituirá o mundo moderno, o qual, para se legitimar soberanamente, terá de reduzir o poder “desestruturante” de qualquer categoria filosófica a uma situação, poder-se-ia dizer, de “máximo controle racional” - inclusive no caso do ‘infinito’, que, correlato embora da racionalidade que o concebe, mantém latente algum tipo de ameaça às finitas potências racionais. 

O ‘infinito’ ameaça, constantemente, 
escapar às teias nas quais a racionalidade 
tenta como que envolvê-lo, 
por mais sutis que essas sejam;

e, não obstante, a vontade de neutralização se renova: é com o controle do poder desestruturante ínsito à própria idéia de infinito que um determinado modelo de racionalidade se poderia encontrar consigo mesmo, e só consigo mesmo.

Permanecendo a sombra do infinito a pairar sobre uma determinada estrutura de racionalidade, permanece também, em uma tensão incontornável, a ameaça muito real do colapso dessa estrutura de racionalidade, apesar de toda luz que essa possa prometer.

A maneira de como se fará essa neutralização da questão do ‘infinito’ - tema pendente durante séculos, questão sempre recorrente, sempre ameaçadora - é então, à época do racionalismo pós-cartesiano, ainda desconhecida.

Mas a tendência crescente à hipertrofia da razão leva à convicção de que a única maneira de conseguir esse importante objetivo sem impedir o próprio desenvolvimento máximo das potências racionais é atar o infinito com as cadeias por ele mesmo fornecidas, e de uma maneira totalizantemente definitiva

Essa é uma grande tarefa de Hegel, o qual simultaneamente resolve os entraves à auto-compreensão e à totalização absoluta da razão pela totalização do “bom” infinito em sua própria circunscrição, para além das indefinições do mau infinito em seu infindo de-correr. E isso não por acaso, mas porque, como se viu, o ‘infinito’ e a racionalidade que o sustenta e que ele por sua vez sustenta são visceralmente relacionados e dispensam aposições artificiais227

Porém, em verdade, a se verificar tal intimidade de origem, “bom” e “mau” infinitos hegelianos não são mais do que perspectivas diversas de uma mesma realidade credora de precisas motivações racionais originalmente congruentes, que não cumpre agora destacar. 

O que importa é que se perceba que, desde Hegel em sua extraordinária síntese, a questão “especulativa” do ‘infinito’ está, enquanto problema filosófico central, como que superado; recolher-se-á então a âmbitos mais “parciais” do pensamento - metemática, física, epistemologia, etc. - ou, como desde antes já se vinha anunciando incisivamente, transmutar-se-á em ideal “material” de uma atividade mais “pragmática” - por exemplo, da economia228.

Quando o ‘infinito’ conquista a si próprio 
e define seu âmbito racional de efetiva vigência, 
também o mundo se conquistou, 
e fechou o círculo de sua própria imanência.

Do infinito à finitude

Em termos de uma análise cultural ampla, que leve em conta as estruturas profundas de sustentação racional do mundo ocidental, a virada do século pode ser caracterizada por uma espécie de inversão de uma situação de grande otimismo - herança iluminista/positivista - em uma “desconsolada” consciência de finitude. Exceto em alguns poucos campos restritos do pensamento, a palavra “infinito” cai em quase completo desuso, e isso tanto em termos conscientes quanto nas bases “inconscientes” - a confiança virtualmente infinita na capacidade de o ser humano dar conta da realidade - que vinham sustentando muito da ocidentalidade desde muitos séculos.

O ‘infinito’ é substituído, de forma brusca ou paulatina (conforme o universo cultural considerado) pela ‘finitude’, com seus corolários “éticos”, “ontológicos” e até “teológicos”: ‘absurdo’, ‘ser-para-a-morte’, e, em última análise, ‘sem-sentido’ - o que não é de admirar, pois, se o ‘infinito’ representava a própria possibilidade do sentido (e nisso acreditou a ocidentalidade durante séculos, e não só na idade média teológica), o seu contrário, a finitude, só pode representar o sem-sentido.

O que não é normalmente percebido é que tanto o antigo e saudoso ‘infinito’ quanto a moderna ‘finitude’ - símbolos respectivos de otimismo e pessimismo racionais-ontológicos - são, no fundo, verso e reverso de uma mesma medalha ontológica; mas, acima de tudo, não se vê que tanto um como outro são filhos diletos de um mesmo pai, o “voluntarismo totalizante ocidental”, sempre concebido como força movente primeva e definido unicamente de forma onto-lógica.

Assim, aquilo que, aparentemente, se constituem como noções completamente opostas e mutuamente excludentes são na verdade inter-complementaridades que apenas se repelem mutuamente como cargas elétricas iguais. Ao ‘infinito’ ontológico-totalizante não se opõe a finitude, simplesmente porque à totalidade ontologicamente determinada nada se pode opor que seja também ontologicamente determinado, a não ser sob a forma de um jogo de mútuas completações; em si mesmo se fecha o círculo de toda totalidade ontológica. 

É de certa forma necessária a finitude para que o ‘infinito’ se “defina infinitamente”, e por isso ela o complementa; mas, por outro lado, têm ambos a mesma constituição original, que evita que se acoplem de forma indiferenciada - pois ambos, como grandezas de mesma espécie, não podem vir a ocupar o mesmo espaço ontológico da mesma forma. São, enfim, a um tempo iguais e diferentes. Ou, avançando essa tese, são modalidades diversas de um trofismo da Totalidade que avança dialeticamente.

“De outra forma que ser”                                            - o ‘infinito’ sem “espessura ontológica” de Levinas

A consciência da necessidade de superação das determinações cegas do “jogo” ontológico-totalizante da Ocidentalidade que, dos pré-socráticos a Heidegger, define o verdadeiro e o falso, o ser e o não-ser, o válido e o inválido, o real e o irreal, o racional e o irracional - dando sempre precedência ao primeiro termo dessas dualidades não apenas lógicas - leva Levinas a propor a inversão da ontologia em ética enquanto filosofia primeira - onde “ética” é o que ontologicamente não se define, o que de certa forma nem ao menos existe para o ser, mas que funda até mesmo a possibilidade de o ser ser

À Totalidade é contraposto
o que para ela não tem sentido: 
o que tem seu sentido sugerido desde fora 
 das possibilidades auto-tróficas do Mesmo 
- o Outro.

Mas não é aqui o lugar de examinar com maior detenção essa estrutura complexa, central no pensamento do autor. O que nos interessa, nesse momento, é tentar compreender algumas particularidades da noção de ‘infinito’ tal como Levinas a apresenta em contraste com a tradição “normal” da compreensão desse termo .

O que se pode entender, no pensamento de Levinas, por ‘infinito’? Destaque-se, primeiramente, algumas características marcantes das concepções clássicas de ‘infinito’, praticamente invariáveis ao longo dos séculos da história do pensamento ocidental:

a) o ‘infinito’ é sempre compreendido “cosmologicamente”: temporal, espacial, grandeza, pequenez;

b)
muitas vezes se estabelece a partir de parâmetros estabelecidos por uma hierarquia de perfeições;

c)
é concebido e discursivamente apresentado a partir de um determinado modelo de analogia com o finito que o pensa (essa é a forma que permite que, de certo modo, o próprio finito se “infinitize” ao partir ao encalço do ‘infinito’);

d)
é geralmente apresentado , explícita ou implicitamente, como uma dimensão de grandeza apesar de tudo passível de ser compreeendida “inteira” a partir da compreensão de suas “partes”;

e)
tende a se “des-infinitizar” a partir da abordagem lógica-sincronizante de quem o pensa;

f)
mas, acima de tudo, define-se sempre ontologicamente, mesmo quando se refere, especialmente no campo da teologia tradicional, a um determinado atributo ético - a infinita bondade de Deus é decorrência da infinitude de seu Ser, e não o contrário. 
 
Não é de admirar o fato de que, perpassando o senso-comum de uma infinidade de gerações, não se pôde normalmente imaginar, nem ao menos suspeitar, que fosse possível conceber o infinito de forma diversa da obviedade onto-cosmológica; talvez tenha sido Pascal quem no ocidente mais se aproximou das perigosas fronteiras que separam a mensurabilidade racional, mesmo de infinitas grandezas, da incomensurabilidade ética de um infinito que se propõe para além da própria idéia de grandeza, um infinito verdadeiramente abissal, indício concebível de uma alteridade radical. 
 
Para Levinas, em contrapartida, pode-se destacar que o infinito - inspirado formalmente pela Terceira Meditação de Descartes - é, primacialmente, não-ontológico, no sentido de que não se define desde a lógica de ser e não-ser. Pauta-se desde parâmetros não-ontológicos na medida em que, sobre esses, a ontologia do ser neutro “não pode poder”. 

Trata-se do infinito ético. A ética é, nesse contexto, absolutamente dis-tinta da ontologia: não apresenta tecidos que possam ser incorporados pela dinâmica de crescimento ontológico, nem se constitui, em sentido profundo, em alguma forma de solidez ontologicamente observável ou compreensível. 

Está, simplesmente, fora, antes do ser e de suas determinações lógico-sintéticas (é de se observar que não se trata de uma ética prescritiva, mas fundante; e, nessa dimensão, representa a própria possibilidade de se pensar o sentido do ser).

Desde o ponto de vista de uma primeira aproximação, o ‘infinito ético’ levinasiano, assim,

a)apresenta-se não pré-definido por estruturas cosmológicas de compreensão da realidade;

b)
não é credor de uma ordenação ou hierarquização axiológica de bases ontológicas (a falta de ser não significa carência de sentido para o infinito ético);
c) é sem analogia de nenhuma espécie com quem tenta pensá-lo;

d)
não tem possibilidade de ser conhecido, pois move-se em uma esfera outra que aquela do conhecimento e do desconhecimento;

e)
não está sujeito às potências de um processo sincronizante-neutralizante e voluntarista de alguma estrutura auto-referente de totalidade, ou a alguma modalidade de integração a estruturas auto-compreensivas ou tautológicas;

f)
escapa às possibilidades de uma racionalidade particular;

g) não se encontra no sujeito e não se reduz à sua própria idéia;

h) constitui-se na própria condição da novidade, do novo, com relação ao antigo, ao já sincronizado em uma determinada síntese intelectual;

i) des-ordena o ontologicamente ordenado;

j)
des-neutraliza a pretensa neutralidade do ser que se desenvolve, criticando radicalmente o que a crítica ontológica ou dialética incorpora e insufla de ser;

k) questiona o que somente desde si se legitima, inclusive a idéia de liberdade que se justifica pela sua própria realização;

l) introduz a possibilidade formal da noção de alteridade para além do jogo dialético.

Conclusão - sentido e questões do infinito ético

A compreensão efetiva da inversão levinasiana da ética em filosofia primeira coloca problemas de extraordinário alcance e profundidade; a ser levada a sério, trata-se, nada menos, do que reescrever, desde um prisma “epistemológico” totalmente diferente, todos os procedimentos de abordagem da realidade.

E este reescrever apenas se insinua, mesmo na mobilização das mentes que penetram com extrema incisividade na ampla problemática sugerida. Mais do que uma capacidade ou vontade, trata-se talvez de uma questão de maturação dos tempos.

Nesse momento, interessa-nos destacar o seguinte: se é verdade o que afirmamos anteriormente, ou seja, que ao longo da história o conceito dominante de ‘infinito’ co-determina a estrutura racional de auto-compreensão de uma época à medida em que se auto-determina - e, como sugerimos, temos muito boas razões para crer nisso - então uma época que é capaz de conceber uma noção de ‘infinito’ que escape ou supere as dimensões de um necessitarismo ontológico-categorial determinante na tradição do pensamento ocidental será também capaz de superar os condicionamentos de uma racionalidade solitária e aferrada obsessivamente a si mesma com seu corolário de auto-legitimações cada vez mais insustentáveis a qualquer espírito lúcido - pois tende a se fechar faticamente em uma estrutura de sentido suicida-totalizante (veja-se por exemplo a questão sócio-ecológica).
 
A tarefa do pensamento:
aterrissar na eloqüência da realidade concreta
e reestruturar-se desde as exigências éticas 
que essa coloca: provavelmente,
mais do que uma condição de auto-coerência,
uma condição de sobrevivência. 

Ricardo Timm de Souza

 
1997
Publicado originalmente em Veritas 
– Revista de Filosofia da PUCRS,
junho/1999

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte:
Sentido e Alteridade
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
Porto Alegre - 2009
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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