domingo, 29 de maio de 2011

A CONSCIÊNCIA NÃO-INTENCIONAL - LEVINAS - Ricardo Timm de Souza

"O SENTIDO DA ALTERIDADE"

QUARTO ENSAIO                                                                                                     - O sentido da consciência precária                                                                       - sobre “A consciência não-intencional”

Introdução - fenomenologia e concretude

Que a conquista da consciência como autoconsciência e consciência “de algo” é um dos grandes feitos do espírito moderno, disso duvida-se pouco; pois tratou-se, na verdade, de uma longa e complexa empreitada, repleta de todo tipo de dificuldades. Já não se pode situar com claridade as origens desta empresa - provavelmente, coincidem em sua essência com o próprio nascimento da razão ocidental. Mas é a partir do paladino da razão Descartes que a questão toma claramente feitios definitivos.

Nunca a subjetividade formal 
estivera tão ocupada com seu locus no cosmo 
e consigo mesma e com suas potências e fraquezas racionais;
nunca ela se identificara a tal ponto 
com a própria idéia de racionalidade. 

O Cogito é, antes de uma questão puramente racional, o assumir de uma situação e - inobstante toda sua aparência de espontaneidade - uma difícil construção por sobre uma conquista prévia - antes do “ego cogito” tem de estar, naturalmente presente o “ego conquiro”, a conquista de uma posição privilegiada frente à realidade que se sujeitará, em seguida, à dúvida metódica e que a sustentará “empiricamente”.

A res cogitans não surge por acaso, ou desconectada de todo um mundo de sentido na qual, exatamente, tal pode “assumir sentido”, assumir o sentido da de-finição do propriamente real da realidade - da res extensa. Pelo contrário, é apenas no contexto desta demanda de um porto seguro, de origens amplamente culturais e que não cumpre analisar aqui163, é nesta complexa situação de exigência desta âncora de sentido para a razão ousada, que sua inteligibilidade se oferece propriamente. 

E, nesta leitura, a vontade expressa de Descartes de recomeçar a pensar desde um fundamento seguro - ou seja, re-emprender o impulso da racionalidade de maneira totalmente “nova” - mostra-se na realidade extremamente antigo. Nada mais enraizado na tradição do que a vontade de estabelecer as bases da filosofia ab initio que se apossa de Descartes ao assumir para si esta espinhosa tarefa de justificar o sujeito da modernidade para ele mesmo. 

Algumas centenas de anos depois, a tarefa de Descartes, mesmo com o grande trabalho de aperfeiçoamento a que a sujeitaram os espíritos que o sucederam na árdua tarefa de levar em frente o processo de inteligibilização da racionalidade como idéia e consciência, no conhecido intuito de superar as dicotomias e dificuldades postuladas pela visão cartesiana de realidade, esta tarefa parecia a Edmund Husserl mui insatisfatoriamente resolvida.

Movido no fundo pelos mesmo ideais cartesianos, não bastante a época bem diferente em que viveu suas inquietações, Husserl pretendia, como se sabe, refundar a filosofia redescobrindo de forma cabal as possibilidades de sua autonomia frente à lógica da psicologia e das ciências empíricas vigorosas da segunda metade do século XIX.

A vocação de Husserl: refundar a filosofia como ciência de rigor, inacessível aos acidentes e contingências de uma razão obliterada pela empiria ou seduzida pela lógica das ciências do concreto e debatendo-se em meio a infindáveis crises contemporâneas164 - a grande tarefa que procuramos caracterizar em outro lugar como “tão simples em seu enunciado como complexa em sua efetivação”165 - evidencia-se como uma tarefa que, observada mais de perto, mostra-se em certo sentido arqueológica, ou seja, procura retroagir ao logos dos princípios para compreende-los e como que deles haurir forças suficientes para o dificílimo trabalho construtivo a que se propõe166.

A retomada por Husserl do tema da intencionalidade e sua radicalização em termos de núcleo da fenomenologia como tal levam a questão da consciência enquanto intencionalidade a seu limite, corrigindo no projeto cartesiano seus deslizes modernistas. 

Estamos aqui, em um dos momentos de entrada do que se pode compreender como o arco realmente contemporâneo da cultura e seus dilemas167, na verdade, em um dos ápices daquilo que se poderia conceber como intelectualidade pura, onde “puro” não tem o sentido de meramente ou inconseqüentemente asséptico, mas de “depurado” em seu laborioso processo de circunscrição racional; as Meditações Cartesianas bem traduzem o extremo deste esforço e as exigências radicais que se colocam semanticamente às proposições “eu transcendental” e “consciência de algo”. 

Se com Heidegger assistiremos a descida 
a abismos incomensuráveis168, em Husserl 
temos a oportunidade de, sem o delírio  
que eventualmente acompanha as grandes alturas racionais 
- criando um mundo paralelo “puro” -, 
subir de certo modo até elas. 

Em ambos os casos, entramos em contato com extremos, extremidades de todo um espectro de sentido cuja ameaçadora convulsão de fundamentos o nosso século pôde - ou tem sido obrigado - a assistir.
Também Levinas encontra-se com tais extremos, mas, no caso de Husserl, este extremo coincide com uma “origem”, como deixará patente no início do complexo texto “A consciência não-intencional”169:

“É Husserl, sem dúvida, 
que está na origem de meus escritos.

É a ele que devo o conceito de intencionalidade que anima a consciência e, sobretudo, a idéia de horizontes de sentido que se esbatem , quando o pensamento é absorvido no pensado, o qual sempre tem a significação do ser. Horizontes de sentido que a análise, dita intencional, reencontra, quando se inclina sobre o pensamento que ‘esqueceu’, na reflexão, e faz reviver estes horizontes do ente e do ser...  

É aí que está, para mim, a contribuição essencial da fenomenologia, à qual se acresce o grande princípio do qual tudo depende: o pensado - objeto, tema, sentido - faz apelo ao pensamento que o pensa, mas determina também a articulação subjetiva do seu aparecer: o ser determina seus fenômenos”170.

E tal não permanece como função de um intelecto onipotente, mas reencontra a cada segundo seu substrato mais concreto - “Tudo isso fixa um novo modo da concretude. Para a fenomenologia, esta concretude engloba e suporta as abstrações ingênuas da consciência cotidiana, mas também científica, absorvida pelo objeto, entravada no objeto.

É daí que surge nova maneira de desenvolver os conceitos e de passar de um conceito a outro - maneira esta que não se reduz nem a um processo empírico nem à dedução analítica, sintética ou dialética”171.

Está, portanto, assumida por Levinas a condição da fenomenologia enquanto base ou referência desde a qual termos como “concreto” e “abstrato” podem retorcer-se em si mesmos e como que se fundamentar conceptualmente sem recair nas dificuldades que a tradição atribui ao conteúdo destas palavras.

O privilégio do teorético

Eis, portanto, um belo reencontro com a concretude enquanto base de um pensamento que, sem se ater ao meramente empírico, também não se reduz a um processo de crescente dedução analítica ou a uma abstração nos estratos de algum kósmos noetós em última análise inapreensível pelo intelecto finito. Uma posição de equilíbrio fora atingida com Husserl, uma forma de “desenvolver os conceitos e passar de um conceito ao outro” sem desnaturá-lo ao exigir deles - ou da teia que viessem a formar - mais do que o que poderiam realmente dar. 

A filosofia pode, novamente,
partir dos limites estritos de sua própria segurança.
 
Apenas - e aí inicia propriamente a reflexão levinasiana - esta segurança e suas derivações não são concebidas senão como teoréticas. Trata-se sempre, em última análise, de uma questão decidida pelo “saber” em relação à negatividade da insipiência; trata-se da esfera bem cerrada do ser em seu auto-sentido, auto-sentido em que se constitui, justamente, o auto-disponibilizar-se desta concretude a si mesma, ou seja, às determinações do ser. “... na análise fenomenológica desta concretude do espírito, aparece em Husserl - conforme uma venerável tradição ocidental - um privilégio do teorético, privilégio da representação, do saber, e, conseqüentemente, do sentido ontológico do ser. 

E isto, apesar de todas as sugestões opostas que se podem igualmente derivar de sua obra: intencionalidade não teórica, teoria do Lebenswelt (do mundo da vida), o papel do corpo próprio, que Merleau-Ponty soube valorizar. Aí - mas também nos acontecimentos que se desenrolaram de 1933 a 1945, e que o saber não soube nem evitar nem compreender - está a razão pela qual minha reflexão se afasta das últimas posições da filosofia transcendental de Husserl ou, ao menos, de suas formulações”172.
 
O que temos, então? Por um lado, o mais aperfeiçoado dos idealismos, aquele que fez retornar ao termo “concretude”, ou seja, ao “realismo”, o melhor de seus sentidos, um sentido que não indica uma espécie de mundo “prévio” como que cindido a priori e desde sempre em uma luta tão interminável e estéril quanto irresolúvel, mas um “idealismo” que supera, contanto que a obra de Husserl seja adequadamente lida, a própria necessidade da confrontação entre duas posições que, a partir daí, nenhum outro espaço ocupam que o lógico, ou seja, o subsidiário; às teorias fracas, propõe Husserl a mais alta das teorias, de tal forma que o próprio termo “teoria” transmuta seu sentido - e, não obstante, permanece teorético. 

E temos também, por outro lado, fatos concretos que superam qualquer teoria ou concretude pensadas ou pensáveis: mesmo a “concretude” mais aperfeiçoada, aquela que resolve em si mesma as angústias da teoria fechada em si mesma - o desvairada e perfeitamente racional perseguição e aniquilamento do Outro173 ao longo daqueles citados anos fatídicos da barbárie absoluta. 

Nenhuma teoria, nem a mais aperfeiçoada delas, seria capaz de inteligir tais acontecimentos; nenhuma concretude, por mais sólida e densa que se apresentasse, poderia servir de termo de comparação para os fatos que então se passaram, onde o Outro foi realmente Outro e, por isso, perseguido, naquele contexto, até a morte.

Ora, o tema central do pensamento levinasiano é, sabidamente, a relação com o Outro; todos os outros temas de que trata sua obra filosófica - e são muitos - têm como objetivo a facilitação do caminho que abrirá espaço até esta questão. Também assim com o tema da consciência.

Não é como tema isolado na constelação das idéias filosóficas que a consciência merecerá a atenção muito detida de nosso autor, mas justamente enquanto uma das chaves de compreensão que possam ter servido não só para aproximar dois seres humanos, mas também eventualmente para afastá-los definitivamente recolhendo-os cada qual ao seu insuperável mundo solitário que adviria logicamente do desdobramento de sua consciência solitária.

Para Levinas, antes de tudo, “há a prioridade em relação a outrem”174, sem a qual nenhum sentido tem propriamente sentido, ou seja, se sustenta enquanto legitimação de uma dimensão da realidade.

Psiquismo e Saber

Mas como compreender a questão da consciência no contexto especial, eticamente anterior, da “prioridade em relação a outrem”? O caminho desta compreensão se inicia provavelmente pela própria anterioridade real do saber enquanto telos da consciência intencional - pois a consciência só é “consciência de alguma coisa” se esta coisa for, de alguma forma, finalmente “sabida”, ou seja, integrada à dinâmica do psiquismo cognoscente:

“É no psiquismo como saber - que vai até a consciência de si - que a filosofia transmitida situa a origem ou o lugar natural do significativo (sensé) e reconhece o espírito. Tudo o que advém ao psiquismo humano, tudo o que nele se passa, não termina por se saber? 

O segredo e o inconsciente, 
recalcados ou alterados, são ainda medidos 
ou curados pela consciência que os perdeu”175.

O saber, em seu processo contínuo de descobertas e reencontros consigo mesmo naquilo que sabe, descobertas da realidade, define a realidade enquanto cognoscível ou, nesta lógica levada às suas conseqüências mais extremas, enquanto pura e simplesmente real.

Nada mais avesso ao habitus cognoscente 
do que dar por real aquilo 
que ainda não se mostrou 

- ou que não se mostra absolutamente - no enquadramento paradigmático dos processo do saber em seu ritmo de conhecer.

O segredo só é tal porque ainda não é conhecido; 
radicalizando o raciocínio, o inconsciente só é real 
porque a consciência ainda não iluminou 
com seu logos poderoso. 

Mas não só. Todas as derivações do humano que habita um determinado mundo de sentido, todas as vivências, ainda em suas inflexões “pré-formais” ou em estado de gestação, são compreendidas ou convergem, ainda antes da construção do primeiro raciocínio lógico, como ou em questões de saber e não-saber, como se apenas ali assumissem realidade própria e sobressaíssem das sombras do indiferenciado:

“Todo o vivido se diz, legitimamente, experiência.

Ele se converte em ‘lições recebidas’ que convergem em unidades do saber, sejam quais forem suas dimensões ou modalidades: contemplação, vontade, afetividade; ou sensibilidade e entendimento; ou percepção externa, consciência de si e reflexão sobre si; ou tematização objetivante e familiaridade daquilo que não se propõe; ou qualidades primárias, secundárias, sensações kinestésicas ou sinestésicas”176

E isto não diz respeito apenas à órbita de um indivíduo arbitrado como mônada cognoscente: espalha-se por todos os campos do possível, incluindo a relação com um outro “eu” que não sou eu - de tal forma que, em última instância, “viver” - viver isto ou aquilo, ter vivências, viver simplesmente - remete necessariamente ao ver, ou seja, ao conhecer:

“As relações com o próximo, o grupo social e Deus, seriam ainda experiências coletivas e religiosas. Mesmo reduzido à indeterminação do viver e à formalidade do puro existir, do puro ser, o psiquismo vive isto ou aquilo, ao modo do ver, do provar, como se viver e ser fossem verbos transitivos, e isto e aquilo fossem complementos de objetos. É, sem dúvida, este saber implícito que justifica o largo emprego que, nas Méditations, Descartes faz do termo cogito.

E este verbo, na primeira pessoa, 
expressa bem a unidade do Eu 
em que todo saber se basta”177

Assim, o Eu, a referência da primeira pessoa, da primeira pessoa que vive e , encontra-se consigo mesmo exatamente no processo do conhecimento, mesmo quando de si sai na aventura que é o mundo do ser (ainda) desconhecido. “Como saber, o pensamento leva ao pensável, ao pensável chamado ser. Levando ao ser, ele está fora de si mesmo, mas permanece maravilhosamente em si mesmo ou a si retorna. A exterioridade ou a alteridade do si é retomada na imanência”178

O que está aqui em jogo é a congruência do próprio e do outro: “Aquilo que o pensamento conhece ou o que em sua ‘experiência’ ele aprende é, ao mesmo tempo, o outro e o próprio do pensamento”179

A conclusão óbvia é incisiva - mesmo sem a necessidade de um inatismo ou de um mundo das idéias a dar credibilidade a este fato provado pela própria lógica e pelo modelo de linguagem do eu pensante-cognoscente-solitário,
 
“não se apreende senão aquilo 
que já se sabe e que se insere na interioridade 
do pensamento, à guisa de lembrança 
evocável, representável. 

Reminiscências e imaginação 
asseguram como que a sincronia e a unidade
do que, na experiência submetida ao tempo,

  se perde ou está por vir... Encontramos, em Husserl, um privilégio da presença, do presente e da representação”180.

Os dissabores do tempo e a intemporalidade

Estamos aqui em um dos pontos centrais da análise levinasiana do conhecer. Trata-se do momento em que a própria questão do intemporalidade conceptual tem de ser corretamente compreendida enquanto condição do conhecer e expressão fática do privilégio da racionalidade luminosa ancorada em um Eu transcendental. 

Se o século XX tem sido a era da redescoberta do tempo enquanto constituinte profundo do mais profundo do propriamente humano no arco de sua aventura - veja-se Bergson, Rosenzweig, Ortega y Gasset, Heidegger e tantos outros - na dinâmica do conhecimento transcendentalmente determinado o tempo terá de ceder seu espaço à equação de igualdade que, em última análise, determina o conhecimento ao igualar a coisa ao seu conceito. É a isso que nosso autor se refere com a expressão moderada “privilégio do presente”.

“Um privilégio do presente”: no psiquismo considerado como saber, é natural que, na lógica do conhecer, a presentificação do conceito se imponha de maneira indubitável, traduzindo toda a realidade em termos do verbo ser no presente do indicativo, ainda que a descrição utilize-se de termos passados ou futuros - para o conceito, apenas a intemporalidade que o acopla a si mesmo e que o prende à coisa conceituada pode ter sentido de conhecer. 

Não se constrói, neste sentido, um corpo de conhecimento com conceitos flutuantes ou imprecisos, abertos à interpretação, mas, sim, com idéias claras e distintas, idênticas a elas mesmas apesar da precariedade do empírico, ou seja, apesar do correr do tempo. A rigor, e considerando os efeitos práticos desta afirmação, o tempo não existe propriamente, mas apenas enquanto intervalo entre o intemporal que ainda não coincidiu consigo mesmo e aquele que já se encontrou em si mesmo, no próprio processo de conhecer.

A dia-cronia do tempo é quase sempre interpretada como privação da sincronia. O advir do que há de vir é compreendido a partir da protensão, como se a temporalização do futuro não fosse senão uma espécie de domínio, uma tentativa de recuperação, como se o advir do futuro não fosse mais que a entrada de um presente”181.

E a “entrada do presente”, a entrada em cena, no campo do conhecer possível, do idêntico a si mesmo, é o que definirá a credibilidade ou não do processo racional do conhecer como um todo. O tempo cessa; em seu lugar, assume o espaço punctual da coisa referida a si mesma.

A posse

Há um outro aspecto no conhecer que não pode ser em nenhuma hipótese negligenciado: o fato de que este se coloca primariamente como apreensão do conhecido. De fato, nomear é, antes de um reconhecimento - ainda que meramente classificatório - uma forma de tomar posse do nomeado, que já não será como antes, mas terá a partir de agora, justamente, um nome que o articula à grande ordem das categorias de re-conhecimento e classificação.

E a classificação é a presentificação do classificado a esta classificação, sua integração a uma ordem maior de onde derivará seu estatuto de - exatamente - já conhecido. Este processo é resumido por Levinas da seguinte forma: “Enquanto apreender, o pensamento comporta um prender, uma apreensão, uma tomada do que é apreendido e uma posse. 

O ‘captar’ do apreender 
não é puramente metafórico. 
Desde antes do interessamento técnico, 
ele já é esboço de uma prática encarnada, 
já é ‘manuseio’. 

A presença se faz agora”182. E não é uma presença neutramente abstrata, mas uma espécie de doação à ordem do intelectualmente cognoscível, que não cessa aí, mas é o ponto de partida do próprio gozo desta apreensão - “A lição mais abstrata pode dispensar-se de todo trato manual das coisas do ‘mundo da vida’, da famosa Lebenswelt

O ser que aparece ao eu do conhecimento não somente o instrui, mas, ipso facto, se lhe . Já a percepção capta; e o Begriff (conceito) conserva esta significação de domínio. 

O “dar-se” - sejam quais forem os esforços que a distância ‘da taça aos lábios’ exige - está ao nível do pensamento pensante, promete-lhe, através de sua ‘transcendência’, posse, gozo, satisfação. Como se o pensamento pensasse à sua medida pelo fato de poder - pensamento encarnado - alcançar o que ele pensa”183

E uma satisfação que retorna sobre si mesma, que se compraz com o retorcer-se em torno à sua própria posse, que não é senão a posse da coisa cognitivamente possuída.

Em última análise, conceptualizar, conhecer, 
é comprazer-se consigo mesmo, 
 festejar as próprias energias transmutadas 
na materialidade abstrata 
dos conceitos apreendidos.

O Outro no Mesmo: a Justificação

Eis que, segundo o discurso levinasiano, estamos nos acercando eventualmente do núcleo da própria compreensão mais profunda da intentio da consciência intencional: retornar, apesar de todas as aparências em contrário, finalmente a si mesma, ou seja, à sua própria energia geradora - à sua imanência, que é onde tudo realmente se decide, inclusive o conhecimento, o co-nascimento, a co-naissance. 

 “Pensamento e psiquismo da imanência: 
da suficiência de si.

É isto precisamente o fenômeno do mundo: o fato de que um acordo é assegurado no captar entre o pensável e o pensante, o fato de que seu aparecer é também um dar-se, de que seu conhecimento é uma satisfação, como se ele viesse a satisfazer uma necessidade. Talvez seja isto o que Husserl exprime, ao afirmar uma correlação - que é a correlação - entre o pensamento e o mundo. 

Husserl descreve o saber teorético nas suas formas mais acabadas - o saber objetivante e tematizante - como satisfazendo a medida da visada, a intencionalidade vazia repletando-se”184

Lembremos novamente: estamos às voltas com o modelo mais maduro de lógica cognitiva em termos filosóficos - um modelo depurado desde as preocupações de rigor máximo de um matemático. E este modelo - que supera definitivamente, em sua dimensão de transcendentalidade que é sua base enquanto super-categoria de compreensão, o dilema entre o realismo e o idealismo, através da postulação de um idealismo maximamente realista - desemboca finalmente em um certo solipsismo do conhecimento que é gozo, na medida em que se compraz consigo mesmo.

Ela segue, nesta linha, exatamente a sugestão da vontade de sistema absoluto encontrável desde a antigüidade e que culmina em Hegel, onde a perfeição coincide com a unidade de si consigo mesmo, nesta “...obra hegeliana, para a qual confluem todas as correntes do espírito ocidental e em que se manifestam todos os seus níveis, (e que) é ao mesmo tempo filosofia do saber absoluto e do homem satisfeito”185

E nisto se constitui a própria essência do psiquismo feito saber e a lógica do privilegiamento absoluto do dado intelectual - “O psiquismo do saber teorético constitui um pensamento que pensa à sua medida e, na sua adequação ao pensável, se iguala a si mesmo, será consciência de si. 

É o Mesmo que se reencontra no Outro”186

Eis o mundo feito imenso jogo de espelhos (e não espelhos vivos e criativos, conforme as intenções de Leibniz, mas, exatamente, espelhos enquanto símbolos da tautologia em seu jogo auto-reflexivo) que, ao fim e ao cabo, nada refletem senão a si mesmos e que, na verdade, não são mais do que um; a intencionalidade sumamente refinada em apreensão dos dados transcendentais e que, ao fim das contas, não encontra senão sua vontade própria de pureza intelectual; o conhecimento que é, em sua essência mais profunda, um longo e laborioso processo de auto-justificação de si mesmo enquanto apreensão-apropriação do externo - tudo isso converge para uma questão por assim dizer anterior - ou meta-filosófica - que está sendo, aqui, paulatinamente esboçada: a questão do poder de justificação que dimana do poder de conhecer, e que é anterior ainda à proposição baconiana da coincidência entre as essências do saber e do poder. Pois “a atividade do pensamento consegue justificar toda alteridade e é nisto, ao fim das contas, que reside sua própria racionalidade. 

A síntese e a sinopse conceituais são mais fortes que a dispersão e a incompatibilidade do que se dá como outro, como antes e como depois. Eles remetem à unidade do sujeito e da apercepção transcendental do eu penso.

Hegel escreve (Wissenschaft der Logik II, Lasson, 221): ‘É às perspectivas mais profundas e mais vastas da Crítica da razão pura que pertence aquela que constitui a essência do conceito como unidade originariamente sintética da apercepção, comunidade do eu penso ou a consciência de si’. A unidade do eu penso é a forma última do espírito como saber, mesmo que ele tenha de confundir-se com o ser que conhece e identificar-se com o sistema do conhecimento”187

E existe o “eu penso” 
porque existe a unidade que como que pré-existe 
e pós-existe ao próprio “eu penso” - 

“A unidade do eu penso
é a forma última do espírito como saber. 
E a esta unidade do eu penso 
são reconduzidas todas as coisas 
que constituem um sistema.

O sistema do inteligível é,
no fim das contas, consciência de si”188

O Mesmo acaba por retornar a si mesmo, trazendo consigo sua maior conquista: o Outro despossuído de sua Alteridade e acoplado indiferenciadamente ao próprio núcleo de sua solidão tautológica em contínuo processo de auto-justificação. Seu maior instrumento nesta aventura: a intencionalidade, direção do logos que se dirige ao noema que se destaca em um horizonte de sentido como representação: uma questão do conhecer intelectual.

Representação e Intencionalidade:                        questões

A questão estaria fechada, se a fenomenologia se houvesse definitivamente encerrado com os esforços husserlianos de rigor extremo. Mas sabemos que não é assim. Por mais perfeito que seja o esquema intencional, por mais depurado que se encontre a doutrina de um Eu sofisticadamente transcendental, nem por isso a realidade como um todo se inclina à intencionalidade, ou melhor, à sua energia cognoscente. 


Pois nesta incompletude, normal às coisas humanas - por melhor desempenhadas que hajam sido as tarefas propostas intelectualmente - sobram como que sutis “franjas de incompletação”, hesitações da univocidade do sentido, que fazem com que as questões retornem à posição de sua reconsideração. É isto o que faz agora Levinas, após levar muito a sério os esforços husserlianos e apesar deles e de suas intenções: “Pergunto: a intencionalidade é sempre - como Husserl e Brentano o afirmam - fundada sobre a representação? 

Ou, a intencionalidade é o único modo da ‘doação de sentido’? O significativo (sensé) é sempre correlativo da tematização e da representação? Resulta ele sempre da reunião da multiplicidade e da dispersão temporal? O pensamento é imediatamente votado à adequação à verdade? Será ele somente captação do dado na sua identidade ideal? 

O pensamento é por essência relação 
ao que lhe é igual, quer dizer, 
essencialmente ateu?”189.

Qual é, agora, a síntese de todas estas indagações? Talvez, retornando aos inícios do texto, seja justamente: é no “psiquismo como saber, que vai até a consciência de si”, que cada um destes complexos termos - psiquismo, saber, consciência, si mesmo (e todos os outros conceitos aqui utilizados como referência pela consciência em seu processo de auto-conscientização ) - se esgota? 

É no interior deste jogo de regras fixas 
que toda a realidade é jogada? 

 É na identidade do mundo 
e no retorno triunfal dos conceitos a si mesmos
que toda verdade é hipotecada?

Mas não seria a dúvida a respeito destas asserções já um indício de que as coisas são, finalmente, bem mais complicadas? Pois o “mundo” é grande, e a “realidade” maior ainda; e, pelo menos desde meados do século passado, sabemos que não há ‘eu’ que os recolha em si mesmo sem deixar restos - na medida em que este ‘eu’ é, também, um conceito historicamente carregado e assume na crítica, em última análise, o estatuto de uma figura de razão, ainda que importantíssima historicamente e que necessita ser urgentemente, reconsiderado em sua raiz de significação viciada de desconsolada racionalidade solitária no violento espectro - desrespeitoso para o mero conceito - precisamente deste fim de século.

A “consciência passiva”

Resumamos agora o que temos até aqui: trata-se da descrição da consciência intencional enquanto tal, e de seus atos intencionais, “...denominação conferida às unidades da consciência intencional”190 - consciência que tem em última análise na representação sua “base191 - pois “consciência implica presença, posição-diante-de-si, ou seja, a ‘mundaneidade’, o fato-de-ser-dado. Exposição à apreensão e à captação, à com-preensão, à apropriação... domínio ativo sobre a cena onde o ser dos entes se desenrola, se reúne e se manifesta...”192

Consciência que acaba coincidindo com o esforço original do conatus essendi: “Consciência como o próprio cenário do esforço incessante do esse em vista deste próprio esse, exercício quase tautológico do conatus ao qual converge a significação formal deste verbo privilegiado que levianamente se chama de auxiliar”193

Porém, constata nosso autor, a consciência sobre o mundo, do mundo, “é também indiretamente, e como que por acréscimo, consciência de si mesma, consciência do eu-ativo que se representa mundo e objetos assim como consciência de seus próprios atos de representação, consciência da atividade mental. Consciência todavia indireta, imediata, mas sem visada intencional, implícita e de puro acompanhamento”194

Consciência enquanto retorção involuntária sobre si mesma, consciência não-retesada, “consciência refletida, (que) toma por objetos o eu, seus estados e seus atos mentais. 

Consciência refletida em que a consciência dirigida sobre o mundo busca segurança contra a inevitável ingenuidade de sua retidão intencional, esquecida do vivido indireto do não-intencional e de seus horizontes, esquecida do que a acompanha”195

O esquema da intencionalidade não esgota o contexto no qual a intencionalidade se dá: antes depende dele; a consciência não se reduz a um “fora de si mesma” na intencionalidade, mas a própria intencionalidade dirige-se a algo desde uma situação que é não só anterior como é mais do que um ponto geométrico ideal, a saber, sua situação de origem - sua filiação à realidade, à vida desde a qual se pode conceber o “vivido”.

É claro que se pode imaginar este ‘vivido” - e isto tem sido feito com sobeja freqüência na história do pensamento, como já vimos - como nada mais do que o “ainda não sabido” - que significa, aqui, o ainda não-intencionalizado196.
Mas, apesar disso, “nada impede, contudo, que se pergunte se, sob o olhar intencional da consciência refletida, tomada como consciência de si, o não-intencional, vivido em contraponto ao intencional, conserva e libera seu sentido verdadeiro...”197

E “verdadeiro” significa, aqui, 
“pré-original’ com relação à intencionalidade. 

Desloquemo-nos, portanto, para o “mundo paralelo” que corre por fora dos esquemas lógicos tradicionais do conhecimento, da intencionalidade, e que, todavia, é sempre subrepticiamente pressuposto, na medida em que, em última análise, sustenta a própria idéia de sua possibilidade.
Levinas coloca a questão nos seguintes termos: 

“O que se passa, pois, 
nessa consciência não-reflexiva, 
que se toma somente por pré-reflexiva e que, implícita, 
acompanha a consciência intencional visando na reflexão, intencionalmente, ao si mesmo, como se o eu-pensante 
aparecesse ao mundo e a ele pertencesse?

O que se passa nessa dissimulação original, 
neste modo de inexprimível, 
neste concentrar-se-sobre-si do inexplícito?

O que pode significar, 
de algum modo positivamente, 
esta pretensa confusão, esta implicação?”198

E isto somente pode ser feito a partir de distinções claras entre os componentes aparentemente obscuros que habitam estas “sombras” no campo de iluminação do logos. Assim, “não é o caso de distinguir o envolvimento do particular num conceito, o sub-entendimento do pressuposto numa noção, a potencialidade do possível num horizonte, de uma parte, e a intimidade do não-intencional na consciência pré-reflexiva?”199

Eis, portanto, a questão proposta em torno ao tema: distinguir com clareza entre, de um lado, os componentes relativamente analisáveis deste composto, compreensíveis apesar de tudo desde um prisma de “conhecer”; e, de outro, algo que, presente, não se dá senão como intimidade, como proximidade extrema e acoplamento à própria idéia de origem: espécie de consciência fraca, ou, em oposição terminológica à boa e ativa consciência da claridade intencional, uma determinada consciência passiva.

Passividade pura, má consciência

Mas o que é, agora, o “saber” da consciência pré-reflexiva? “Para falar com propriedade, o ‘saber’ da consciência pré-reflexiva por si mesmo sabe? Consciência confusa, consciência passiva que precede toda intenção ou duração retornada de toda intenção - ela não é ato, mas passividade pura. Não somente pelo seu ser-sem-ter-escolhido-ser ou por sua queda num emaranhado de possíveis já realizados antes de toda assunção, como na Geworfenheit heideggeriana. ‘Consciência’ que antes de significar um saber de si é apagamento ou discrição da presença”200

A “consciência não-intencional”
é o inverso da claridade do saber e do conhecer; 
do assumir uma posição intencional, 
da atividade que só a luminosidade 
do logos intencional pode sustentar 

- e, por isso, é de certo modo uma “má consciência” que, por assim dizer, não cumpre o que dela se poderia esperar, mas permanece na discrição de sua quase-ausência, não por medo, mas por fidelidade às suas origens por assim dizer “pré-racionais”. 

“Má consciência: sem intenções, sem visada, sem a máscara protetora do personagem contemplando-se no espelho do mundo, seguro e a se posicionar. Sem nome, sem situação e sem títulos. Presença que teme a presença, nua de todo atributo. Nudez outra que a do desvelamento, outra que a do pôr a descoberto da verdade”201

Consciência não obssessionada 
pela descoberta a qualquer preço da verdade intencional,
já que a única verdade que conhece é: existir. 

“Na sua não-intencionalidade, aquém de todo querer, antes de toda falta, na sua identificação não-intencional, a identidade recua diante de sua afirmação, diante do que o retorno a si da identificação pode comportar de insistência. Má consciência ou timidez: sem culpabilidade acusada e responsável por sua própria presença. Reserva do não-investido, do não-justificado, do ‘estrangeiro sobre a terra’ segundo a expressão do salmista, do sem-pátria ou do sem-domicílio que não ousa entrar”202.

“Falha” do logos identificante? Ou, antes, possibilidade mesma de se vir a poder concebe-lo? “A interioridade do mental é, talvez, originariamente isto. Não no mundo, mas em questão. Em referência a que, na ‘lembrança’ de que, o eu que já se põe e se afirma - ou se firma - no mundo e no ser, fica ambíguo - ou enigmático o suficiente - para se reconhecer, segundo a palavra de Pascal, detestável na própria manifestação de sua identidade enfática da ipseidade - na linguagem, no dizer-eu?

A prioridade soberba do A é A, princípio de inteligibilidade e de significância, esta soberania, esta liberdade no eu humano é também, se se pode dizer, o advento da humildade. Questionamento da afirmação e da consolidação do ser, que se reencontra até na famosa - e facilmente retórica - busca do ‘sentido da vida’, como se o eu-no-mundo, que já tomou sentido a partir das finalidades vitais, psíquicas ou sociais, remontasse a sua má consciência”203.

A esta “má consciência” 
não se chega pelo domínio ou conhecimento 
-tomada de posse - ou redução ao conhecido. 

“A consciência pré-reflexiva, não intencional, não poderia ser descrita como tomada de consciência desta passividade, como se, nela, já se distinguisse a reflexão de um sujeito, colocando-se como que no ‘nominativo indeclinável’, assegurando seu direito de ser, e ‘dominando’ a timidez do não-intencional, qual infância do espírito a ser ultrapassada ou qual acesso de fraqueza sucedido ao psiquismo impassível.

O não-intencional 
é imediatamente passividade, 
o acusativo é seu primeiro caso”204.

A inversão - a questão da justiça

Mas este jogo não se resume a uma questão formal. Não se trata de uma situação bi-polar atividade-passividade, onde se esteja, em contracorrente, ressaltando intelectualmente a existência real do não-intencional, do passivo. A situação é muito mais abrangente e grave, e situa-se em uma dimensão, no fundo, muito diferente - não pelo jogo conceptual ao que está sendo, didaticamente, submetida, mas por sua própria realidade. 

Pois, em verdade, “...esta passividade, que não é o correlato de qualquer ação, descreve menos a ‘má consciência’ do não-intencional do que por ela se deixa descrever. Má consciência que não é a finitude do existir significada na angústia”205. Pois “minha morte, sempre prematura, coloca em xeque o ser que, enquanto ser, persevera no ser, mas este escândalo não abala a boa consciência de ser, nem a moral fundada sobre o direito inalienável do conatus.  

Na passividade do não-intencional - no próprio modo de sua ‘espontaneidade’ e antes de toda formulação de idéias ‘metafísicas a este respeito - coloca-se em questão a própria justiça da posição no ser que se afirma com o pensamento intencional, saber e domínio do ter-à-mão (main-tenant): ser como má consciência; ser em questão, mas também ser votado à questão, ter que responder - nascimento da linguagem; ter de falar, ter de dizer eu (je), ser na primeira pessoa, ser eu (moi) precisamente; mas, conseqüentemente, na afirmação de seu ser em mim, ter de responder por seu direito de ser”(grifo nosso)206.
 
Eis que ocorre, na mais indireta dimensão da “consciência não-intencional” - na sua passividade que não exerce poderes, mas que acompanha o nascimento da vontade de poder (ainda que se entenda este como um poder intelectual, da consciência intencional) - o impulso na direção da própria compreensão da idéia de ser, ou seja, de realidade; não se trata mais de um ser cuja mera existência é sua própria justificação e o exercício de seus poderes a constante re-legitimação desta justificação, mas, sim, trata-se de um dado em questão, que tem na própria precariedade da passividade original (evidenciada em contraste com a exuberância do logos feito intencionalidade consciente), da qual não se pode desfazer como alguém se desfaz de trajes incômodos, uma vocação - uma chamada - à resposta. E não a qualquer resposta, mas uma resposta de outra ordem em relação ao jogo identificatório do Mesmo. 

Em outros termos, o ser está em questão, mas, definitivamente, não para si mesmo (pois esta questão, a rigor, está já resolvida a priori em seu próprio processo de auto-identificação), mas para o que não é ele nem simples correlato de suas potências (o que, metodologicamente, vem a dar no mesmo neste contexto) - e que, paradoxalmente, para uma certa linha de pensamento - também não é meramente “nada”. 
 
Aprofundando algo mais este tema, o que acontece é que, levado ao seu extremo, o jogo de conceitos esgotou-se em si mesmo, e tal se deu pela exposição, no momento exato de sua “origem”, de um elemento, ou dimensão, que engloba em si dois opostos a rigor não sintetizáveis: a radical fraqueza e a existência - pois o existir teve ao menos forças para, exatamente, existir. Obviamente, nenhuma novidade há em pensar a existência como “fraca” ou “precária”207.

A novidade consiste em outro ponto: mais exatamente, em ressaltar a violência que se exerce sobre a existência enquanto precariedade, enquanto outro lado da consciência poderosa, enquanto Outra do Ser que julga dever razões apenas a si mesmo - e este é um dos paradigmas ancestrais da violência real em si mesma. 

“Aqui se revela o sentido profundo
da palavra pascaliana: o eu é detestável”208.

O Plural e o Responder

A precariedade da consciência não intencional, sua incômoda imprevisibilidade na ordem do real intelectualmente reconstruído, sua “presentificação” colateral, tudo isto envia ao inesperado do plural na própria hora do exercício da singular operação intencional. 

Mas não um plural que será, a seguir, sincronizado e anulado em sua dimensão de pluralidade, estando a partir de então “integrado” à lógica horizontal da claridade conceptual, e, sim, no que não se coloca em termos de integração, mas em termos - tenta-nos a expressão “termos involuntários” - de incomodidade opositiva, sombra inesperada no campo de uma luz poderosa, espécie de “ruptura primeva da imanência original”209, que significará a colocação em questão da completude do universo de ser, ou seja, das potências iluminadoras da consciência enquanto (auto)justificativa para o exercício do poder real, sincronizante, de redução da alteridade a uma função sua em todos os níveis - inclusive no nível de sua auto-compreensão, agora complicada pela irrupção do inesperado.

Pois esta compreensão está também prejudicada, pré-judicada, na medida em que não se compreende em toda a sua origem, mas apenas em sua origem ontológica, onto-racional, iluminante. 

Há, portanto, um temor;
e este não é um temor qualquer, 
mas o protótipo de todos eles: 
o temor do desconhecido.

E o temor do desconhecido por excelência é o temor do Outro ou de outrem. 

“Ter de responder por seu direito de ser, não por referência à abstração de alguma lei anônima, de alguma entidade jurídica, mas no temor de outrem. Meu ‘no mundo’ ou meu ‘lugar ao sol’, minha casa não foram usurpação dos lugares que pertencem ao outro homem já por mim oprimido ou reduzido à fome?

Cito mais uma vez Pascal:

‘É meu lugar ao sol,
eis o começo e a imagem da usurpação de toda terra’. 
Temor por tudo aquilo que meu existir, 
apesar de sua inocência intencional e consciente,
pode realizar como violência e como assassinato”210

Temor que é em uma determinada dimensão “auto-temor”, auto-questionamento de poderes de um ser que se descobriu, apesar da claridade onde vive e que descortina, apesar de suas promessas a si mesmo, não totalmente “completo”. 

“Temor que sobe por detrás de minha ‘consciência de si’
e sejam quais forem - em direção à boa consciência 
- os retornos da pura perseverança no ser”211

Um temor que, embora se enraíze no que de mais profundo o ser possa localizar em si mesmo (trata-se da intensidade de uma sombra original) tem seu domicílio fora de meu âmbito de poder, metafenomenologicamente: “temor que me vem do rosto (visage) de outrem. Retidão extrema do rosto do próximo, que rasga as formas plásticas do fenômeno. 

Retidão de uma exposição à morte, 
sem defesa; e, antes de toda linguagem e de toda mímica...
(uma) súplica dirigida ou ordem significada, 
questionamento de minha presença
e de minha responsabilidade”212.

A inversão ética

Estamos, agora, muito além de ex-plicações e significados puramente intelectuais; nosso intelecto está mobilizado no estreitíssimo fulcro de sua impotência enquanto autonomia de referência “absoluta” da realidade como tal. Trata-se de um pequeno, mas poderoso, buraco negro no universo da luminosidade racional. 

Nenhuma explicação - e, por extensão, nenhuma justificação - dá conta deste original “instante de decisão213 ou início do tempo do encontro. Todas as explicações são posteriores, derivadas, como bem diz o próprio termo; e o encontro pré-original do Outro sustentará, neste sentido, todas as explicações possíveis. 

E se este encontro à revelia do ser solitário se dá, apesar de tudo, em realidade, ou seja, traz consigo a sua verdade e sua própria “substância” sem se reduzir a uma produção, projeção ou excrescência da razão objetivante, então ele é anterior à própria possibilidade do conhecimento, de conhecer “algo enquanto tal”, é anterior a quaisquer jogos de intencionalidade, é anterior mesmo à onto-logia, pois dela não deriva, mas dá-se apesar dela. 

 Em outras palavras, e esta formulação procura tanto quanto possível carregar na extrema radicalidade do que é aqui afirmado, este encontro designa a própria ancestralidade do real frente às suas explicações posteriores; esta pluralidade é a originariedade do próprio ente que um dia ousará pensar(-se) solitariamente.  

Trata-se de um acontecimento fundante. Podemos chamá-lo de “ética”, se esta, como Levinas propõe, não se entende como uma mera reflexão “neutra” sobre o agir nem como um corpo intelectual de prescrições para este agir, ou como o estudo interno de determinadas proposições, mas fundamentalmente como um acontecimento radical.
E, como acontecimento radical, é com situações extremas que a ética se tem de ver, temas de vida e morte: 

“Temor e responsabilidade pela morte do outro homem, mesmo que o sentido último desta responsabilidade pela morte de outrem seja responsabilidade diante do inexorável e, derradeiramente, a obrigação de não deixar o outro homem só face à morte.

Mesmo que, face à morte - em que a própria retidão do rosto que me suplica revele enfim plenamente tanto sua exposição sem defesa quanto seu próprio fazer-face - mesmo que, no ponto derradeiro, nesta confrontação e impotente afrontamento, o não-deixar-o-outro-homem-só não consista senão em responder ‘eis-me aqui’ à súplica que me interpela. É isto, sem dúvida, o segredo da socialidade...”214
A ética, em sua radicalidade, 
é sempre originária situacionalmente 
de uma aproximação extrema de  
“pontos derradeiros”.

Auto-referência e ruptura

A situação de proximidade de pontos derradeiros me expõe também a uma nova situação extrema: o ter de abdicar faticamente de minha auto-referência, agora não mais no nível do pensamento, mas no nível do fundamento original de minha ação
“O temor por outrem,
temor pela morte do próximo, é meu temor, 
mas de modo nenhum temor por mim. 

Ele rompe assim com a admirável análise fenomenológica que Sein und Zeit propõe da afetividade: estrutura refletida em que a emoção é sempre emoção de algo que emociona, mas também emoção por si-mesmo, em que a emoção consiste em se comover - em atemorizar-se, regozijar-se, entristecer-se, etc. - dupla ‘intencionalidade’ do de e do por participando da emoção por excelência: da angústia, ser-para-a-morte, em que o ser finito fica comovido de sua finitude por esta finitude mesma”215

Estamos aqui em um dos ápices deste conjunto de reflexões: a finitude humana - grande descoberta do século XX - não é “negada”, mas não permanece presa a si mesma, em um certo encantamento auto-referido, e, sim, sai de seu próprio ser através da entrega de seu ser - do sentido de seu ser postado em sua condição extrema - à Alteridade.

“O temor pelo outro homem 
não retorna à angústia pela minha morte. 

Ela excede a angústia do Dasein heideggeriano. Abalo ético do ser, para além de sua boa consciência de ser ‘em vista deste próprio ser’ cujo ser-para-a-morte marca o fim e o escândalo, mas sem despertar escrúpulos”216.  

Traumatismo da angústia,
onde esta não pode permanecer referida a si mesma, 
no círculo de sua eterna auto-compreensão
e auto-piedade, mas é obrigada a romper-se  
desde sua própria estrutura
em última análise solitária.
 
A angústia do descobrir-se finito não é o seu próprio limite e nem a última das constatações da fenomenologia do humano; há ainda algo de mais traumatizante para o indivíduo que sua própria pena, a saber, o trauma a que esta angústia fica sujeita na medida em que seu campo de compreensão coincide apenas com seus limites solitários e que é, portanto, transtornada pela infinita angústia do Outro que, exatamente, invade - com sua Alteridade aqui compreendida como angústia pelo Mesmo finito - estes limites solitários. 

O paradoxo extremo - a minha morte, frente a qual todas as tentativas de fechar uma totalidade de sentido convergem num só ponto: o fracasso217 - transforma-se assim na ante-sala de um paradoxo ainda maior: que eu, no momento da decisão definitiva de minha realidade, possa vir a ser tomado por um interesse para além de meus limites, rompendo assim, no próprio instante-limite de minha existência, a concha de sentido auto-referente e auto compreensivo na qual - sempre, mas neste instante mais que em outros - minha existência cultivara o hábito de se refugiar. 

O trauma final 
é a ruptura final do imenso círculo
de minhas auto-consolações, 
arrancando-me de sua precariedade solitária 
e totalizada e expondo-me à vocação da Alteridade. 

Eis o que significa a inversão ontológica e a investidura da ética como prima philosophia: “temer mais a injustiça que a próprio morte”218, perceber na proximidade da morte uma possibilidade de reparação de uma injustiça, re-escrever a origem do “sentido”.
 
Sentido para além do sentido circunscrito à minha existência solitária: excesso - “reviravolta a partir do rosto (visage) de outrem em que, no seio mesmo do fenômeno em sua luz, significa um excedente de significância que se poderia designar como glória que me interpela e me ordena”219 - interpelação e ordenação que me farão, provavelmente, entrar em um “pensamento não-intencional do in-apreensível”220.  

Inversão da fenomenologia: metafenomenologia, que significa uma não-indiferença ao não-captável pelo conhecimento em seus limites auto-impostos pela sua racionalidade reflexionante, agora explodidos pelo traumatismo que me causa quem não é eu e, não obstante, me interpela - “não indiferença pelo absolutamente diferente”221.

Assim, segundo esta reflexão, “a alternativa do ser e do nada não é última... no apelo, eu sou enviado ao outro homem pelo qual este apelo significa, ao próximo pelo qual me preocupo”222.

Estranha subversão da (auto)perseverança ontológica, “a maravilha do eu desembaraçado de si... é assim como a suspensão do eterno e irreversível retorno do idêntico a si mesmo e da intangibilidade de seu privilégio lógico e ontológico. Suspensão de sua prioridade ideal, negadora de toda alteridade, excluindo o terceiro.

Suspensão da guerra
e da política que se fazem passar 
como relação do Mesmo ao Outro. 

Na deposição pelo eu de sua soberania de eu, na sua modalidade de eu detestável, significa a ética, mas também, provavelmente, a própria espiritualidade da alma: o humano ou a interioridade humana é o retorno à interioridade da consciência não-intencional, à má consciência, à sua possibilidade de temer a injustiça mais que a morte, de preferir a injustiça sofrida à injustiça cometida, de preferir o que justifica o ser àquilo que o garante”223

A finitude, o instante assumido, a situação-limite, a temporalidade real, o descompasso inexprimível, a proximidade traumatizante e inelutável do Outro, permitem e exigem o desbordamento dos esquemas nos quais a grande massa de tradições filosóficas tem submergido, na direção de uma reconfiguração da existência e do conhecimento em que a Alteridade fundamenta o sentido do ser, e o faz de-outro-modo-que-ser - pois “Ser ou não ser, provavelmente não é aí que está a questão por excelência”224.

Ricardo Timm de Souza


1995/1999
1997
Publicado originalmente em Veritas 
– Revista de Filosofia da PUCRS,
junho/1999

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte:
Sentido e Alteridade
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
Porto Alegre - 2009
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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