domingo, 29 de maio de 2011

PARA ALÉM DA TIRANIA DO TEMPO MACIÇO EM LEVINAS - Ricardo Timm de Souza

"O SENTIDO DA ALTERIDADE"

SEXTO ENSAIO 

- Para além da tirania do tempo maciço – sobre “Diacronia e Representação”

Introdução

A estrutura “normal” dos processos do conhecimento ocidental consiste, prioritariamente, em reduzir ao mínimo a diferença que, raiz e origem da motivação do próprio conhecer, não pode permanecer como tal, sob pena de colocar em risco o sucesso do empreendimento cognoscitivo nos moldes da tradição229

Aí consiste a grandeza do conceito e da analogia: trazem à visão intelectual algo da realidade como se fosse a realidade mesma, e permitem, entre outros sucessos, o estabelecimento de uma ciência empírica poderosa e de seus derivativos.

Tal se dá, porém, com o sacrifício de uma dimensão fundamental da existência humana, que é por sua vez uma diferença irredutível a algum determinado conceito ou construção intelectual de pretensões sejam objetivas sejam subjetivas: a temporalidade de um existir anterior ao pensar, incontornável condição de princípio para que a própria questão da diferença seja equacionada, ou, em outros termos, condição de origem de toda e qualquer posição frente à realidade, incluindo a intelectual.

A aproximação incisiva dessa condição de origem oferece interessantes surpresas a quem a empreende: acaba por desarticular a logicidade interna de um tempo ordenador e servo do logos identificante, um tempo sincronizante e tirânico que ordena a realidade à medida em que a ilumina e a transforma por assim dizer em função sua.

É uma aproximação desse teor
que Levinas empreende no artigo 
“Diacronia e Representação”230

No presente texto, acompanharemos tal artigo em seus avanços no sentido do evidenciar de uma situação de ruptura da estrutura de presentificação intelectual enquanto cristalização temporal na sincronia dos tempos formais; após, examinaremos rapidamente algumas das conseqüências iniciais dessa ruptura.

O intelecto e seus poderes

Na nossa tradição, conhecer é ver, ver que é sempre um desocultar intelectual, um ato soberano de visão, ainda que se refira à relação entre seres dotados de linguagem: “a esfera da inteligibilidade - do significativo(sensé) - na qual se mantém a vida cotidiana e mesmo a tradição de nosso pensamento filosófico e científico, caracteriza-se pela visão.

A estrutura do ver, tendo visto por objeto ou por tema... encontra-se no acesso intelectual aos estados-de-coisa ou às relações entre coisas e, aparentemente, também na freqüentação dos seres humanos entre si, entre seres que se falam e dos quais se diz que se vêem. Assim, anuncia-se a prioridade do conhecer, em que se tece o que chamamos pensamento, ou inteligência, ou espírito, ou simplesmente psiquismo”231. A cognoscibilidade de algo significa a crença na sua possibilidade de clarificação e, conseqüentemente, de visão qua objetificação. 

Nada se conhece sem um “ver intelectual” que significa, exatamente, a combinação precisa entre a claridade e o distinguir que envolvem o visto e o destaca do indiferenciado. Claridade e distinguir “intencionais”, se quisermos pensar em termos da função pragmática de uma refinada articulação entre o racionalismo cartesiano e a fenomenologia husserliana - intérpretes que são de toda uma inspiração e um sentido interpretativo do ocidente filosófico. 

Não houvesse a crença na possibilidade de clarificação, e não se poria a questão pelo ser ou pela arché, e ainda menos pela razão da “existência de algo e não, antes, do nada”. 

É porque o nada não é nada, 
mas já algo, 
que essa questão pode ser concebida232

É porque existe a crença
na capacidade quase “visual” de uma resposta 
que uma questão é proposta. 

Destaque-se aqui, desde já uma característica fundamental do conhecer intelectual: o ato intelectual de ver é também a expressão de uma vontade de ver, de uma vontade de conhecer: a visão - diferentemente da audição - é por sua natureza invasiva e sintetizante. 

Quem vê, quem entende algo, quem aplica a inteligência na solução de um problema ou na análise dos elementos constituintes de uma questão, não o faz, em último termo, à revelia de sua vontade, mas, exatamente, porque essa vontade se faz inteligência e se dirige ao interior do objeto para compreendê-lo. 

Mas a inteligência que acredita na claridade e efetivamente clarifica é também modalidade explícita ou implícita de consciência: “pensamento, inteligência, espírito, psiquismo seriam consciência ou se daria na entrada da consciência. A consciência do homem seria disto uma modalidade perfeita: consciência do eu idêntico no seu eu penso, visando e abarcando ou percebendo, sob seu olhar tematizante, toda alteridade. Esta perspectiva do pensamento chama-se intencionalidade”233

E “...intencionalidade significa também a aspiração, a finalidade e o desejo, um momento de egoísmo ou egotismo e, em todo caso, de egologia”234 - exercício soberano de vontade de poder. É dessa forma que a diferença original, a alteridade fundante à qual aludimos no início, é anulada, exatamente, em sua dimensão de alteridade, de diferença: não pode permanecer diferente, pois assim o quer uma vontade, a vontade de saber. “O outro, ‘intencionalmente’ visado, investido e reunido pela apercepção do eu penso, vem, através do pensado, enquanto pensado - através do noema - preencher ou completar ou satisfazer a visada - ou o desejo ou a aspiração - do eu penso e sua noese

O outro é, assim, presente ao eu. E este “ser-presente” ou esta presença ao eu do ‘eu penso’ equivale a ser”235, e o conhecer é, ao fim e ao cabo, uma “manu-tenção essencial... a ‘manu-tenção’ do presente sublinha sua imanência como a própria excelência deste pensamento”236.

O conhecido está à vista, nesse momento preciso de claridade cognoscitiva, do conhecedor; e essa é, na dimensão tradicional da intencionalidade, a própria essência do ser conhecido, sua essencialidade feita presente.

A potência da presentificação e o presente do indicativo

“Mas, então, a inteligibilidade e a inteligência, situadas no pensamento entendido como visão e conhecimento, e interpretadas a partir da intencionalidade, consistem em privilegiar, na própria temporalidade do pensamento, o presente em relação ao passado e ao futuro”237.
 
Todo conhecer é um presentificar, isso é, o retrair da realidade conhecida a um ponto preciso de visibilidade que se dá exatamente no núcleo do presente, no presente do indicativo, no presente da intencionalidade - “tratar-se-ia, para compreender a alteração da presença no passado e no futuro, de reduzir e reconduzir passado e futuro à presença, isto é, de os re-presentar”238

E isso sob a forma de síntese - pois todo conhecimento é síntese enquanto sincronização - congruência identificatória do conhecer e do conhecido: “...tratar-se-ia de entender toda a alteridade que se reúne, que se acolhe e se sincroniza na presença ao interior do eu penso e que, assim, se assume na identidade do Eu - trata-se de entender esta alteridade como sua e, pelo próprio fato, de reconduzir seu outro ao mesmo239

Essa é a realização da crença original na possibilidade de conhecer o real enquanto dado da inteligência: “o outro faz-se o próprio do eu no saber que assegura a maravilha da imanência.

A intencionalidade na visada 
e a tematização do ser - isto é, na presença 
- é tanto retorno como saída de si”240

Eis, então, a dimensão essencial e determinante daquilo que se entende normalmente sob o nome de “conhecimento”, e, de forma conscientemente redundante, circunscrevemos como conhecimento intelectual: “no pensamento entendido como visão, conhecimento e intencionalidade, a inteligibilidade significa, pois, a redução do Outro ao Mesmo, a sincronia como ser na sua reunião egológica.

No conhecido exprime-se a unidade da apercepção transcendental do cogito ou do eu penso kantiano, a egologia da presença afirmada de Descartes a Husserl; e até Heidegger onde, no parágrafo 9 de Sein und Zeit, o ‘a-ser’ do Dasein é a fonte da Jemeinigkeit e, em conseqüência, do Eu”241

A questão do pensamento identificante, que é um exercício de poder identificante, sugere sempre o caminho em direção a uma visão intelectual sintética-sincrônica, onde tempo e diferença têm de abdicar de sua especificidade inconfundível na teia da existência para se transformarem em categorias lógicas. 

Todas as duplicidades e desdobramentos, idas e vindas, circunscrições e classificações, todas as distinções e detalhamentos analíticos estabelecidos entre conhecedor e conhecido provam enfim sua dimensão real: a da identidade no presente.

É agora de se notar que, normalmente, a linguagem é compreendida como a expressão possível dessa estrutura sintetizante. A língua grega e suas derivações são, antes de mais nada, uma lógica muito bem determinada: a lógica de presentificação potencialmente intersubjetiva de sínteses intelectuais, onde ela mesma se articula como síntese.

É provavelmente por isso que pode surgir na filosofia a questão famosa: pensamos e então dizemos, ou dizemos e esse dizer é pensar? Essa questão explicita o ponto nodal que se está a sugerir, a saber, que a linguagem (mesmo a linguagem estruturadora de mundos de sentido ou universos específicos de significação) seria exclusivamente, de uma ou outra forma, uma modalidade especial de tradução de uma visão intelectual, ou então parte do processo de composição dessa visão242

“A linguagem pode passar por discurso interior 
e ser sempre referida à reunião da alteridade 
em unidade da presença pelo ego 
do eu penso intencional. 

Mesmo que outrem entre nesta linguagem - porque pode nela entrar - esta referência à obra egológica da re-presentação não é interrompida por esta entrada...”243 

É a crença na fidelidade à figuração intelectual que a linguagem portaria e a simultânea desconfiança nessa crença que faz com que a questão acima expressa, da precedência do falar ou do pensar, possa surgir, questão que - é pertinente ressaltar - não surge naturalmente em outros universos de pensamento que não tenham a obsessão pela arché ou a intuição das essências como metas últimas do pensamento244.

E o enunciado traz consigo seu próprio tempo, seu próprio sentido de presente. A temporalidade se consubstancia no corpo do conhecimento intelectual, e o tempo é subsumido, com seu potencial indeterminado, na determinação de um presente de sentido, ou, dito de outra forma, em uma unidade sincrônica - a qual corroborará as melhores tradições intelectuais objetivantes e doravante demarcará o modelo de racionalidade aperceptiva do logos.

A permanência do tempo

“Que haverá mais infeliz do que o homem
escravizado por suas quimeras?”245
 
A questão fundamental agora é: “o tempo teria, assim, feito valer sua intriga incompreensível?”246. É a fenomenologia intencional do tempo, em sua estrutura de pro-tensões e re-tenções husserlianas que reduzem o tempo da consciência finalmente à “representação do presente vivo”247: consciência de tempo, representação da presença - a superação da questão da temporalidade enquanto tal?

Ou há, mesmo aí, um factum incontornável, uma pressuposição anterior de um tempo já dado em suas análises de protensão e retenção exatamente enquanto escoamento fluxional ao qual cumpre compreender em seu sentido intencional?248 

“Um tempo escoando como fluxo.
Metáfora viva da temporalidade emprestada ao ente,
que é um líquido cujas partículas estão em movimento, 
movimento que já se realiza no tempo”249.

Chegamos, assim, à questão pela reproposição da anterioridade da própria determinação de sentido possível à sincronia da visão intelectual, não por uma aposição posterior de uma visão intelectual como as outras, mas como percepção de uma dimensão por assim dizer originária ao próprio esquematismo intencional de qualquer índole, inclusive o que, com extrema habilidade, tem como alvo a questão da presentificação do tempo:

“É preciso, por conseguinte, se perguntar se inclusive o discurso dito interior - que permanece assim egológico e à medida da representação, apesar de sua cisão em questões e respostas dirigidas pelo eu a si, e onde a associação de vários é possível, à condição que ‘uns entrem no pensamento de outros’ - se este discurso, apesar de suas cisões pretensamente interiores, já não repousa numa prévia socialidade com outrem, onde os interlocutores são distintos”250.

Não é essa a própria condição mesmo do “diálogo interior”: “...uma ruptura, mesmo que provisória, entre si e si... socialidade outra que aquela que se reduziria ao saber que se pode adquirir de outrem, como se fosse objeto conhecido já portador da imanência de um eu fazendo a experiência do mundo”251.

Não seria, em outros termos, o diálogo interior uma espécie de redução do diálogo real? - “o diálogo interior não pressupõe, para além da representação de outrem, uma relação ao outro homem enquanto outro, e não uma relação direta ao outro já percebido como o mesmo pela razão de imediato universal?”252.

É difícil, em se tendo em vista a questão propriamente humana em que se constitui um diálogo efetivo - do qual o diálogo “interior” gostaria de ser uma forma de reprodução controlada -, pensar doravante em termos de representações, por mais sofisticadas que sejam, que se constituíssem em “unidades” de algum diálogo ideal.

Uma mera idéia como essa beira já o grotesco 
ou um descontrole da imaginação 
intelectual-figurativa.

O que está aqui realmente em jogo é o seguinte: uma tal idéia - de uma rede dialogal tendo como “dialogantes” essências presentificadas - só pode surgir quando, devido à dimensão desproporcional assumida pela estrutura sincronizante, intelectual-figurativa de pensamento na história da filosofia do ocidente - a atrás referida “pré-situação” dialogal de fato não se dá no universo dos fatos.

É por isso que se teve, pelas tantas, de pensar em “filosofias do diálogo”, quando, bem o sabemos, pelo menos desde Platão o “diálogo” é uma forma privilegiada de argumentação filosófica - mas de argumentação egológica. Após se falar sob a forma de diálogo por mais de dois mil anos, é entrado o século XX - e não devido ao desenvolvimento normal do pensamento ocidental253 - que a questão propriamente dita da possibilidade real do diálogo se torna um problema filosófico.

Nesse sentido, é de se perguntar se o concerto das idealidades mutuamente presentes esgotam o que se poderia entender por racionalidade do discurso. Levinas propõe a questão de forma tríplice: 

“É chegado o momento de perguntar se esta entrada de uns na representação de outros - se este acordo entre pensamentos, na sincronia do dado - é a única - original e última - racionalidade do pensamento e do discurso; se esta reunião do tempo em presença pela intencionalidade - e, assim, se a redução do tempo à essência (essance) do ser, sua redutibilidade à presença e à representação - é a intriga primordial do tempo; e se a manifestação da presença - se o aparecer - eqüivale à racionalidade”254.

Mais que dito - por uma idéia de linguagem

Sigamos ainda Levinas na trilha aberta por essa complexa questão. A resposta a essa tríplice questão passa pelo processo de desarticulação da linguagem enquanto mera presença de significado, ou mero sentido tornado presente em uma espécie de iluminação intelectual que até pode ser intersubjetivamente comunicada ou sugerida. 

Tal sentido tem naturalmente seu valor; é toda a estrutura de uma gramática ou de uma construção proposicional que está em jogo. Mas, “a linguagem é significativa unicamente no seu dito, nas suas proposições ao indicativo, em toda parte ao menos latentes, no teorético dos julgamentos afirmados ou virtuais, puras comunicações de informações?

A linguagem não é significativa na socialidade do dizer, na responsabilidade por outrem, que comanda questões e respostas do dizer e pela ‘não presença’ ou ‘apresentação’ do interlocutor, que decide assim sobre a presença das coisas, segundo a simultaneidade profunda do universo dado?”255

Parece evidente que a linguagem é, além de enunciar, bem mais do que enunciar, e mesmo mais do que “fazer coisas com palavras”. A linguagem é também uma estranha intersecção de mundos humanos, intersecção sempre inacabada mas sempre recorrente - ou, talvez, a linguagem é a árdua construção de intersecções entre mundos de sentido. Mas construção em processo, por enunciados, por sugestões, por dizeres que se cristalizam em ditos e nunca se esgotam.
Assim, na linguagem cabe muito: enunciados, juízos, atos performativos, simbolizações as mais diversas, cadeias de sentidos - e cada filosofia da linguagem parcial, ao analisar um ou vários desses aspectos, tem seu valor. Mas a linguagem é mais do que isso, e por isso cabe tanto em seu processo.
Aventemos aqui uma hipótese de trabalho: a linguagem é a desarticulação da solidez oferecida pela visão intelectual. Se tal não é claramente perceptível ao enunciarmos o conceito, por exemplo, de um objeto fabricado, essa clareza aumenta consideravelmente quando falamos de alguém a outrem, ou tentamos descrever outrem. Geralmente conseguiremos apresentar uma visão bastante completa do conjunto de atributos de outrem; apenas não podemos enunciar outrem mesmo. E, muitas vezes, temos a capacidade, e a exercitamos, de dizer “tudo” de outrem - tudo, menos o essencial: sua condição de alteridade que não se deixa confluir em um dito, em uma síntese intelectual. Sempre sabemos, ao proferir algo sobre alguém, que a asserção padece de um vício de origem: sua parcialidade original.
Com relação ao outro, não podemos dizer dele, mas sempre a ele - ainda quando, por exemplo, não falamos a ele. A mera citação de seu nome abre já uma dimensão de imponderabilidade no enunciado, algo como: “se estivesse aqui, ele poderia, ou não, corroborar meu enunciado a seu respeito”.
Estamos, portanto, em uma situação que se avizinha nova. Surge a possibilidade de uma desarticulação de um modelo de lógica rígida pré-explicativo, desarticulação essa que dessolidifica as estruturas lógicas - ou, como dissemos acima, dessolidifica a solidez oferecida pela visão intelectual, até mesmo em sua mera idéia, através do surgimento de uma estranha fluidez comunicante de outra ordem. Vejamos inicialmente uma visão mais “normal” da questão da alteridade, alteridades lógicas que podem vir a entrar em relação: “Comecemos por nos perguntar se, para um eu, a alteridade do outro homem significa de imediato uma alteridade lógica: aquela da qual são marcadas, umas frente às outras, as partes num todo em que, de maneira puramente formal, uma, esta, é outra em relação àquela, e aquela, por isso mesmo, é outra em relação a esta; e onde, compreendidos nesta reciprocidade, a linguagem seria apenas troca recíproca de informações ou de anedotas, intencionalmente visadas e reunidas no enunciado de cada um dos participantes”256. E vejamos agora uma outra dimensão de comunicação, onde de certa forma, mais importante do que comunicar algo, é como que “comunicar a comunicação”: “Ou se, como estou inclinado a pensar, a alteridade do outro homem em relação ao eu é inicialmente - e, se ouso dizer, é ‘positivamente’ - rosto257 de outro homem obrigando o eu, o qual de imediato - sem deliberação - responde por outrem. De imediato, isto é, responde ‘gratuitamente’ sem se preocupar com reciprocidade”258 - pensemos na mãe com relação ao seu bebê. (Seria ridículo condicionar a atitude da mãe à reciprocidade do bebê; e, não obstante, é por sobre a crença racional na inalienabilidade da reciprocidade que se têm construído, ao longo da história, grandiosas formulações éticas). O que se quer aqui destacar é que atos éticos baseados na lógica da reciprocidade não são essencialmente éticos, mas essencialmente lógicos e, no máximo, éticos de uma forma “subalterna” e portanto precária e dispensável.
No presente modelo, a gratuidade, a imediatidade rompem a reciprocidade e a lógica que a engendra: “Gratuidade do pelo outro, resposta da responsabilidade que já dormita na saudação, no bom dia, no até logo. Linguagem anterior aos enunciados das proposições que comunicam informações e relatos. Pelo outro a responder pelo próximo, na proximidade do próximo; responsabilidade que significa - ou que comanda - precisamente o rosto na sua alteridade e na sua autoridade inextinguíveis e inassumíveis do fazer face259.
O inusitado e interessante desse acontecimento é que ele dá margem ao emergir de elementos em princípio distantes e inconcebíveis no espectro da “normalidade” filosófica, transtornando espaço e tempo: “Mas o pelo-outro no aproximar-se do rosto - pelo-outro mais antigo que a consciência de... precede na sua obediência, todo apreender e permanece prévio à intencionalidade do eu-sujeito no seu ser-no-mundo, apresenta-se e se dá um mundo sintético e sincrônico. O pelo-outro surge no eu... como se a intriga da alteridade se tecesse antes do saber”260

Não há aqui propriamente unidade sincrônica, presença intelectual, a não ser em um sentido muito “secundário”261; o que aqui há de realmente primário é que, no lugar de um “presente de sentido”, de um sentido que se faz presente e se confunde com o estático de sua ‘presentidade’, ocorre uma dimensão de sentido que aborda ou traumatiza o presente do intelecto auto-compreensivo em sua presentidade mesma.

Com isso, podemos chegar mais próximos da inspiração originariamente fundante da relação real, inclusive em termos de linguagem: o dado primevo da multiplicidade, da pluralidade primigênia262.

É a multiplicidade do real que está tanto na origem do pensamento quanto na linguagem em processo. Na relação ética, a pluralidade é o contraveneno de qualquer totalização: “mas eis que a simplicidade desta obediência primeira é perturbada pelo terceiro homem que surge ao lado do outro; o terceiro é igualmente próximo e incumbe, também ele, à responsabilidade do eu. 

Eis, a partir deste terceiro, a proximidade da pluralidade humana” - e o surgimento da questão da justiça: uma outra objetividade, para além das determinações do poder sintetizante do intelecto, pois não é uma questão do intelecto mas, no máximo, da relação real entre intelectos263. “Objetividade extra-ordinária do rosto. 

Extra-ordinária, porque a ordem é justiça: extra-ordinária ou absoluta no sentido etimológico deste adjetivo, enquanto sempre separável de toda relação e síntese, arrancando-se da própria justiça em que esta exterioridade entra”264.

Ruptura

Estamos aqui em um determinado momento muito preciso de uma ruptura radical: ruptura com a hegemonia das estruturas da tradição intelectual sintetizante em todas as suas formas. 

E uma ruptura que bem se espelha em um termo extraordinaário: absoluto, ab-soluto: “O absoluto - palavra abusiva - não poderia provavelmente tomar de forma concreta lugar e sentido senão na fenomenologia - ou na ruptura da fenomenologia - que o rosto de outrem requer... Rosto de outrem que - sob todas as formas particulares da expressão em que outrem, já na pele do personagem, cumpre um papel - é expressão pura, extradição sem defesa, sem cobertura: retidão extrema, precisamente, do em face de... que nesta nudez é exposição à morte: nudez, indigência, passividade e vulnerabilidade pura. Rosto como a própria mortalidade do outro homem”265. Eis que encontramos aqui a mortalidade que irrompe, morte vivida ou anunciada que “me impede de conhecer o todo”(Rosenzweig), ou seja, que impede que eu hipoteque confiança excessiva à minha extraordinária capacidade de visão intelectual-sintetizante, capacidade que não é última porque é apenas uma... A tentação da identificação entre ser e pensar, de Parmênides a Hegel, expressa a maior tentação de unificação; que haja filosofia ainda além de qualquer unificação, eis a recorrência propriamente dita do real, ou melhor, é a melhor prova de que o real se dá apesar de nossa vontade de conhece-lo inteiramente...266. Não há como “pensar” a alteridade - ou seja, “resolver” sua questão em pensamento - sem transformá-la em uma questão lógica, transformando-a em uma questão endógena ao pensamento; e a ruptura referida é a de toda correlação-tematização ou intuição de essências ou síntese intelectual com pretensão de totalidade: “O fazer-face de outrem , na sua retidão, significaria tanto a precariedade de outrem como a autoridade que falta à alteridade simplesmente lógica que, contrapartida da identidade dos fatos e dos conceitos, distingue-os uns dos outros ou opõe reciprocamente as noções umas às outras pela contradição ou contrariedade”267. Ocorre a quebra da simetria entre pensamento e pensado, e isso de uma forma que o pensamento, por sua própria natureza, é incapaz de antever - pois essa quebra acontece sob a forma de uma espécie de trauma primordial e fundante268. E esse trauma corrói a estrutura de um universo bem-pensante: “’Relação’ assim a-simétrica do eu ao outro, sem correlação noemática de qualquer presença tematizável. 

Despertar para o outro homem, que não é saber: precisamente relação ao outro homem - o primeiro vindo na sua proximidade do próximo - irredutível ao conhecimento, mesmo que a ele deva fazer apelo diante da pluralidade dos outros, através da justiça exigida. Pensamento que não é adequação ao outro, o qual foge à minha medida de eu, refratário, precisamente, em sua unicidade a toda medida, mas não in-diferença ao outro, amor que rompe o equilíbrio da alma igual.

Questionamento em mim da posição natural do sujeito, da perseverança do eu - de sua perseverança de boa consciência - no seu ser, questionamento do seu conatus essendi, de sua insistência de ente...”269.

O fulcro do tempo

Voltemos agora à questão essencial da temporalidade. A possibilidade de ruptura de um todo intelectual sintetizante passa pelo desvão de uma temporalidade real para além do tempo sincronizado, inofensibilizado em termos de seu potencial desestruturante, que se conjuga no presente do indicativo perpétuo de uma essência determinada que já chegou, desde sempre, a seu termo final, como que “se oferece” ao intelecto sintetizante-sincronizante, recompensando-o por sua habilidade em “abstrair” da realidade realizada em favor de uma realidade pensada.

É de se ressaltar ainda uma vez que, nas estruturas iluminantes do intelecto, a indicação do caminho é uma só: a unicidade de uma “idéia’ que representa o real dele “retirando” e oferecendo o representável. É preciso mais do que o intelecto fechado em si mesmo para que se possa perceber algo além dele mesmo; é necessário o romper do círculo da reflexão, do jogo eterno de espelhos e reflexos que contentam a vontade intelectual de sincronização e presentificação de cada ato intelectual.  

A idéia e a inteligência,
abandonadas a si mesmas, só chegam a elas mesmas,
pois sua atividade é expressão de sua original 
compulsão à identidade270.

A valorização extrema do termo “reflexão” em nossa cultura é a positivação das belezas de um itinerário de Ulisses; mas a reflexão nada mais encontra, e nada mais pode encontrar, do que o “refletido” nela própria, ou seja, o adequado ao seu próprio instrumental. E é por isso que a tentação da totalidade é uma questão infinitamente recorrente no pensamento ocidental271

A única possibilidade de ruptura do círculo imanente da tautologia intelectual se dá pela intrusão, no campo de existência de alguém, de uma alteridade ainda não reduzida à condição de um determinado termo lógico de uma equação maior: um traumatismo desarticulante - a expressão de uma pluralidade de origem -, que conduz subitamente a racionalidade simplesmente a seus limites. Mas essa ruptura é, antes de tudo, a subversão da tirania de um certo tempo maciço e “imóvel”, onde todas as essências acontecem no presente do indicativo, inclusive a do verbo “ser”

Mas com essa ruptura descortina-se como que um mundo novo, onde o tempo não é simplesmente subjugado ao espaço intelectual da vontade de clareza presentificada. Em termos práticos, a temporalidade não é, agora, um determinado objeto do pensamento, mas condição de possibilidade de todo e qualquer pensamento: “não são as coisas que acontecem no tempo, mas é o tempo que acontece” (Rosenzweig).

Mas um tempo que não chega nunca ao presente: não se presentifica em sua idéia: “Eis - na anterioridade ética da responsabilidade, na sua prioridade sobre a deliberação - um passado irredutível a um presente que teria sido. Um passado sem referência à identidade ingenuamente - naturalmente - assegurada de seu direito à presença e onde tudo deveria ter começado...

Significância ética nesta responsabilidade, sem o presente que se recorda de algum engajamento, nesta responsabilidade anárquica. Significância de um passado que me concerne... fora de toda reminiscência, de toda re-tenção, de toda re-presentação, de toda referência ao presente rememorado”272. Desarticulação da lógica cronológica, explosão do tempo maciço pela significância do além-de-meu-tempo: “Significância a partir da responsabilidade pelo outro homem, do passado imemorial, vindo na heteronomia de uma ordem... No fundo da concretude do tempo, que é o da minha responsabilidade por outrem, a diacronia do passado que não se reúne em representação”273.
 
Sentido de um passado tão antigo que nunca foi presente, estabelecendo a estranheza da dia-cronia com o meu presente: pluralidade original de, no mínimo, dois tempos absolutamente diferentes, encontro traumático que se faz relação, e relação fundante, origem de uma nova racionalidade do real que aponta um futuro radical que o presente sicronizado não pode ante-ver274.

Assim, “esta significação do passado que não foi meu presente e não me concerne por reminiscência, e a significação do futuro que me comanda na mortalidade ou no rosto de outrem - além de meus poderes, de minha finitude e de meu ser-votado-à-morte - não articulam mais o tempo representável da imanência e de seu presente histórico. 

Sua dia-cronia, a ‘diferença’ da dia-cronia não significa pura ruptura, mas também não-in-diferença e acordo que não estão mais fundados sobre a unidade de apercepção transcendental, a mais formal das formas que, através da reminiscência e esperança, reata o tempo re-presentando-o, mas o renega”275

A pluralidade significa a diferença lógica 
sobrepujada pela diferença real
e essa pela não-indiferença ética:
início e fim de seu itinerário.

Eis assim a vocação cabal do tempo: a inserção no todo maciço que o aprisiona e o estalar desse todo que culmina na não-indiferença. O tempo: verdadeira “deformalização da forma”276

A impessoalidade radical da espessura ontológica, cindida em sua significação de origem plural, obsequia o encontro não-indiferente com o diferente: raiz da ética, possibilidade de conceber um mundo humano.

Conclusão

O que normalmente se tem na conta de um tempo óbvio e auto-explicativo acaba por evidenciar-se como sendo, na realidade, nada mais do que uma outra face do intelecto identificador e iluminante: tudo há ali, tudo cabe no seu espectro, com exceção da temporalidade real, a qual, ao se dar, desarticula a sincronia à qual a tirania da síntese intelectual obriga toda parcela de realidade que passe a seu alcance. 

Quando se fala do tempo em termos conceituais, tudo ali pode haver, menos tempo real, porque o tempo real, a temporalidade que acontece, é exatamente o crivo de realidade que se ins-creve entre pensar e ser real. A síntese luminosa é uma expressão do acontecer; está para a paisagem, para o dia e a noite, como uma fotografia deles: não é falsa, mas o abismo que a separa de uma visão real é incomensurável. 

O mundo sincronizado na segurança do logos identificante é um mundo limitado e enfim temeroso, com razão, por sua própria existência; pois cada instante que acontece inscreve-se não como peça do puzzle universal das idéias, mas como uma espécie de grave instante de decisão em direção à realidade do real - e cada instante de decisão traduz o perigo extremo e a oportunidade extrema de superação da tautologia e da solidão.

Há no mínimo dois “tempos” no campo de visão - o da renúncia ao todo maciço e o do desencontro que habita o conceito que “só é verdadeiro quando não se compreende a si mesmo”(Adorno) -, e há que decidir por um deles, sempre. Viver significa enfrentar-se com a miríade de instantes infinitamente pequenos e infinitamente importantes que compõe a pluralidade original do real, ou seja, considerá-los como reais

E levar a sério essa realidade significa, justamente, precisar de tempo: “precisar de tempo significa: nada poder dispensar, ter de esperar por tudo, ser, com o próprio, dependente do outro” (Rosenzweig).

Essa desarticulação - para a qual concorrem muitas potências humanas não pré-ditas, como a ocorrência da linguagem enquanto tradução de um encontro humano, um Dizer - é a condição de que o todo não se feche em si mesmo e em seus tentadores enunciados especulantes. É condição de algo mais do que uma realidade mental; a realidade de um encontro com a alteridade, encontro que se dá no tempo.

Viver no fulcro de dois mundos: 

o efetivo, temporalizado, 
diacrônico, e o conceitual, sincrônico:
eis o desafio de sobre-viver. 
Viver o tempo da realidade
portando a capacidade sintética 
e a potência sedutora do logos identificante: 
eis um dilema humano ao qual somente
a efetividade da ética pode responder.


Ricardo Timm de Souza
1998-1999
1997
Publicado originalmente em Veritas 
– Revista de Filosofia da PUCRS,
junho/1999

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte:
Sentido e Alteridade
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
Porto Alegre - 2009
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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