domingo, 29 de maio de 2011

METAFENOMENOLOGIA DA MONSTRUOSIDADE: O DEVIR-MONSTRO



José Gil

Neste fim de século, os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, na banda desenhada, em gadgets e brinquedos, livros e exposições de pintura, no teatro e na dança. Invadem o planeta, tornando-se familiares.
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Cessarão, muito em breve, de nos parecer mons-truosos e ser-nos-ão até simpáticos, como já acontecea tantos extraterrestres das séries de televisão. Have-mos de falar então da “monstruosidade banal”, comose fala agora da “violência banal” — o que constitui,precisamente, uma aberração.

O que inquieta realmente é que não há seleção nem escolha preferencial destes novos invasores: assim como a Antiguidade adorou os centauros, as quimeras e os sátiros, também nós teríamos podido privilegiar os monstros imaginários, resultado de cruzamentos entreespécies diferentes. Mas gostamos indiferentemente do Elephant-man e dos anões dos Freaks , das “raças fabulosas” e dos monstros teratológicos.

Esta atitude é sinal da grande dúvida 
que assaltou o homem contemporâneo
quanto à sua própria humanidade.

Ao verificar, com efeito, a estabilidade do gosto pelos monstros teratológicos, desde os tempos em que o Renascimento pôs cobro às raças fantásticas de ciápodes, cinocéfalos e outras que tais, espantamo-nos deste retorno do imaginário: como se o saber biológico comum sobre o ser humano tivesse perdido as suas virtudes míticas, fundadoras de uma determinada ideia da normalidade do homem.

É que a própria teratologia se tornou fantástica. Já não nos contentamos com as classificações bem ordenadas de um Geoffroy Saint-Hilare que pacificavamfinalmente um universo confuso, racionalmente escandaloso, incapaz, desde há séculos, de estabelecer “asleis da aberração”. Ao classificá-las segundo a sua teoria — a primeira teoria científica do desvio teratológico — Geoffroy suprimiu alguma monstruosidade aos
monstros.

Ora nós exigimos mais dos monstros, pedimo-lhes, justamente, que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem permanentemente as nossas mais sólidas certezas; porque necessitamos de certezas sobre a nossa identidade humana ameaçada de indefinição.

Os monstros, felizmente, 
existem não para nos mostrar o que não somos,
mas o que poderíamos ser.

Entre estes dois pólos, entre uma possibilidade negativa e um acaso possível, tenta mossituar a nossa humanidade de homens.Ao tornar-se fantástica, a teratologia modificou o seu aspecto.

O monstro artificial impôs-se com Frankenstein e, desde então, não deixou de se desenvolver; a manipulação genética prosseguiu a tarefa, prometendo-nos um belo futuro de homens-monstros imaginários  (fazendo votos para que nunca viessem a ser reais).

Doravante, testamos “experimentalmente” 
os limites da nossa humanidade: 
até que grau de deformação permaneceremos
ainda homens? 

Questão antiga que preocupara Santo Agostinho 
a propósito das raças fabulosasdo Oriente.

Exceto que, para nós, se trata de uma questão vital, concreta, em que a sobrevivência da humanidade está em jogo: e a resposta depende dos nossos meios e do nosso querer.

Até onde podemos levar o artifício
sem prejudicar a nossa identidade 
humana “natural”?

O artifício está a tornar-se sinónimo de aberração e,contudo, continuamos apanhados na vertigem da experimentação e da aventura, queremos conhecer e tocar os confins de nós próprios, aquele limiar ondedeixamos de ser homens.

Forçamos a Natureza até aosseus limites extremos — transformamo-nos em homens-moscas, homens-leopardos ou outros: o “humanóide”é um termo que designa uma zona de essências difusasde seres cada vez mais numerosos e variados.Reencontramos, deste modo, os sonhos mais antigos do devir-animal chamânico; e, ao mesmo tempo,perguntamo-nos, angustiados: que corpo podemos nós ter hoje?

Que corpo “natural”, humano,
para uma alma que se tornou completamente artificial, 
antinatural, destruidora da natureza?

Pomos à prova os limites da nossa “naturalidade”, procuramos pontos dereferência por toda a parte e é por isso que acolhemos todas as espécies de monstros: os fabulosos e os teratológicos.

O fantástico, aliás, 
está em situação de se tornar real 
através da manipulação genética 
e o teratológico invadiu o imaginário graças 
às mais diferentes espécies de extraterrestres.

Os monstros tornaram-se quotidianos não apenas porque a violência e o mal, a anomalia em geral, sebanalizaram — não dizia Freud que o neurótico acreditaque existe sempre uma determinada deformação física correspondente aos seus males psíquicos? — mas porque, ao contrário, o domínio tradicional da anomalia se contraiu: há cada vez menos monstros entre os homens reais cujas patologias (autênticas ou ideológicas) se encontram classificadas cada vez mais longe do domínio teratológico.

Desde os “deficientes” mentais até ao índio das Américas (sobre o qual Vaz de Caminha,que acompanhou Álvares Cabral na viagem de descoberta do Brasil, ainda se interrogava se seria humano ou “bestial”), já não existem mais monstros, unicamente homens.

A extensão dos “direitos do homem” a toda a Natureza, bem como certas ciências como a etologia,contribuem, paradoxalmente, para o desaparecimento das fronteiras: descobrem-se formas de linguagem e de sociabilidade avançada nos mamíferos superiores e isto para não falar das ternas variantes do amor cortês nas cerimónias de sedução sexual de certas aves.

Assim, dividido entre “tudo (na natureza) é humano” (visto que o homem não é senão natureza e código genético) e “tudo (no homem) é artificial”, o homem ocidental contemporâneo já não sabe distinguir com nitidez o contorno da sua identidade no meio dos diferentes pontos de referência que, tradicionalmente, lhe devolviam uma imagem estável de si próprio.Daí o intenso fascínio atual pela monstruosidade.

Os monstros são-lhe absolutamente 
necessáriospara continuar 
a crer-se homem.

No entanto, o monstro não se situa 
fora do domínio humano:
encontra-se no seu limite

.Com efeito, não é na simples oposição que o homem se define em relação aos monstros, mas num sistema complexo de afinidades com figuras (entre as quais, sobretudo, a da divindade e do animal) que mantêm distâncias estruturais estáveis com a situação que ele ocupa.

Esse sistema postula uma boa distância entre os diferentes pólos da estrutura. Se essa distância se altera,produzem-se anomalias e novas formas podem surgir: se a divindade, ou os poderes sobrenaturais, se aproximam demasiado da humanidade, se se cruzam como homem, podem nascer monstros teratológicos; se a animalidade invade a humanidade, surgem monstros fabulosos” — centauros, sátiros, cinocéfalos, homens selvagens’.
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Uma aproximação excessiva entre a Natureza e o homem resulta — nesta perspectiva antropológica — num desregramento da cultura, tal como o contacto directo, sem mediações (rituais ou sacrificiais), entre os homens e os deuses.Em ambos os casos (visto os animais encarnarem sempre os poderes sobrenaturais), é a intervenção divina que se manifesta na monstruosidade do corpo humano.

E é por essa razão que constitui um sinal anunciador, uma mensagem divina, um “augúrio”. Assim o monstro surge por aproximação do que deve ser mantido à distância (divindade/homem; natureza/homem). Além destas duas, outras combinações são possíveis: pode-se dar um cruzamento entre raças
monstruosas (elas próprias resultado de uma aproximação excessiva entre cultura e natureza) e nascimentos teratológicos individuais

.É ao que se assiste na aurora da Renascença quando a crença nas raças declina ao misturar-se com o interesse nascente pelos corpos humanos monstruosos:nascem porcos com cabeça humana (Sébastien Brandt),homens com asas ou com cabeça de elefante (Aldro-vandi). Certos traços das raças rebatem-se sobre os indivíduos que passam a possuir as características daquelas, o que corresponde a uma presença mais forte (do que a normal) da divindade na natureza.

A Idade Média tarda a passar: na iconografia, o desaparecimento das raças monstruosas faz-se progressivamente, como se à difícil transformação da humanidade do homem devesse corresponder uma igual dificuldade no seu referente inverso. Como se uma nova forma para essa humanidade exigisse um tempo de transição e de “muda”: porque é nos períodos transitórios, de intensa mudança “cultural”, que surgem as mais variadas aberrações.

Representemos sumariamente a estrutura das“distâncias” que determinam os tipos principais de monstruosidade:Esfera sobrenatural Divindade Monstros teratológicos Cultura Homem-porco,Humanidade Homem-elefante, etc.Centauros, sátiros Natureza Animalidade o que corresponde a uma presença mais forte (do que a normal) da divindade na natureza.

Esta estrutura constitui parte de um sistema maisvasto de figuras do Outro, e seria necessário descrevertodo esse conjunto para situar com precisão o lugar domonstro. Digamos, simplesmente, que a questão desaber se tal ser é um Outro (um alter ego ) tem apenas a ver com um humano.

Mesmo que a humanidade, formulada em primeiro lugar, seja a seguir posta em dúvida, é fundado nessa certeza inicial que se interroga a humanidade do outro. O caso recíproco nunca acontece: não nos perguntamos se um golfinho, ou um chimpanzé, é humano, apenas nos interrogamos quanto à sua inteligência ou linguagem — aproximamo-nos, por certo, do limiar para lá do qual a animalidade cessa.

Mas a interrogação refere-se à animalidade, não à alte-ridade do golfinho ou do chimpanzé.Assim, o outro mantém-se sempre entre fronteirasexteriores: o animal e a divindade não representamlimites do humano. Como outros radicalmente-outros, já se encontram para lá do humano. O outro toma forma no intervalo que vai do Ego-homem ao animale aos deuses, resultando sempre de uma transformação da humanidade do homem.

É a natureza dessa transformação 
que temos de definir em cada caso 
se quisermos compreender 
o significado do Outro.

É por isso que as diferentes formas do Outro tendem para a monstruosidade: contrariamente ao animal e aos deuses, o monstro assinala o limite “interno” da humanidade do homem.

Por exemplo, embora os índios e negros descobertos nos séculos XV e XVI em África e nas Américas se encontrassem aquém das fronteiras da monstruosidade, a sua humanidade foi objecto de dúvida: eram monstros, animais? Por outras palavras,a sua alteridade é móbil, não fixa e, por definição,instável. Segue sem cessar a interrogação que os desloca, ou seja, o declive do movimento das pulsões que conduz naturalmente ao monstro, último ponto de referência do Outro, com uma forma tão nítida e estável como era a sua iconografia.

É verdade que a tradição das raças monstruosas na periferia do mundo age influenciando o olhar, mas não deixa de seguir a tendência mais fácil, mais “lógica”, pois o monstro não é senão a “desfiguração” última do Mesmo no Outro.

É o Mesmo transformado em quase-Outro, 
estrangeiro a si próprio. 

É uma demência do corpo,
uma loucura da carne.

É no quadro de um tal sistema da alteridade (mais suposto que explícito) que procurámos compreender a função da monstruosidade, desde os fins da Idade Média até ao princípio do século XVII. A ambição deste pequeno ensaio é apenas procurar saber a razão pela qual os monstros sempre fascinaram os homens.

A fenomenologia da monstruosidade é sempre acompanhada pela apresentação de textos, de Santo Agostinho a Descartes, da viagem fictícia de Mandeville aos contos populares. Põe-se uma questão fundamental: qual é a função do monstro no pensamento simbólico?

Mais precisamente:o que é que se pensa
quando se pensa na monstruosidade? 

Definimos uma lógica a partir das crenças nos monstros, entre o simbólico e o real, que vemos aplicada a propósito das raças fabulosas da Idade Média e da união da alma e do corpo em Descartes. O monstro é pensado como uma aberração da “realidade” (a monstruosidade é um excesso de realidade) a fim de induzir, por  oposição, a crença na “necessidade da existência” da normalidade humana.

Uma existência
que seja um dado adquirido:
é imprescindível não questionar a nossa identidade 
de homens como seres reais. 
A nossa facticidade é de direito.

O “monstro” constitui assim uma espécie de operador quase-conceptual” que, embora inquietando a razão, permite convencer que a existência do homem é produto de uma necessidade: em resumo, que o real humano é racional.

Trata-se de um conceito aberrante  (um quase-conceito ou quase-símbolo), semelhante atantos outros que povoam o discurso dos filosófos(como o “Deus enganador” de Descartes). Se bem que contraditórios ou “irracionais” (uma  raça de monstros humanos é uma normalidade anormal), asseguram o trabalho da razão quando ela se aplica à existência.Ao delimitar uma zona de crença da razão, os monstros escondem-lhe as fronteiras: o existente está ali, e não poderia lá não estar, fora desses limites, não há senão demência e desordem, um mundo sem leis (monstruoso). 

A nossa normalidade torna-se o referente absoluto de toda a norma, apesar de ela própria não se suster senão por essa exclusão (operação não-racional,mas que possibilita a aplicação da razão ao real).

Não pretendemos fazer trabalho de historiador oude arqueólogo” da monstruosidade; simplesmente mostrar como essa lógica que a rege funciona em regimes diferentes. Assim, insistimos na grande transformação que sofre a monstruosidade na Renascença:o interesse pelos nascimentos monstruosos impõe-se totalmente, apagando as raças fabulosas. É o próprio corpo do homem que muda, assim como a sua representação e o seu modo de viver o espaço e o tempo.

Limitámo-nos a indicar a relação entre essa sextraordinárias mutações e a que marca o interesse pela monstruosidade; mas de tal forma que nos ajudará,talvez, a compreender o que acontece hoje, nesse mesmo plano, sob o nosso olhar, nos corpos e no pensamento do corpo humano.

Se é verdade que o homem procura nos monstros, por contraste, uma imagem estável de si mesmo, não é menos certo que a monstruosidade atrai como uma espécie de ponto de fuga do seu devir-inumano: devir-animal, devir-vegetal ou mineral. Nele se confundem duas forças de vectores opostos: uma tendência à metamorfose e o horror, o pânico de se tornar outro.

Vimos como, da Antiguidade a Descartes, a imagem do monstro se compunha de elementos repulsivos, adequados à função de complemento inverso e simétrico da humanidade do homem. Porém, essa imagem também atrai; é, aliás, porque atrai irresistivelmente que ela estanca o processo de transformação  que induz.

O que faz do monstro um “atrator” (da imaginação)? O fato de se situar numa fronteira indecisa entre a humanidade e a não-humanidade. Melhor: o nascimento monstruoso mostraria como potencialmente a humanidade do homem, configurada no corpo normal, contém o germe da sua inumanidade.

Qualquer coisa em nós, no mais íntimo de nós —no nosso corpo, na nossa alma, no nosso ser — nos ameaça de dissolução e caos. Qualquer coisa de imprevisível e pavoroso, de certo modo pior do que uma doença e do que a morte (pois é não-forma, não-vida na vida), permanece escondido mas pronto a manifestar-se. A fronteira para além da qual se desintegra a nossa identidade humana está traçada dentro de nós, e não sabemos onde.

Ora, é essencial para essa identidade não se bloquear, poder experimentar-se ultrapassando limites. As questões de identidade — em múltiplos planos,como o político e o cultural — levantam-se em geral com um pressuposto equívoco: que a instância do poder (colonizador, económico, estatal) faz perder uma essência “étnica” qualquer, dada uma vez por todas (a identidade).

Não se vê que se ela se perde é porque já  não tem capacidade de transformação própria. O pior que uma colonização pode fazer a uma cultura é fixá-la, “gelá-la” irremediavelmente nos traços que tinh num certo momento. Por isso declina.

Há sempre problemas de identidade
quando se esgota a capacidadede
mutação e devir.

A força e a saúde de uma cultura 
medem-se pela sua aptidão a transformar-se;
pela sua plasticidade, pela sua apetência em devir,
evoluir, provocar grandes mudanças internas.

Por isso o monstro atrai: situando-se numa zona de indiscernibilidade entre o devir-outro e o caos, elepode aparecer — à maneira dessas figuras culturais aberrantes que são a “mestiçagem”, a “dupla (ou tri-pla) cultura”, a “dupla identidade” — como um focoatractor de saúde e de vida rodeado por regiões mórbidas ou mortíferas. Qualquer coisa nele se confunde e confunde a imaginação: não será a monstruosidade capaz de suscitar um autêntico devir-outro (para além de mim próprio)?

O devir-animal está sempre latente   em nós; com menos evidência, mas não com menos intensidade, o devir-vegetal e o devir-mineral.

E o que é um devir 
senão a experimentação 
de todas as nossas potências
— afectivas, de pensamento, de expressão?

Quem não experimentou já o movimento de passagem à barata de Kafka, ou de petrificações como contam as lendas populares? Devir-insecto, devir-pedra ou devir-pássaro são sempre atualizações do possível em nós como uma exigência do devir-si-próprio. Só que o devir-monstro (teratológico) é ambíguo porque parece atualizar directamente, sem mediações,um devir-si-próprio.
Ora isso nega a noção do devir.É também ambíguo e perverso porque produz um excesso que se confunde com uma intensificação e um corpo superorgânico que pode assemelhar-se a um corpo-sem-órgãos pronto a acolher intensidades.

E como a monstruosidade
é como um diagrama vivo do caos, 
e o caos é um desencadeador de forças,
o corpo monstruoso apela o homem a uma secreta
identificação, como o sublime atrai pelo
terror latente que contém. 

Simplesmente, não há devir real 
através da monstruosidade; 
há um movimento caótico de repente paralizado, 
como um devir começado que abortou,
inacabado, mutilado. 

Ficaram à mostra os traços de um grande tumulto,a geologia corporal de sismos esboçados, catástrofe sem estado avançado e subitamente terminadas. Talvez por isso os signos da monstruosidade se prestem a ser-vir de augúrios: eles anunciam, deixando em aberto os acontecimentos que inauguraram; o que vier efectuaráo apenas em parte formado.

Por isso também há sempre
no excesso do corpo monstruoso a privação: 
falta um corpo àquela dupla cabeça 
ou outra cabeça àquele duplo tronco.

Mais profundamente, 
o corpo teratológico provoca em nós 
a vertigem da irreversibilidade. 

Primeiro,aquilo ali,
que não devia estar ali,
está lá para sempre.
Não se pode mais apagar. 

E o “jamais” que ali se inscreve abre-se desmesuradamente como um bater do tempo para lá do tempo: aquilo que não passa e faz passar, o acontecimento absoluto, a morte como cao simpensável.

O corpo normal oferece à visão a experiênciade uma simetria paradoxal, uma simetria assimétrica que resume todo o mistério do espaço vivido: entre a esquerda e a direita, entre o alto e o baixo, entre afrente e o atrás circulam jogos de espelhos explorados pelos acrobatas ou reconhecidos na simetria erótica do sexo e do rosto.

É essa quase-coincidência especular que vai desencadear o tempo; mas é também ela que vai criar a reversibilidade do tempo, vivida como crença necessária.A reversibilidade do tempo é uma componente da experiência da temporalidade. Sem a convicção vividado reversível, da repetição, do sempre possível recomeçar (em que se funda a reparação moral, jurídica,existencial) não haveria maneira de medir a irreversibilidade do tempo; ora, o tempo mede-se porque há uma “flecha do tempo”, um vector, pontos de partidae de chegada.

Mas se não se pudesse inverter — imaginariamente e na crença tácita — a marcha do tempo, não haveria nem retenção nem protenção, nem simultaneidade, nem irreversibilidade; mas apenas um escoamento ininterrupto e sem memória, pontual,irrepetível, inefável — a própria irreversibilidade tornar-se-ia impensável e inexperienciável.

A reversibilidade 
é pois uma potencialidade
da experiência do tempo. 

É ela que trava a irreversibilidade e modula o fluxo temporal; é ela que faz do presente não um ponto sem dimensões, mas uma seqüência que dura, um bloco de presença ubíqüa.

A reversibilidade é uma latência inerente
à experiênciada irreversibilidade.

Essa latência está inscrita no corpo: é a própria latência (ou “iminência”) da simetria especular da anatomiahumana que induz a “crença” na reversibilidade. Porque entre a esquerda e a direita, a experiência sensorial do corpo localiza-se como diferença e simetria; e porque essa experiência é dupla sendo una, de um mesmo corpo presente totalmente em todas as suas partes, este adquire limites: ao tocar-se, o tocar vai e vem, volta ao pontode partida no mesmo instante  (no mesmo tempo) em que chegou ao ponto de chegada; porque nunca do primeiro se desligou.

“Voltou”, e não, “percorreu irreversivel-mente”: porque a esquerda é a imagem simétrica quiral (ligeiramente assimétrica) da direita, o caminho foi paradoxalmente percorrido e o percurso apagado. Daí a reversibilidade, inerente à experiência do corpo próprio.

Porque a simetria é assimétrica,
um certo tempo se escoou. 
E porque há simetria potencial,
esse mesmo tempo não passou.

O que não passa do tempo que passa 
define a nossa “duração” própria 
(em sentido quase bergsoniano): 
e essa é a dimensão da reversibilidade.

Da mesma maneira, e “por extensão da reversibilidade do corpo tocante-tocado” (Merleau-Ponty), por extensão da especularidade do corpo próprio na especularidade da intercorporeidade, o corpo do outro reflete a imagem do meu como num espelho. Mais: no seio da minha imagem de mim habita a imagem de mim vista pelo outro corpo, de outro ponto de vista  (exterior: assim toda a visão — de toda a paisagem e de todos os corpos — implica o espelhamento da minha imagem numa coisa outra; e o espelhamento da sua imagem no meu corpo).

Aqui reside a raiz da figura do “duplo”. O corpo normal é-o porque não está sózinho: com ele vive o seu duplo — como um corpo duplo subtil, um “simu-lacro” —, o qual lhe proporciona todas as experiências possíveis da reversibilidade: é porque estou ali estando aqui; porque, neste momento, vou e venho de qualquer ponto que vejo da paisagem, que tenho uma visão estável e ubíqüa.

O meu duplo assegura-me a constância 
e a multiperspetivação da percepção;
com ela construo a reversibilidade do meu tempo
irreversível e vivo um presente com extensão
que, enquanto dura,dura para a eternidade.

Por isso a morte, 
que me é tão íntima, está sempre tão longe
e como alheia à vida

.Duplo latente que sou eu 
— dentro e fora de mim.

Eis que de repente vejo num outro corpo uma superfície inóspita: ali não pode senão dificilmente espelhar, morar, prolongar-se o meu duplo. Aquele corpo monstruoso é, no entanto, de direito, o meu duplo,como todo corpo outro.Daí a vertigem que me provoca.

O que lhe acontece para me rejeitar 
ao ponto de suscitar angústia e medo? 

Quebrou-se a proporção delicada entre simetria e assimetria do corpo; e, com ela, a relação adequada entre reversibilidade e irreversibilidade do tempo, entre o sentimento de ser mortal e o de serimortal em vida. O monstro abre os diques que retinham o tempo, e a irreversibilidade jorrou, num ímpeto caótico: o que ele anuncia é catástrofre e morte.

No seu corpo a assimetria acentuou-se, mesmo quando aparentemente proliferou; duas cabeças num só tronco rompem a simetria do alto/baixo; mais profundamente, dão a ver o duplo latente, virtual que não deve estar à vista. Pois só enquanto virtual (e não real) ele permite movimento de reversibilidade instantâneo necessário à travagem do tempo vivido.

Um duplo real, num corpo real, 
significa um movimento real no espaço perceptivo: 
é morte do duplo.

A corporalização dos duplos na duplicação ou multiplicação dos órgãos nos corpos monstruosos arrasta a impossibilidade de operar a reversibilidade das distâncias no espaço e no tempo: o monstro já não me“reflecte”, roubou-me o duplo encarnando-o.

Mas,como apesar de tudo é um corpo humano, continua a refletir-me — daí a vertigem e o fascínio. Daí o espanto inesgotável que suscita a visão do monstro:como se a paisagem que o rodeia fosse afetada por um fator caótico decisivo que a deveria virar do avesso, desconjuntá-la, arruiná-la definitivamente.

Que ela continue estável, eis o que nos maravilha.O surgimento de um duplo num corpo, deformando-o, abolindo a sua natureza virtual, atualizando parcialmente a sua latência aniquila o devir-outro do corpo que vê; e, ao mesmo tempo, solicita-o.

Daí, talvez, a ambivalência da atracção atual pelos monstros: como sintoma de movimentos irreprimíveis de devir que por todo o lado se esboçam — devir outro espaço, outro tempo, outros afetos —, e como medopânico do caos e da irreversibilidade incontrolada que esses movimentos podem induzir. Caos que assola já o nosso tempo; então, como para o esconjurar, criam-se monstros como se, ao construí-los e exibi-los assim,algum efeito se produzisse no caos virtual de onde vem tudo.

NOTAS
1
Seguindo uma tendência minoritária, mas crescente, nos países de língua portuguesa, optei por manter, neste ensaio cujo autor é português, a ortografia utilizada em Portugal. Mantive também termos que são utilizados exclusivamente em Portugal como, por exemplo, “bandadesenhada” (“história em quadrinhos”) (N. do O.).
2
Adoptámos este termo, um pouco redundante (mas não éa própria monstruosidade física redundante?), de “mons-tro teratológico” para designar as deformações corporaisdo corpo próprio, diferenciando-se das fantasias imaginá-rias das raças fabulosas — das quais algumas, todavia, são“teratológicas”. A distinção é cómoda porque o monstroteratológico é sempre individual, enquanto o fabuloso pertence a uma “raça” (neste texto, ocupamo-nos apenas da monstruosidade humana); e, sendo individual, é no entanto, diferente do “homem-animal” (homem-porco, p.ex.) que resulta também de um nascimento monstruoso,mas em cruzamento com uma raça.
3
O autor refere-se, aqui, ao texto integral do livro
Monstros,de onde este ensaio foi extraído (N. do O.)

 
 José Gil 
é professor de Filosofia 
da Universidade Nova de Lisboa. 
 
Seus livros mais recentes 
- Diferença e negação na poesia de FernandoPessoa

- O currículo como fetiche.
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, ambos pela Autêntica Editora

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Fonte:
Autêntica Editora
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