" O SENTIDO DA ALTERIDADE "
NONO ENSAIO
- Ética e Espírito - Sobre Deus e religião no pensamento de Levinas
Introdução
– o ponto de partida da reflexão
“Qu’est-ce que l’Europe? C’est la Bible et
les Grecs. La Bible - renversement ontologique?”
Emmanuel LEVINAS354
les Grecs. La Bible - renversement ontologique?”
Emmanuel LEVINAS354
Em um belo livro panorâmico
sobre a história da filosofia contemporânea,
recentemente traduzido ao português,
Christian Delacampagne refere-se a certa altura à
“filosofia religiosa de Emmanuel Levinas”355.
Trata-se de uma afirmação muito difundida e altamente problemática - principalmente ao se levar em conta as maneiras “normais” pelas quais a tradição tende a entender o termo “religião” - e que tem levado a má-compreensões das mais diversas ordens.
O que está por trás da incompreensão do sentido deste discurso é a mesma dificuldade que faz com que não se compreenda exatamente o núcleo da viragem epistemológica que se está produzindo na contemporaneidade, e da qual este pensamento indica uma das grandes dimensões: a dificuldade extrema de se conceber uma construção filosófica que se postula exatamente na ambigüidade das próprias fronteiras da linguagem filosófica contemporânea em suas variadas dimensões356 e que pretende assumir esta grave ambigüidade - utilizar a linguagem tradicional do ser para evidenciar seus limites, deixar que se interpenetrem cosmovisões originais fundamentalmente diferentes -, onde esta ambigüidade é dimensão necessária na nova abordagem do trato da realidade, aquilo a que temos chamado “metafenomenologia”357.
Nosso objetivo, neste texto, não é senão abordar introdutoriamente a dupla questão de Deus e da religião no pensamento de Levinas desde a perspectiva que consideramos decisiva, e desde uma breve síntese própria deste vastíssimo tema. Isto se fará a partir de uma via de entrada que coloca em questão - como aliás o pensamento de Levinas como um todo (e, obviamente, não apenas dele) - a solidez das referências do pensamento ocidental dos pré-socráticos à contemporaneidade e ainda além (e desde antes), no trato de conceitos como “ser” e “infinito”358, procurando ocupar e explorar exatamente este espaço de ambigüidade sem o qual a eloqüência da linguagem da novidade não passa de discurso vazio e o pulsar contemporâneo da “exorbitância de significantes” (Ernildo Stein) permanece em um vácuo estéril de sentido.
Ser e Infinito na História
“O empenho filosófico de nosso tempo se diferencia
da clássica tradição da filosofia pelo fato de não
representar nenhuma continuação imediata e ininterrupta
dessa última. Isso caracteriza-se sobretudo na sua relação,
alterada, com o conceito”
H. G. GADAMER359
da clássica tradição da filosofia pelo fato de não
representar nenhuma continuação imediata e ininterrupta
dessa última. Isso caracteriza-se sobretudo na sua relação,
alterada, com o conceito”
H. G. GADAMER359
O pensamento de Levinas se caracteriza pelo diálogo crítico com a tradição filosófica do passado e do presente. É porque o passado da humanidade foi o que foi, é porque o presente está sendo exatamente assim e não de outra forma - inclusive, na experiência que foi tão próxima do pensador, das guerras e câmaras de gás (nas quais morreram todos os seus parentes com exceção de mulher e filho, abrigados por freiras na França), mas também na miséria e na multidão de perigos que espreitam o ser humano buscando aniquilá-lo, buscando reduzi-lo, reduzir o Diferente a nada, ao Não-ser - que sua visão da contemporaneidade assume o aspecto que assume: local privilegiado para que possamos, retrospectivamente, compreender a lógica real do desdobramento do ser do Ocidente, não enquanto especulação, mas enquanto realização.
Ora, esta lógica - sugerida aqui de forma extremadamente simplificada -, pretendendo sempre apresentar-se com o Logos, intende trazer consigo, de alguma forma, com seu desenvolvimento, todo o sentido de sua auto-legitimação, em um processo constante e crescente de auto-referência.
Pode-se dizer, de outra parte, que a referência das referências é o verbo “Ser”: é ele que conecta os termos dispersos da realidade percebida e dá origem àquilo que temos chamado “fórmula original do Ocidente”: [x=y] - onde a igualdade corresponde ao conetivo-explicativo “é”, sempre no presente do indicativo, conjugado que esteja em qualquer forma verbal; pois no mundo dos conceitos puros, no reino das “essências” ou da profundidade abismal do sentido do ser para além de qualquer compreensão do ente, não existe propriamente o tempo ou a temporalidade; a verdade do ser consiste justamente em presentificar a realidade identificada como verdade - o ser que é em oposição ao não-ser que não é - em uma espécie de presente eterno.
E, neste sentido, tanto a Ontoteologia criticada por Heidegger como o próprio Heidegger (aqui identificado, segundo a inspiração de Levinas, como autor da mais inteligente e refinada reconstrução “restauradora” - restauradora da busca pelo ser - da história do ocidente filosófico) nadam em um mesmo mar: o mar da “espessura ontológica”.
Ser é solidez, e máxima solidez,
na qual se devem espelhar - pela via da analogia,
por exemplo -, todos os outros seres (entes).
A identificação do ser com o bem,
antiga como o próprio pensar ocidental,
só é sistematizada na época clássica,
e passa à história do pensamento teológico
como uma espécie de “porto seguro”
de toda especulação.
Lembremo-nos, porém, que já Platão - com o seu bem epekeina tes ousias, o bem além do ser, da substância - questionará esta intocabilidade da referência ontológica enquanto limite extremo para se pensar a realidade. Mas não é o que passa à tradição filosófica e teológica; para essa(s), o mal é, sempre, carência de ser, e o bem, o ser coincidindo consigo mesmo. Se esta coincidência é absoluta, temos o Ser absoluto, ou seja, Deus.
Em outros termos, a tradição grega, veio interpretativo que referenciará a quase totalidade da construção consagrada deste conceito, assume, pelo menos a partir da “cristianização” aristotélica de São Tomás de Aquino, uma estrutura definitivamente ontológica, no sentido de que é a proximidade ou distância ao conceito de “ser” que dará ao conceito de “Deus” maior ou menor credibilidade (pensemos nas sutis circunvoluções existenciais do argumento ontológico de Santo Anselmo, e teremos um paradigma que confirma, de forma absolutamente magistral, esta precedência ontológica; e tal está presente num Descartes ou Leibniz, e mesmo nos “imanentistas” Espinosa e Hegel: sempre, recorrentemente, “Deus” se aproximará da máxima “consistência” ontológica possível, ainda que coincidente com ou sublimado no Espírito Absoluto).
Onde entra, agora, a questão do “infinito”? Na realidade, este conceito ou esta noção - façamos dele a imagem e o uso que quisermos - é, antes de mais nada, uma conquista do intelecto.
A visão original dos gregos, de um modo geral, expressava sua predileção pelo cosmos, a limitação ordenada, o retorno ao mesmo, a determinação, a ordem, a beleza, antes que pelo ápeiron, a indeterminação e a i-limitação: aborrecia o infinito e se vertia à eternidade360.
A sua possibilidade racional, admitida e até colocada na difícil posição de arché da realidade por Anaximandro361, não permanece senão como expressão de uma determinada negatividade da qual se deveria manter, a bem da tranqüilidade espiritual e da clareza metafísica, tanta distância quanto possível. Ao longo de toda a história da racionalidade helênica clássica, a noção de “in-determinado”, “in-finito”, repugna ao pensamento que intenta fixar suas próprias bases de inteligibilidade e concebe os fundamentos de sua “meta-física”362.
À época da Idade Média, o infinito, de um modo geral, aproxima-se maximamente e se confunde com Deus - o infinito pensado sempre cosmologicamente interpenetra-se afinal com o Deus onto-cosmológico da religião intelectualizada. E, nesta medida, pensar o infinito corresponderia a um ato intelectual estulto, a saber, pensar a realidade de Deus não analogamente.
O conceito de “Deus” é, então,
uma limitação clara à racionalidade
que pretende alcançar o infinito.
A superação desta limitação corresponde à demarcação clara de irrupção do mundo moderno em relação à desagregação do mundo medieval. Sua expressão talvez mais explícita provém de Giordano Bruno em sua promulgação da infinitude do universo, à qual se segue a não menos expressa, embora subreptícia, promulgação da infinitude do intelecto que é capaz de acompanhar esta infinitude do universo, superando qualquer barreira imposta por conceitos sagrados.
Com isso, estabelece-se definitivamente a crença na correlação óbvia e excludente “infinito=conceito onto-cosmológico” - excludente porque não se concebe a possibilidade de se pensar a questão do infinito desde algum outro viés que não o onto-matemático.
Assim, a positividade do conceito de infinito, enquanto dado intelectual, é conquistada a duras penas, e tem também seus mártires: significa, propriamente, a divisão de águas entre a maioria dos modelos de universo antigo e medieval e o pensamento moderno363.
E este conceito em sua feição moderna é fruto também, exatamente, de uma cosmovisão original que, consubstanciada no logos, define a realidade enquanto propriamente ontológica, no sentido acima descrito. Ser, Infinito, Realidade, Essência, Mundo (e, decorrentemente, “Deus” e “Religião”): todos conceitos irmãos, expressões de um mesmo processo de trofismo intelectual que pretende dar imanentemente à “fórmula original do Ocidente” a sua solução final.
A “Essência não-ontológica da realidade – a questão de Deus e a essência da religião
Mas Levinas parte de outro princípio. Para ele, desde a tomada de consciência original da existência em que se constitui o impulso original do filosofar, coloca-se o ser como repleto, a existência assume a feição de uma “completude” sem interstícios. A percepção da impessoalidade do verbo “haver” no sentido de “existir” - há (il y a) a realidade, uma das dimensões da realidade é o “haver” - acaba por indicar uma realidade sem brechas, sem respiros.
A experiência de ser - primariamente “existencial”, mas também, depois, indiscutivelmente “especulativa” - é de alguma forma a experiência da repleção - como a experiência de ser de Sartre é de certa forma, em sua origem, a náusea - embora a náusea indique, também, o desconforto do ser em desencontro consigo mesmo364.
Esta experiência de repleção toma, na aproximação ainda fenomenológica de Levinas, o aspecto da insônia, da vigília perpétua e da vigilância omniabrangente da qual não se pode fugir, da qual o “eu” não se pode refugiar: “há”, “il y a”365.
Assim, a percepção da sufocação, do excesso de ser, dá margem à compreensão clara, absoluta e faticamente inequívoca, da impossibilidade de, nesta atmosfera ontologicamente saturada, o diferente aparecer como tal; o Outro enquanto Outro não tem espaço na Totalidade: apenas enquanto função do Mesmo.
A ontologia está fechada ao outro, como o sabiam bem tanto Heráclito - para quem a luta ou a guerra diferenciavam definitivamente (ontológica e portanto realmente) - o ser do não-ser, como para Parmênides, para quem o ser, coincidindo consigo mesmo, coincide com a possibilidade de pensar a realidade (o famoso “o ser é, o não-ser não é”).
No reino do ser, da espessura ontológica,
tudo é função e expressão do ser
- inclusive o conceito eminente de “Deus”.
Qual é, agora, o grande problema que este conceito propõe ao pensamento pelo menos desde o advento do cristianismo?366 É exatamente a ambigüidade que se cria entre as impessoais concepções gregas clássico-racionais - ordem máxima, idéia de idéia, primeiro motor imóvel, de matriz perfeitamente “ontológica” - e a concepção de índole hebraica, baseada em uma “pessoalidade” divina, um Deus dotado de vontade e que exige, perdoa e dialoga, um Deus ético - talvez uma sempre nova reproposição da querela fé versus razão que habita congenitamente a própria idéia de pensar uma teologia fundamental367.
Neste conceito, como em todos os outros fundamentais da filosofia desde então, espelha-se o choque e a tensão entre duas cosmovisões visceralmente diferentes, dois mundos humanos368 profundamente diversos e de certa forma irreconciliáveis em seus princípios.
O cristianismo medieval e moderno é fruto das tentativas de conciliação entre estes dois mundos, em um trabalho árduo estabelecido por grandes doutores da igreja como Agostinho e Tomás de Aquino e pela criação coletiva de um consenso compreensivo, onde o fulcro ontológico, de proveniência “grega”, é definitivamente central (a vasta doutrina da “analogia” talvez seja a mais relevante construção no sentido de estender à realidade como um todo a preeminência do ser).
A obviedade se impõe:
o conceito de “Deus” medieval e moderno está,
a priori, condicionado pela sua pertinência
ou não ao ontologicamente determinável.
O processo moderno de imanentização de Deus, que tem suas grandes estações em Espinosa e Hegel e culmina com sua aniquilação em Nietzsche369 (na medida em que, apesar de tudo, ainda permanecia como obstáculo à coincidência absoluta do Mesmo consigo mesmo), contra o qual tanto se debatem os teólogos, não tem provavelmente outra raiz do que esta, aqui simplesmente sugerida: a inclusão deste conceito em um processo maior e mais original de totalização e anulação do diferente e sua conseqüente neutralização frente às razões do Ser: a procura sempre recorrente da solução à “fórmula original do ocidente”.
A filosofia de Levinas é primariamente um processo de pensamento que pretende respeitar a Alteridade que se traduz como anterioridade ética do Outro (em oposição à espécie entre gêneros ou à diferença a priori anulada pelo impulso de totalização do Ser), e que pretende, a certa altura de seu itinerário, a reconstituição da possibilidade da reconsideração radical da questão mesma da subjetividade a partir do sustentáculo ético em que esta Alteridade mais verdadeira se constitui.
Mas a Alteridade mais verdadeira traz consigo seu espaço de validade, seu sentido, e este não pode ter lugar nos domínios do Ser370 - pois o ser, como sabemos, não admite outro que ele sem se “entificar” (para o ser, é provável que “nada” e “não-ser”, não obstante o fato de até mesmo se positivarem através de um nome “próprio”, não sejam mais do que sua negatividade).
A Alteridade mais verdadeira significa o rompimento da solidão original das concepções “normais” de verdade ocidentais: introduz a pluralidade na origem do sentido371 apesar da Totalidade e do Mesmo verdadeiros; não nega estas verdades mas, por levá-las extremamente a sério, opõe-se já a suas determinações absolutas.
Cria-se, portanto, um espaço de tensão entre o ontológico e o ético - e o paradoxo do assassinato “ontologicamente possível e eticamente impossível” (ao tentar anular a alteridade de alguém assassinando-o, acabo por conquistar apenas um corpo morto, enquanto sua “alteridade” propriamente dita se refugia no “nada”372), este paradoxo determina já dois campos de validade perfeitamente distintos, e isto significa aqui: irreconciliáveis enquanto proveniência e imiscíveis enquanto determinação discursiva.
Ora, este espaço apresenta,
ao discurso respeitador da Alteridade,
uma definitiva irredutibilidade.
A leitura unificada do mundo, concebida desde sempre no Ocidente como desvelamento ontológico da realidade, esta tarefa solitária à procura de verdades solitárias (leitura esta da qual a ética é um apêndice disciplinar), ganha uma alternativa: a construção de encontros éticos entre “mais de um” e a conseqüente possibilidade de construção de uma “verdade não-solitária”, compartilhada ex origine: uma relativização da fórmula original do Ocidente através da introdução da temporalidade diacrônica no universo da eternidade sincrônica-conceptual.
Percebe-se aqui a conhecida dualidade: Totalidade e Infinito - porém não infinito finalmente absorvido pela totalidade mas sim que, por sua realidade ética, permanece infinitamente distante de toda demiurgia racional, ao mesmo tempo que infinitamente próximo na relação cara-a-cara.
Isto significa, mais propriamente, a conhecida “substituição” da ontologia pela ética enquanto filosofia primeira no pensamento levinasiano; pretende resguardar a Alteridade da violência unificante da Totalidade, através do reconhecimento do sentido da Alteridade de certo modo sempre infinita, que consiste, para um ser pensante, exatamente na impossibilidade de redução deste sentido a um “sentido maior”.
Em termos concretos, esta substituição significa, como dissemos em outro local: “...o fato de que a terra e por extensão o Universo devem ser compreendidos como um imenso palco, onde um drama ético se deve desenrolar...
Esta é a racionalidade final da existência,
e não a exploração de quarks ou de quasars
e galáxias distantes, a cata ao ‘infinito’
e a violentação do futuro”373.
Neste contexto, quem “é” Deus no conjunto da reordenação das disciplinas filosóficas, em cujo concerto todas são subsidiárias à Ética?
Em um importante sentido, “é” provavelmente - e esta é uma interpretação que leva em conta a variedade de aproximações levinasianas ao tema - a salvaguarda última e irredutível do espaço próprio da Alteridade, ou seja, o fundamento ético de toda ética, o infinito que, distorcendo o tempo e o espaço, apresenta-se simultaneamente infinitamente antigo e infinitamente futuro, infinitamente próximo e infinitamente distante: paradoxo e subversão de toda lógica ontológica, dado à racionalidade apenas como extremo vestígio - mas vestígio do absolutamente Novo e absolutamente Outro.
Rastro e Vestígio,
antigüidade presente na medula do real,
Êxodo do Logos: para-doxo.
Para Levinas, “religião é ética”. Mas o que significa isto? Significa que em nenhuma hipótese se poderia conceber a religião desde um ponto de vista meramente especulativo: pois religião é, entre outras coisas, cultivo da espiritualidade, e lembremos que, para Levinas,
“espiritual, para nós, é a fome do Outro”,
entre outras dimensões.
Religião é ética,
e ética é a negação
de toda possibilidade de solipsismo.
Religião é, primordialmente,
a efetivação prática da postulação da ética
como filosofia primeira em sua dimensão
de máxima abertura.
Conclusão
“A recepção filosófica de Levinas
acaba de começar.
acaba de começar.
Quase tudo está ainda em aberto.”
Bernhard TAURECK374
Bernhard TAURECK374
Os passos que até aqui acompanhamos podem se constituir em uma chave interpretativa (e não mais que uma!) para a compreensão de uma série de questões no pensamento do autor, questões que costumam ser compreendidas como mutuamente excludentes ao longo da tradição mas que, aqui, compõem uma síntese onde várias perspectivas se iluminam mutuamente; e se solidifica, ao que parece, uma visão do essencial da conduta ética tanto de pessoas religiosamente orientadas (para quem a questão do substrato ético das ações é uma obviedade) como daquelas que colocam a questão da religião, conforme tradicionalmente entendida, “entre parênteses”, mas que não abdicam dos fundamentos éticos da vida. Assim,
A) É possível compreender a concepção de religião no pensamento de Levinas como o processo de circunscrição do núcleo mais complexo e precioso da essência mais profunda das religiões monoteístas ocidentais, o mais indizível, na medida em que se constitui no que, por sua própria natureza, se subtrai ao poder sintético-sincronizante do Logos grego e de suas infinitamente complexas derivações histórico-imanentistas. Esta é, sem dúvida, uma inspiração remota e próxima de toda a construção filosófica do pensador lituano-francês.
B) E também é possível compreender esta concepção de religião - de forma completamente não-religiosa, no sentido que o termo “religião” possa tomar tradicionalmente - como o ato ousado de habitar um fulcro de sentido que se coloca exatamente por fora de qualquer ímpeto solitário definitivamente congênito ao âmago de conceitos “ocidentais” mais tradicionais de verdade - veritas e aletheia.
C) No primeiro sentido, a inteligibilidade do conceito de religião em Levinas passa pela aceitação tácita da existência de uma realidade meta-racional, à qual se poderia, precariamente, “convidar à epifania” pelo nome “Deus”, o totalmente Outro.
D) No segundo caso, as palavras são perfeitamente dispensáveis; está-se já em uma espécie de abismo habitado somente pelo vácuo, quase tão ausente e virginal como o espaço do Zimzum cabalístico. Trata-se de uma terra incognita: a terra do des-conhecido, do ápeiron aberto e indeterminado, contração absoluta de todas as virtualidades, antes do tempo e da criação do sentido. Mas um “antes” que convida definitivamente à criação e, portanto, ao ato ético original, ou seja, à criação do sentido original do encontro ético como tal.
E) No primeiro caso, o sentido habita a fé em Deus, um Deus ético que fala, pergunta, responde e ordena e, antes de tudo, pré-afirma: “somos, de início, dois, e dois que se confiam mutuamente - é nossa a responsabilidade de nos fazermos muitos”, sustentando as dúvidas e as certezas, na inconfundível “presença” da “razão de nossa fé”; desdobrar este sentido significa não estar só a priori, nem solitariamente perdido no meio da multidão solitária e infinita dos seres, do Ser e dos eventos, nem dos desatinos deste fim-de-século, mas comungar em uma realidade mais ampla, testemunhar a esperança e viver a fé e a caridade de forma absolutamente intensa e basilar em relação ao conjunto multifacetado da vida individual e social;
F) No segundo caso, o sentido tem de ser construído pelo rompimento da fé e da crença na unidade entre realidade e razão; à razão solitária, a realidade solitária só pode aparecer como definitivamente solitária: a Totalidade. Religião significa então, para Levinas: rompimento da Totalidade pela construção da verdade coletiva que tem seu espasmo primitivo no traumatismo do Outro por fora de qualquer explicação prévia; fuga da eternidade ex-tática pelo assumir definitivo e paradoxal do tempo de construção ética.
(Síntese final) Em um caso como em outro, a tradição, por mais rica que se apresente, pode contribuir com poucos aportes efetivamente compreensivos: a novidade é, por sua natureza, excessiva.
A tautologia rompida - a Totalidade em processo acelerado de desagregação - abre uma dimensão inédita de realidade. Resta-nos ou negá-la, e recair no frenetismo e no horror contemporâneo do eterno retorno do fastio suicida, ou assumi-la; o que significa, em última análise, assumir esta dimensão com todos os seus infinitos riscos, que sugere por sua vez a infinitude das dimensões da realidade. Mas uma realidade ética.
Ricardo Timm de Souza
1997
Publicado originalmente em Veritas
Publicado originalmente em Veritas
– Revista de Filosofia da PUCRS,
junho/1999
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte:
Sentido e Alteridade
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
Porto Alegre - 2009
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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