"O SENTIDO DA ALTERIDADE "
SEGUNDO ENSAIO
- Fulcro da história, urgência do pensamento - sobre a compreensão do conjunto da obra de Emmanuel Levinas - um breve estudo introdutório
Introdução
Este breve texto não tem a pretensão
de se constituir em uma introdução
ao conjunto do pensamento de E. Levinas40.
Trata-se apenas de tentar tornar claros o entrecruzamento de certos elementos históricos e categoriais imprescindíveis a uma compreensão mínima daquilo que normalmente se tem chamado a filosofia desse autor. Pois é necessário notar que, sendo a obra levinasiana extremamente variada em sua confecção - abrange desde estudos filosóficos estritos de variado teor e comentários talmúdicos até artigos sobre acontecimentos históricos específicos, crônicas pessoais, conferências proferidas em contextos diversos e posteriormente publicadas, etc. - é pelo viés da filosofia que Levinas vem se tornando crescentemente conhecido em nosso meio.
A fim de que se compreenda a especificidade desse cruzamento histórico-filosófico, necessária se faz uma prévia caracterização do espectro filosófico onde se desenvolve principalmente a linguagem do filósofo, especialmente no que se refere à filosofia e sua "superação".
A fenomenologia
Destacaremos aqui apenas algumas caracterizações elementares de “fenomenologia”, geralmente aceitas, que poderão servir para que nos situemos com relação ao ponto de partida explicitamente filosófico de Levinas.
“A aquisição mais importante da fenomenologia estriba, sem dúvida, em haver unido subjetivismo e objetivismo extremos em sua noção de mundo ou de racionalidade. Há racionalidade, isso quer dizer: as perspectivas se recortam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas não há que colocá-la à parte, transformada em Espírito absoluto ou em mundo em sentido realista...”41.
Essa notável síntese de Merleau-Ponty bem corrobora a idéia de compreensão da fenomenologia como uma espécie de “depuração” das intenções racionalistas, reduzidas que são estas a seus componentes estritos. A noção de intencionalidade ilumina o foco real, em cada momento, da racionalidade às voltas com seus próprios e originalmente indiscerníveis preconceitos, como que
“desfetichizando” assim as bases de um positivismo ingênuo de cunho cientificista: “as visões científicas, segundo as quais sou um momento do mundo, são sempre ingênuas e hipócritas porque subentendem, sem mencioná-la, esta outra visão, a da consciência, pela qual um mundo se ordena em meu entorno e começa a existir para mim.
Voltar às coisas mesmas
é voltar a este mundo antes do conhecimento
do qual o conhecimento fala sempre...”42.
A filosofia, depois da fenomenologia, obriga-se de certa forma a reconsiderar suas bases “epistemológicas” mais profundas, de certo modo sempre presentes em sua discursividade. Se com ela aprendemos que “...o parentesco do intelectualismo e do empirismo é muito menos visível do que se crê”43, outras velhas noções, sagradas noções, são igualmente questionadas pela tensão fenomenológica: “realismo”, “idealismo”.
Noções como “racionalidade”, “mundo”, são despidas de seu arcabouço racionalista tradicional, sempre auto-justificante, na medida em que esta auto-justificação se evidencia, pelo exame de seus componentes mais recônditos, como arché nunca esclarecida porque sempre pulverizada por sua própria pretensão de abrangência.
Com a fenomenologia, os problemas filosóficos tradicionais assumem uma outra feição de sentido, já que a distinção entre “conhecimento” “científico” e “filosófico” é claramente determinada: “a racionalidade não é um problema, não há por detrás da mesma uma incógnita que tenhamos de determinar dedutivamente ou demonstrar indutivamente a partir dela:
assistimos em cada instante a este prodígio da conexão das experiências... o mundo e a razão não constituem um problema; digamos, caso se queira, que são misteriosos, mas este mistério os define; de modo algum caberia dissipar este mistério através de alguma ‘solução’, (pois) está aquém das soluções”44.
O mundo assume um sentido inusitado
de intersecção de múltiplos sentidos.
Ocorre, com a fenomenologia, uma profícua desestruturação de toda uma sempre renovada redução de tudo aos modelos que a tudo abarcam, sem que compreendam a raiz de seu próprio apriorismo arbitrário. Em suma, o “mundo” - agora “divergido” em infinitas significações - enriquece-se desmesuradamente.
“O mundo está aí previamente
a qualquer análise que eu possa dele fazer”45.
As divisões classificatórias como que perdem o sentido pelo assomar do sentido do existente real em sua unicidade nascente: ‘...quando contemplo um objeto com a única preocupação de vê-lo existir e desdobrar ante mim suas riquezas, deixa de ser uma alusão a um tipo geral...
a ordenação momentânea volta,
como no primeiro dia do mundo vegetal,
a esboçar a idéia individual desta árvore”46.
Naturalmente, porém, esse espasmo de novos sentidos, essa possibilidade de avanço torna-se fonte de angústia - “(em minha vida)... abdico de meu poder perpétuo de dar-me outros mundos em benefício de um deles... este privilegiado que acaba por não ser mais que uma certa angústia...”47.
O novo é, em sua novidade,
necessariamente angustiante
- ou, como diria Sartre, nauseante48.
E também se pode, desde dentro do próprio corpo de pensamento fenomenológico, começar a perceber que qualquer pretensão de ordenação de um “mundo” coeso em torno a uma polarização racional-subjetivista de sentido começa a ruir irremediavelmente: “se vejo que ‘posso passar’ por um caminho sem ter de comparar a largura do mesmo com a do carro... o automóvel... deixou de ser (um objeto) cujo volume e tamanho se determinaria por comparação com os demais objetos. Converteu-se em potência volumosa, na exigência de um certo espaço livre”49.
A linguagem,
liberta das peias da mera enunciação,
assume nesse contexto um papel fundamental,
principalmente quanto concretizada “poematicamente”:
“o poema utiliza a linguagem;
mais, uma linguagem particular,
de modo que a modulação existencial,
em lugar de dissipar-se no mesmo instante
em que se expressa, encontra
no aparato poético o meio de eternizar-se”50.
Todos esses dados, aqui sumariados segundo a rica visão de Merleau-Ponty, foram levados a sério por Levinas. Grande estudioso de Husserl, percebeu logo o alcance da fenomenologia para a compreensão de impasses do mundo contemporâneo e as inusitadas possibilidades de investigação que ela ajudava a descortinar51. Também percebeu implicitamente a procedência da constatação de Kolakowski - “é muito duvidoso que alguém tenha tido êxito em obter uma linguagem que reúna estes dois pontos de vista: um dirigido diretamente ao cogito e outro às coisas”52 - e compreendeu certamente a falácia da crença da experiência do presente no peso inamovível de um ser maciço feito totalidade, na inelutabilidade de “um ser fundado de uma vez por todas e ao qual nada teria podido impedir de haver sido”53.
Nessas dimensões, que levam a fenomenologia a seus limites intrínsecos, abre-se a possibilidade de sua superação justamente pela radicalização de suas conquistas (aqui, em um sentido diferente do de Heidegger e incorporando muito da riqueza do Heidegger de Sein und Zeit).
É, de qualquer modo,
pela via aberta pela fenomenologia,
que Levinas modulará seu discurso,
o qual pretende, porém, conduzir o leitor
muito além dela54.
O hebraísmo
“A reflexão filosófica não se desonra ao abordar
sentimentos pungentes, se é a ela que cabe a
primeira palavra, se é ela que sonda o sentimento,
revelando-lhe a intenção implícita e, através desta
provação crítica, eleva-o à verdade”
P. RICOEUR55
sentimentos pungentes, se é a ela que cabe a
primeira palavra, se é ela que sonda o sentimento,
revelando-lhe a intenção implícita e, através desta
provação crítica, eleva-o à verdade”
P. RICOEUR55
É puerilidade pensar que Levinas, pura e simplesmente, expressa termos ou conteúdos religiosos em palavras filosóficas56. O pensador assume a posição de um filósofo em sentido estrito - se é que tal significa alguma coisa - como bem o comprova a rigorosa articulação de sua linguagem. O fato é que muitas vezes
“Levinas explora a zona de fronteira
(entre o filosófico e o religioso),
mas sem ultrapassá-la nem confundir
as regiões de um e de outro”57.
O que acontece é que o autor, ao estabelecer a tradição judaica como um dos determinantes de seu próprio pensamento, configura uma determinada linguagem de muito difícil inteligibilidade para o leitor acostumado à busca constante de um conteúdo de verdade enunciado e circunscrito em si mesmo, em sua idéia - já que muitas vezes não é essa, exatamente, a concepção de verdade que está primordialmente em jogo na racionalidade levinasiana.
Levinas traduz algo daquilo que poderíamos talvez chamar “categorias antropológicas” hebraicas à racionalidade ocidental, expondo-se, assim, a uma infinidade de incompreensões. Essa ingrata tarefa, que o caracteriza como um pensador “desconfortavelmente instalado”58, consubstancia-se como um forte choque cultural no âmbito da filosofia.
Um pensar sem “suavidades”
“A nossos males, ele opõe um remédio de intransigência, uma poção muito cruel, pouco suportável por nossos estômagos assépticos, mas capaz de interromper uma ruminação milenar...”59 - a um mundo desconsolado, Levinas propõe um pensamento pouco consolador, pouco afeito a qualquer tipo de concessão a muitas das categorias tidas como intocáveis na modernidade, ao menos em seu sentido consagrado: “justiça”, “liberdade”, “igualdade”...
“Nem pregador, nem moralizador,
Levinas se situa sem concessão
‘para além do patético’,
e é por isso que sua voz, inspirada
no que a razão tem de mais exigente,
é de grande abrangência”60.
As exigências do rigor ético levinasiano estão para além de qualquer jogo ou lógica da consolação e da des-consolação; situam-se em princípio na instância da pura “exigência” do não subornável pelo atalho das boas intenções ou pela sedução de modelos de racionalidades domesticadas.
A História
“A injustiça social e todas as formas de exploração
são apenas eufemismos do assassinato”
E. Levinas61
são apenas eufemismos do assassinato”
E. Levinas61
“Toda a obra de Levinas denuncia constantemente - e sob a inspiração de Franz Rosenzweig - as ilusões da história enquanto portadora do sentido último. Largada a si mesma a história é a desordem, o arbitrário, o contra-senso... É em Totalité et Infini que é desenvolvida a crítica mais radical da história”62.
A radical crítica levinasiana a todo “redentorismo” de índole necessitarista ou mecanicista o leva a um ataque frontal a qualquer tipo de historicismo, sem por isso, porém, entregar-se a algum tipo de espírito de laissez-faire de conotações “neutras”. Sua preocupação profunda pela completação da des-neutralização das estruturas carcomidas do passado e da modernidade o leva a exigir a - incompreensível para toda uma imensa tradição filosófica mas representada for autores geniais, como Walter Benjamin - colocação da história sob o crivo do julgamento moral.
Para Levinas, a história tem sido o recalque violento de uma profusão de “histórias alternativas”, sufocadas criminosamente pela grande história vencedora e hegemônica em termos de determinação de sentido de desenvolvimento - a Totalidade em processo de auto-justificação e auto-legitimação.
A vibração dos conceitos
“(Levinas prefere) a vibração dos conceitos... a linguagem hiperbólica, o salto mortal... ao invés de um caminho tranqüilo e de uma semântica unívoca em direção ao fundamento... (o que acaba por levar) à explosão das categorias e dos horizontes”63. Para o pensador lituano-francês, cujo “pensamento se torna canto sem perder nada de sua racionalidade”64 e que redescobre infinitas riquezas em um “vocabulário em desuso”65, a questão da filosofia é a questão da superação dos filosofemas em sua redundância tautológica.
Levinas despreza conceitos que não trazem à tona sua raiz e sua sinceridade de origem, mesmo que tal se dê em um torturante entrechocar-se com suas próprias limitações; e isto mesmo quando se faz imperioso o abandono de qualquer tipo de ortodoxia racionalista: “Levinas... faz recurso sempre maior à linguagem poética na medida em que suas descrições fenomenológicas vão abandonando referência a conceitos consagrados na história do pensamento ocidental e vão se aventurando em vestígios, em ‘dar sinal’ fazendo vibrar poeticamente as palavras”66.
Poder-se-ia dizer que muito da obra deste pensador consiste no resultado de sua busca reiterada de “vestígios” daquilo que não pôde – ou não pode - sobreviver de outra forma67.
Levinas e a história da filosofia
Não se compreende, absolutamente, o pensamento deste autor sem uma contínua e rigorosa contraposição de sua formulação filosófica com o próprio decorrer do pensamento ocidental. Levinas dialoga continuamente com o conjunto do pensamento em seu sentido percebido como significativo por quem quer que pense ou, simplesmente, sofra as conseqüências da história.
Se é verdade que a racionalidade ocidental se desenvolve em um continuum englobante, pelo menos até a profunda situação de crise contemporânea68, é bem verdade que, na virada do século passado, há um recuar cada vez mais profundo em buscadas origens justificantes desta própria dinâmica de desenvolvimento.
Husserl mergulha nas origens do racionalismo,
na esperança de reencontrar um fundamento seguro
para o desenvolvimento contemporâneo
da razão moderna;
Heidegger retroage mais intensamente,
procurando com todas as forças des-velar
a própria possibilidade de um fundamento ser racionalizado.
Com sua concepção de Ser,
integra o diferente - diferença ontológica
- a seu locus, a um tempo garantido
- irredutível - e controlado em seu poder
“des-organizador”.
Completa assim a mais perfeita
das totalidades da história do pensamento69.
É com a ontologia fundamental de Heidegger que principia formalmente o diálogo levinasiano.
Se Heidegger encarna
toda uma extraordinária maturidade
de milênios de encantos e desencantos
da racionalidade ocidental, é porque subsume os esforços
e derrotas, fracassos e sucessos de uma imensa multiplicidade
de ramificações, de uma variada gama
de energias de origem.
Heidegger realiza a expectativa
de uma reconsideração radical da ontologia,mostra-a
para ela mesma,para além de subjetivismos
e antropocentrismos ingênuos70.
E é justamente porque houve Heidegger que o discurso levinasiano pode assumir sua incisividade particular na língua particular em que é expresso. É o ser heideggeriano - repositório de toda densidade original-ontológica concebível - que se verte a alternativa ética levinasiana: é porque existe tanta solidez que pode haver uma reconsideração tão radical do sentido.
A obra de Levinas é a vasta história
de uma dificílima construção.
Algumas fases dessa construção
serão a seguir arroladas.
Fases
Vários autores71 têm destacado, na cronologia da obra levinasiana, uma tripartição formada por períodos intimamente concatenados. Estas três fases seriam:
- Uma primeira fase “ontológica”, na qual Levinas estuda a “” subjetividade relacionada ao mundo e a intersubjetividade no mundo”72. Neste momento, que se estenderia até o ano de 1950, o pensador procura elucidar, fenomenologicamente, os constitutivos do “ser para si” - desde o surgimento da questão do ser até a “sufocação” do ser por si mesmo - o “il y a” - mal de ser, “dissipação no ser, esforço para ser a cada instante e necessidade de ‘evasão’”73.
- Uma segunda fase “metafísica” - a compreensão da questão da totalidade de ser, com sua íntima saturação, leva a um questionamento profundo da ontologia, pela provocação do que nela não se resolve: outrem, para além de toda incorporação ontológica, de toda redução ao mesmo, “realidade tão antiga que nunca foi presente”74, transtorno para toda lógica da totalidade, assimetria absoluta: “infinita distância que se avizinha”. Esta fase, que se desdobra até 1961, com Totalité et Infini, sintetiza organicamente toda a anterior obra de Levinas. É neste momento que se evidencia claramente a riqueza da noção levinasiana de Infinito,
“idéia des-reguladora” para toda tautologia,
“porta de entrada” para toda novidade
realmente nova e “porta de saída”
para todo “excesso de ser”.
A terceira fase, desde 1961, se caracteriza por uma intensa e rigorosa reconsideração da questão da subjetividade esvaziada de sua auto-suficiência ontológica. É o momento em que Levinas propõe, desde as conclusões das fases anteriores e a partir do reenquadramento da subjetividade que compreendeu seu retesamento estéril, uma busca e um encontrar, “não de um ser melhor, mas a um melhor que ser, um diferente de ser”75.
A subjetividade,
na condição extrema de “refém” da alteridade,
principia a realização de seu sentido não-totalizado,
“receptivo” e “ativo” a um tempo,
des-fetichizado de suas próprias projeções
e descarregado dos produtos
de sua auto e heterofagia ontológica.
É conveniente destacar, todavia, que o presente esquema é simplificadoramente didático: na verdade, cada grande obra levinasiana traz em sua própria constituição uma reapresentação ab initio de toda uma história arqueológica do ser, porque é a partir dela que o “para além do ser” pode assumir sentido.
Existe uma grande organicidade no conjunto da obra de Levinas, que a variedade de muitos dos temas tratados não consegue romper. Mas esta organicidade não é de fácil detecção.
Das categorias
Ao longo de mais de cinqüenta anos de reflexão, Levinas trabalhou com as mais diversas categorias filosóficas, imprimindo-lhes, geralmente, uma marca absolutamente própria que, de algum modo, contém de forma sintética porém incisiva os próprios desdobramentos ulteriores de seu pensamento. No presente contexto não temos como objetivo uma síntese descritiva de tais categorias ou de sua evolução, mas sim destacar suficientemente algumas categorias principais, que nos conduzem ao coração do pensamento do autor, esta palavra magistral que se dá em uma linguagem única - “desde qualquer perspectiva que se lhe tome, a obra (de Levinas) é uma só palavra”76.
Ser e “il y a” como conclusão de ser
Quando, em 1947, Levinas diz que “nous allons d’essayer de mettre en question l’idée que le mal est défaut”78, está chegando à culminância de sua reflexão primeira sobre o ser.
Todas as considerações, paulatinamente desenvolvidas ou mesmo apenas emergentes, de forma explícita, em obras posteriores, que fazem Levinas como que gravitar em torno ao conceito de “ser”79, levarão a uma espécie de paradoxal consciência do ser como se dando, em sua “dinâmica”, como uma estranha “tendência a um excesso de Ser”.
O próprio desenvolvimento lógico interno da questão do ser como uma questão de “positividade em vias de realização” leva à necessidade da investigação sobre as conseqüências do fato de o ser desde si mesmo ser. Em De l’existence à l’existant, o pensador explora abundantemente este viés inusitado para um mundo que, então, procurava se entender crescentemente desde um certo jargão ontológico-existencial ou existencialista (estamos na década de 40).
Diferentemente de Heidegger,
Sartre e outros, o ser é investigado
a partir de prismas inéditos na história da ontologia:
fadiga, “preguiça”, “existência sem mundo, etc.80.
Perpassa todas estas considerações a estranha idéia de ser como excesso de si mesmo - uma espécie de interpretação pessoal de Levinas com relação à crescente consciência da totalidade de ser heideggeriana afirmada como proposta “ontológica” radical.
Aí toma forma uma das primeiras grandes “intuições” levinasianas: o mal, milenarmente interpretado como conseqüência da falta de ser, como incompletude no Ser, é compreendido por Levinas, pelo contrário, como excesso de ser81.
Se “viver é uma sinceridade”82, é necessário que esta sinceridade seja levada às suas últimas conseqüências: seu encontro com sua íntima possibilidade de não ser.
O anônimo mergulho na impossibilidade
de se subtrair à sua condição existencial
de ser leva à insônia, também anônima:
“a vigília é anônima.
Não se dá a minha vigilância à noite, na insônia, é a noite mesma que vela”83. A anomia infinitamente espraiada, a in-definição do definido que, decerta forma por uma “lógica ontológica”, perdeu a si mesmo fora de si - tudo isto se conclui sinteticamente na concepção famosa do “il y a”.
Há - “Il y a” - é a ‘existência anterior aos existentes’, “alienação absoluta”, “irremissibilidade do existir puro”84 - “vazio cheio” e “neutralidade dos verbos da natureza”85, tragédia no sentido mais profundo do termo, sem remissão do trágico: “Este retorno da presença na negação, esta impossibilidade de se evadir de uma existência anônima e incorruptível constitui o mais profundo do trágico shakesperiano.
A fatalidade da tragédia antiga
devém a fatalidade do ser irremissível”86.
Mas este “Há” não é de nenhuma forma um “nada”, pois a experiência do nada é impossível. Não há racionalização que consiga remeter o ser presente à não existência absoluta - qualquer aniquilação se desenvolve pela comparação do devir nadificado do aniquilado com seu ser anterior; o próprio conceito de “aniquilação absoluta” é credor do conceito de ser.
A aniquilação só existe ontologicamente.
No sentido mais rigoroso possível, para o ser é “sempre tarde demais para não ser”; a morte absoluta é a idealização absolutamente radical do ser que de si mesmo não se pode refugiar, um “paradoxo negativo” no núcleo desta impossibilidade.
A totalidade de ser - que costuma ter “medo” do “nada” - descobre em si mesma - em sua condição ex nihilo, em si mesmo involucrado, seu excesso e sua concomitante impossibilidade de não ser excessiva: “o horror da noite, enquanto experiência do há, não nos revela um perigo de morte, nem mesmo um perigo de dor. Ponto essencial de toda esta análise.
O nada puro da angústia heideggeriana não constitui o há. Horror de ser oposto à angústia do nada; dor de ser... ser destinado a qualquer coisa que não é uma ‘qualquer coisa’...
O horror executa a condenação
à realidade perpétua,
o ‘sem-saída’da existência...
A impossibilidade da morte. No universo pleno... Nós opomos assim o horror da noite, o ‘silêncio e horror das trevas’, à angústia heideggeriana; o medo de ser ao medo do nada.
Enquanto a angústia, em Heidegger,
completa o ser pela morte...
o horror da noite ‘sem saída’ e ‘sem resposta’
é a existência irremissível...
Horror da imortalidade,
perpetuação do drama da existência,
necessidade de assumir para sempre a carga...”87
O “Há” levinasiano é uma formulação “endógena” da radicalização do mal-estar que a subjetividade - ou a totalidade de sentido, ou a totalidade de razão, ou mesmo a ontologia sartreana ou heideggeriana - deixava “fora” de si, de suas possibilidades de conhecimento identificadas consigo mesmas ontologicamente, em sua saturação lógica interna. Há o mundo completamente “amorfo” para além de minha vontade; existe para além dos limites que eu quereria a mim mesmo impor, existe a existência que não pude escolher e que em mim não se circunscreve - mas uma existência sem a dignidade trágica do absurdo sartreano ou da Geworfenheit ou do além-do-ente heideggeriano: apenas a insônia.
Isto tudo se dá apesar da “hipóstase” - que, na história da filosofia, “designa o acontecimento pelo qual o ato expresso por um verbo devém um ser designado por um substantivo... A aparição de um domínio privado, de um nome. Sobre o fundo do Há surge um ente”88, pelo qual o ser é de certa forma “nominável”, “alguém existe que assume o ser, doravante seu ser”89.
“Hipóstase”, “princípio de liberdade”, é o desamarramento do sujeito no reino da ontologia e de seus desdobramentos, sua possibilidade trófica ao longo da história da humanidade - pelo menos antes das grandes crises atuais, que permitem a dilucidação “ontológica” das origens da mobilização energética do poder que converge para sua auto-compreensão racional90.
Nos conceitos de “Há” e “hipóstase” estão implicitamente presentes os elementos que compõem o pano de fundo ontológico da totalidade - raiz da noção moderna de liberdade como realização plena da vontade que apenas ontologicamente aceita ser referenciada (como se aí se esgotassem todas as possibilidades de o possível ser real) - e isto muito antes da própria ontologia iniciar seu árduo processo de auto-compreensão em sua feição moderna.
A transformação de “toda transitividade em uma intransitividade última”91 se encarrega de fornecer sustentação, enquanto modelo legitimador de toda ação e de todo o pensamento, à hipertrofia em sentido profundo “ontológica” de todo sujeito que se vê às voltas com a possibilidade de assumir para si um “nome”. Esta é mais recôndita das lógicas de totalização, porque a mais simples e a que não nega, em nenhum momento, sua condição de verdadeira de si para si. Ela realiza a ontologia.
O Ser se refugia no ser;
aí vive, entende a vida
e não pode morrer.
O Mesmo e o Outro - estrutura formal da alteridade
Trataremos agora, finalmente, de dois conceitos sumamente abstratos, necessários para um início da compreensão do pensamento de Levinas em termos estritamente formais.
A conscientização paulatina do ser que sempre se excede em sua totalização que vai se “iluminando noturnamente” (pela sua própria hipertrofia, e “por fora” dos termos nos quais procura se encontrar: o ente que nem no ser se vê) - a percepção do “há” como esgotamento imanente das possibilidades “ontológicas” de ser, leva à saturação de sua própria “reserva ontológica” de sentido a si mesmo referenciado. A radicalização da ontologia envia à paradoxal possibilidade do - para a ontologia - impossível.
O sofrimento - aquilo que “liga o eu a si sem espaços”92 e cujo “conteúdo... se confunde com a impossibilidade de se destacar do (próprio) sofrimento”93 - que assume em si infinita densidade ontológica, acaba por apontar para o “meta-ontológico” vazio de ser que se anuncia na morte iminente: impossibilidade das possibilidades que eu tenho (ao contrário da “possibilidade de minhas impossibilidades” heideggeriana)94.
O sofrimento, instante presente infinitamente condensado, esgota a possibilidade de ser e retrai todo o ser hipostasiado para dentro de si mesmo de uma maneira incomparavelmente explícita; o sofrimento abre espaço para a ocorrência de uma dimensão do real que o logos não costuma dar conta e que se anuncia com a morte, a qual, como vimos, a onto-logia não pode ter como uma de suas possibilidades reais95.
Mas a pergunta recorre:
o que “é” a morte?
A questão não pode, nem ao menos,
ser assim formulada - a morte não é,
nunca foi nem será; quem é, foi ou será
é quem tenta atá-la com as cadeias da ontologia96.
Mas a morte se deu, se dá ou dará.
E se dá, no pensamento de Levinas,
como uma estrutura formal original da alteridade.
L. C. Susin comenta a visão levinasiana da questão: “Mesmo no maior sofrimento e rompimento, há um intervalo intransponível que não permite nem assunção nem compreensão e nem experiência da morte, apenas a sua ‘vizinhança’”97.
À morte, a ontologia hipostasiada vira “passividade”, o pathos por excelência; a morte “toma o sujeito nos braços, como uma criança”98. A morte porta o seu próprio sentido. Ela é o outro em sentido radical - “a morte é o futuro que irrompe sem projetos em direção ao presente, e desfaz todo projeto”99 - ao que se poderia acrescentar: é a confrontação da cronologia com sua íntima insuficiência ontológica, ou a confrontação da “ordem” com o seu arbitrário artificialismo rítmico. Trata-se da desintegração “ontológica” das categorias que a própria ontologia engendrou, por algo que a ontologia não com-preende e que “me impede de conhecer o todo”(Rosenzweig).
Desencanto supremo
em relação à subjetividade, a morte
“tem a estrutura de uma relação ao outro”100.
“A morte vem desde além do horizonte”101, e por isso é mistério que só gravita ao redor de si mesmo, e não ao redor de uma projeção consolada ou desconsolada de uma subjetividade violentada pelo sofrimento.
A morte dá-se, desta forma,
também como uma positividade,
como “uma misteriosa saída da opressão da totalidade”102;
por sua ameaça, porém, o sujeito é alçado
a uma condição de ambigüidade original:
“Nós queremos ao mesmo tempo morrer e viver”103.
A morte é
“nada de mim mesmo e de meu mundo”104,
um “apagar das luzes”:
“O desconhecido da morte significa que a relação mesma com a morte não se pode dar na luz”105, ou seja, no âmbito de iluminação do logos e de suas produções. Não é por acaso que a morte seja sempre, pelo menos no ocidente, escura; um acontecer que, por mais antevisto que seja, dá-se sempre in tenebris - a morte é tenebrosa por sua própria luz negativa que não se deixa iluminar pelo logos.
Ocorre, na morte,
a derribação da maestria onipotente:
“a morte anuncia um acontecimento do qual o sujeito
não é mais o mestre,
um acontecimento com relação ao qual o sujeito
não é mais sujeito”106
- o des-controle instaurado a despeito das possibilidades de inconformidade do voluntarismo traído por sua própria saturação ontológica. A morte: primeira formulação inequívoca de uma estrutura de alteridade absoluta.
Mas a estrutura da alteridade que se condensa em categorias não se esgota, absolutamente, na morte. Na própria família - em seus vários aspectos - manifesta-se a novidade ao velho, o diferente ao igual, o outro ao mesmo: na alteridade amorosa, no filho em relação aos pais107. Três exemplos, um só sentido formal: ao mesmo, totalidade para si referenciada, achega-se um Outro heteronomamente referenciado e que se expõe ou obriga desde sua gravitação heterógena em torno a um pólo de referência que o Mesmo não pode dar.
Quem é, portanto, o Outro? É a dimensão de des-neutralização eminente do Mesmo de si para si mesmo, em meio às suas razões e auto-justificações. É o que não deixa o Mesmo enquanto Mesmo repousar.
O Outro é o questionamento
de toda boa consciência,
a saída do ser em excesso
e do excesso de ser: um melhor que ser.
Desde a precariedade destes abstratos conceitos, pode-se abordar a questão do diferente do Ser e que é diferente que Ser; se o Ser se explica pela ontologia, ou a sustenta, o diferente que ser é o que pela ontologia não se explica nem se sustenta essencialmente; se o Ser na ontologia encontra guarida, o outro que ser não existe para a ontologia.
Ao ser que clama, em seu mais profundo e desenvolvido sentido, por “ex-cedência”108 - a um mundo que já não se suporta e a uma tautologia que tende a se sufocar em meio a suas próprias razões e excrescências, oferece-se o outro que brilha com uma luz não iluminada pelo logos, mas própria como a do logos, sem ser a do logos e sem jogar pelas mesmas regras.
A Ontologia e a Ética
“Eis uma des-neutralização do ser...”
E. LEVINAS109
Desenvolvemos em nosso Sujeito, Ética e História - Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental110 - bem como no ensaio “O delírio da solidão - sobre o assassinato e o fracasso original”, neste livro - estudos daquilo que pode ser considerada a diferença paradigmática entre o ético e o ontológico: o exemplo de um assassinato.
Apenas alguns dados sejam aqui destacados: em um assassinato há, antes de tudo, uma motivação: a anulação do outro enquanto tal, de sua alteridade própria e irredutível.
O outro se me opõe ontologicamente:
é seu ser que impede, aparentemente,
que eu o conquiste ou anule in toto.
Mato-o, então, e o que conquisto é exatamente o que não desejaria: um corpo morto, o corpo de... . Aí está seu “ser” à minha inteira disposição: posso enterrá-lo ou despedaçá-lo, reduzi-lo a pó - e não terei o que queria: a sua alteridade enquanto tal. Ela está como que calada: refugiou-se “para além do ser”, no Não-ser da ontologia - que, para a ontologia, não existe.
O que existiu foi um ato: o ato ontológico da negação do ético; mas não foi o ético que foi aniquilado, mas a “espessura de ser” desde onde o ético se mostra. Para além do ser não está o nada, mas a alteridade que ser, a qual o ser não atinge de forma alguma.
Que se possa, agora, dizer que “’neste mundo’ a resistência ética é como nada, e o assassinato é uma possibilidade real”111 significa simplesmente que quem domina as possibilidades da realidade ao longo da grande e das pequenas histórias é o ser que se totaliza e que aposta em sua onipotência.
A quotidiana dramaticidade de assassinatos, guerra e aniquilação não faz mais do que corroborar aquilo que a filosofia demorou dois mil e quinhentos anos para descobrir:
que o ser tenderá a se identificar
com toda e qualquer possibilidade
de toda e qualquer realidade ser real,
escravizando para isto as consciências,
o mundo das coisas e dos entes em geral
e a própria capacidade de racionalizá-los
- absorvendo continuamente à força,
em si, o que a si não se dá.
O vitorioso tem feito “triunfar a solidão e a paz dos cemitérios”112 - ou tem feito crescer o limbo indiferenciado da tautologia crescentemente autofágica em sua própria ânsia de heterofagia. O ser tem sido, e a guerra tem sido ser.
O mundo contemporâneo é aquele
que não tem a si presentes estes fatos;
apenas os pressente, pressente a sua insuportabilidade,
mas não os vê de frente, inequivocamente,
como tentamos mostrar em outro lugar113.
A redundância dos últimos frutos decadentes de seu próprio discurso maciçamente ontológico, incapaz de enxergar um “fora de si”- tal o medo do Outro - agudiza a crise das teorias do conhecimento deste final de século. Confunde-se produtos de uma determinada racionalidade com os pressupostos de toda racionalidade possível, ou com a própria idéia de racionalidade em uma transversal variação totalitária, pois a totalidade, espécie de deus absconditus, apresenta-se seguidamente onde menos se poderia suspeitar.
Levinas escreve, em 1951, “L’ontologie est-elle fondamentale?” onde questiona frontalmente a prioridade absoluta da ontologia enquanto sustentação suficiente do real114.
É que “Levinas recusa-se a conceder à guerra
o privilégio da origem”115.
E se “o pensamento de Levinas... nos chama à deslocação do logos grego...”116, isso não significa que não o leve a sério, mas, sim, que o leva muitíssimo a sério; tão a sério, que chega a tocar alguns dos limites de seus desdobramentos.
É este “levar a sério”, a um tempo recatado e incisivo, que perpassa todo o pensamento de Levinas, que culmina na “separação” intransponível entre a vigorosa realidade do ser e da ontologia e a ontologia que não se confunde com toda e qualquer realidade possível.
As “sobras” de realidade, as “franjas” envergonhadas do não redutível ao ontológico, não moram em mundo nenhum. Estão além da ordem normal do tempo e do espaço - não existem para a iluminação intelectual ou para o sentido ontológico117. Como o assassinado, refugiaram-se em lugar nenhum.
Conclusão
Com isto, temos talvez um esboço do essencial: um pensamento que, encontrando-se em um momento preciso e irrepetível da história - desta complexa história do século XX – não quer ser apenas pensamento. Para tal, terá de repetir a experiência original de qualquer pensamento: o encontro com a diferença118.
Apenas tentará não reduzi-la finalmente a uma função sua, ou a uma estrutura lógica, mas tentará aceitá-la urgentemente com vida própria e como base da própria vida.
A forma como isso deverá se dar: concebendo a possibilidade do mundo desde uma dimensão primordialmente ética da realidade, onde a Alteridade sustenta o sentido da realidade. Eis, em pouquíssimas palavras, toda a imensa simplicidade e complexidade deste pensamento.
Ricardo Timm de Souza
1991/1999
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Fonte:
Sentido e Alteridade
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
DEZ ENSAIOS sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas
Porto Alegre - 2009
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
http://www.pucrs.br/edipucrs/sentidoealteridade/pag1.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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