Antropogênese:
A Concepção de Homem em Pierre Teilhard de Chardin
Apenas numa unificação pessoal com algo de pessoal no todo, com a personalidade do todo, poderemos ser fundamentalmente e inexaustivamente felizes. Tal é o último apelo do que se chama amor. Logo, a substancial alegria da vida encontra-se na consciência de que, através de tudo o que experimentamos, criamos, suportamos, descobrimos ou sofremos, em nós mesmos ou no próximo, em toda e qualquer linha possível, de vida ou de morte, aumentamos por degraus o crescimento da Alma ou Espírito universais[1].
Pierre Teilhard de Chardin
1. INTRODUÇÃO
Existem na história da cultura personalidades de grande relevância, cuja contribuição através de escritos e grandes feitos encetaram um novo rumo ou significado à marcha da humanidade. Há, pois, personalidades que, para além de escritos e feitos, marcam a história, fundamentalmente, pelo que são e pelo modo de viverem o cotidiano. Essa foi, em muitos sentidos, a complexa e poliédrica personalidade do padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin[2], afamado cientista, pesquisador incansável e profeta místico do nosso tempo.
Teilhard de Chardin exerce um fascínio especial sobre os seus leitores pela visão do homem que ele apresenta: uma visão dinâmica, evolutiva, colocada numa justa relação com a visão do universo. Este, pois, não é mais concebido como uma realidade estática, mas, conforme os dados mais recentes das ciências positivas, é uma realidade em movimento, em evolução.
O pensamento de Teilhard de Chardin, em seu conjunto de obras, forma uma concepção da totalidade do universo; i.é, mundo, homem, Deus. Trata-se da articulação das ciências empíricas, em especial a física, filosofia e teologia numa única ciência superior do fenômeno. O plano sobre o qual Teilhard de Chardin trabalha é exatamente este: o fenomênico, mas o fenômeno em sua totalidade.
Nas palavras de Teilhard de Chardin, ver e fazer ver.
No presente trabalho pretendo fazer ver a concepção de homem – e não mais que esta – possível de ser encontrada na principal obra de Teilhard Chardin, O Fenômeno humano[3]. Portanto, apresso-me em dizer: estarei fazendo um certo recorte que ajude a ver o homem dentro deste plano: mundo, homem, Deus. O recorte começa com a obra, estarei usando exclusivamente o livro citado, com particular atenção à terceira parte destinada a tratar o pensamento.
Outra advertência importante é quanto à necessidade de entender que Teilhard de Chardin não é um pensador de escritório, mas um filho do mundo, um peregrino cujo pensamento tem um correlato vivencial. Sua obra não é sistemática, mas, no conjunto, forma um sistema que é evidência do fenômeno. Nesse sentido, esforcei-me para reproduzir o modo de expressão teilhardiano – valor vivencial da experiência expressa em um discurso de linguagem coloquial em primeira pessoa.
A seqüência deste trabalho é: apresentação da mensagem teilhardiana seguida da compreensão particular que o jesuíta tem da evolução. O segundo capítulo retoma o primeiro, procurando evidenciar mais o modo de Teilhard de Chardin conceber o homem e, arrematando, pois, no terceiro capítulo, procuro inferir uma resposta – e basta que seja plausível – acerca da questão qual a concepção de homem em Teilhard de Chardin.
Sabendo da ousadia desse projeto, reservo espaço à possibilidade de não concluí-lo como gostaria e antecipo-me em apresentar minhas desculpas: se a concepção teilhardiana de homem não abrir novas perspectivas à pesquisa antropológica, a falha é toda minha, mas se as abrir, então, evidenciei a grandeza e a atualidade do pensamento deste companheiro jesuíta.
2. PRIMEIRO CAPÍTULO
- A mensagem teilhardiana e a lei da evolução
2.1 – A mensagem teilhardiana
Para bem compreender a situação de Teilhard de Chardin, o sentido de sua visão, é preciso levar em conta as coordenadas fundamentais que definem o espaço cultural e espiritual da construção teilhardiana. Em particular, interessa-me ver a situação em que se encontra o ser humano e o que propõe Teilhard de Chardin. E nesse sentido, sua concepção de homem é nova, não por ser uma visão que partiu do nada, mas por ter feito crescer, em um terreno que parecia estéril, uma floração nova de problemas e de perspectivas de respostas.
A difusão prodigiosa da mensagem teilhardiana mostra com irrefutável evidência que o jesuíta caminhou no sentido de uma das mais profundas aspirações do homem cristão contemporâneo no campo da cultura, da integração, numa visão coerente do mundo, a saber, o que é o homem e qual a posição que lhe é reservada no universo.
Teilhard de Chardin procurou fazer convergir a práxis científica e a representação da realidade que dela resulta com a visão cristã. Assim, ele proporcionou uma nova concepção de homem que decorre do encontro da mais vigorosa tradição espiritual do Ocidente e os instrumentos decisivos de interpretação e transformação do mundo; i.é, as ciências modernas, cuja utilização determinará, em medida crescente, o destino do homem ocidental e, já agora, de toda a humanidade.
Mas é preciso explicar: Teilhard de Chardin não pode transmitir sua mensagem, sua experiência, dentro da terminologia tradicional da filosofia que tinha aprendido, a filosofia escolástica já sistematizada e formalizada. Ele se viu, pois, forçado a criar uma terminologia que exprimisse seu pensamento e traduzisse sua experiência em uma nova linguagem. Daqui resulta muita das incompreensões que ele sofreu. Claro está, também, que não posso fazer nos limites destas páginas uma ampla comparação do pensamento de Teilhard de Chardin com qualquer forma consagrada de filosofia ou teologia, sem deturpar a ambas. Limito-me a dizer que ele percorreu a academia tradicional de filosofia, teologia, os meios científicos, os departamentos de geologia e paleontologia mais destacados de seu tempo e desse currículo fez emergir – fez ver – um novo conhecimento: a Hiperfísica[4].
Um conhecimento que se constitui numa grande física totalizante do saber humano, como pretendiam os gregos, unificando toda a visão do real. Esse saber preocupa-se mais com evidenciar o encaixe dos fenômenos, o seu mútuo entrançamento pelo qual constituem a trama, o tecido, o estofo do real.
Ele mesmo fala de seu objetivo que constitui também seu método no prólogo de O Fenômeno Humano:
Ver e Fazer Ver. Estas páginas representam um esforço de ver e fazer ver o que passa a ser e o que exige o Homem, quando o inserimos, todo inteiro e até o fim, no quadro das aparências... Ver: poder-se-ia dizer que toda vida consiste nisso – se não finalmente, ao menos essencialmente. Ver ou perecer eis a situação imposta pelo misterioso dom da existência a tudo quanto é elemento do Universo. Eis, por conseguinte, num grau superior, a condição humana[5].
Trata-se, pois, de chegar à construção de um discurso holístico da realidade por meio do diálogo entre ciências modernas, filosofia e teologia – posso falar mesmo, em termos mais atuais, de uma transdisciplinaridade. Teilhard de Chardin procurou fazer ver o Fenômeno que os fenômenos vão compondo na sua sucessiva aparição.
O ponto de partida do itinerário teilhardiano pode ser situado num terreno no qual se encontram a tradição do cosmologismo antigo[6] e a noção moderna de fenômeno. Com efeito, “a noção contemporânea de fenômeno não se opõe mais à de coisa em si: o fenômeno é o em si da coisa em sua manifestação, não constituindo apenas uma aparência da coisa, mas identificando-se com seu ser”[7].
O universo é fenômeno ou o que aparece, mas esse aparecer tem como correlato uma forma de visão cuja estrutura e alcance são definidos pelo saber científico. A hermenêutica desse modo peculiar de ver o universo constitui uma fenomenologia, não como a de Husserl, mas no sentido científico, propriamente teilhardiana. Teilhard de Chardin volta-se para um determinado fenômeno que lhe parece fundamental e a partir dele vai descrevendo círculos cada vez mais amplos até abranger toda a realidade que aparece, assim, estruturada em função do problema inicial.
O núcleo da mensagem teilhardiana é a busca de um sentido, uma direção, um fim, não só para a grande aventura cósmica de tudo o que existe, mas fundamentalmente para a aventura humana; isto é, um sentido absoluto e necessário. Todos os pesquisadores de Teilhard de Chardin são unânimes em dizer que o problema de Deus ocupa o coração e o cerne do seu pensamento. Contudo, não se trata do problema de Deus pura e simplesmente; antes, Teilhard de Chardin concebe a questão dentro de uma malha de outras questões cuja origem se encontra na “revolução dos tempos modernos”[8].
Foi ela que motivou a interrogação central das suas cogitações: desde que tomamos consciência da profunda revolução espiritual sofrida pela humanidade moderna, revolução espiritual intrinsecamente ligada a uma revolução material, surge a irresistível interrogação: tem sentido para o homem buscar uma direção que aponte Deus dentro do contexto desta grande “revolução dos tempos modernos”?
Para melhor entender o problema é importante situar a questão da seguinte forma: para o homem antigo Deus coroava a ordem do universo, como uma espécie de soberano, presidindo um mundo organizado nos seus mínimos pormenores. Esse mundo, porém, era representado por uma imagem topográfica dentro de uma concepção marcadamente espacial: coroando-a, Deus se mostrava situado numa região superior.
A “revolução dos tempos modernos”, porém, aboliu esse esquema espacial e proclamou, pelas ciências, que o princípio fundamental de explicação da realidade não é a ordem estática das coisas, mas a sua gênese, o seu nascimento. Destarte, veio substituir a visão espacial do mundo uma outra visão, essa em que o tempo se mostra como dimensão privilegiada. Surge então o problema: se a ordem espacial das coisas não apresenta mais a estabilidade de que se revestia na concepção antiga, restará ainda algum lugar para Deus?
Ou Deus teria alguma função de inteligibilidade num mundo evolutivo, no qual as coisas se explicam não pela sua posição, mas pelo seu aparecimento, vida e morte? Teilhard de Chardin não ignora o fato de que essa mudança na forma de conceber o cosmos resultou numa mudança da forma de conceber o homem. Interessa-me fazer ver como Teilhard de Chardin pensou o homem, entender como ele conjugou transcendência e imanência, espírito e matéria, origem e finalismo.
E, aqui, ele se vê na contramão da história: pensadores antigos e medievais, no mais das vezes, viram o homem como um ser pronto, acabado, determinado por forças extranaturais, tal qual viam o cosmos. Na atualidade o homem é visto como pura natureza, mera biologia. Sugeriu-se que houvesse a interpretação do código genético humano, o homem seria completamente conhecido. Essa sugestão não se constata porque a informação acerca da finalização do Projeto Genoma (Abril de 2003) que foi noticiada por vários meios de comunicação como sendo a decifração do código genético humano está apenas parcialmente correta.
Está correta enquanto agora se conhece toda a seqüência de nucleotídeos dos cromossomos humanos e genes de cromossomos; incorreta enquanto ignora a existência de altas taxas de mutação nas bases protéicas, os dados anteriores dizem respeito a códons do DNA e a aminoácidos nas proteínas; decifrou-se genes dos cromossomos, mas não as proteínas que eles codificam[9]. A respeito da problemática do homem na atualidade, Martin Heidegger, expoente máximo da análise existencial do homem, exprimiu-se da seguinte forma:
Nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o Homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu conhecimento acerca do Homem de modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa, o que é o Homem. Nunca o Homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente[10].
Heidegger diz, portanto, que as informações que as ciências nos oferecem acerca do homem são válidas e preciosas, contudo, não favorecem a compreensão holística do homem, a compreensão acerca do que é o homem. Daí, poder-se concluir que, não convém e nem mesmo resultaria verdadeiro formular uma concepção do homem puramente baseada nas constatações científicas. Mas, tampouco resultaria verdadeiro pensar o homem filosoficamente sem considerar a contribuição das ciências.
Creio que Teilhard de Chardin foi quem melhor entendeu essa necessidade de conjugação e melhor desenvolveu um pensamento pautado pela reflexão filosófica e investigação científica.
Já mencionei que a intenção primeira de Teilhard de Chardin é fazer reconciliar o cristianismo com as ciências modernas. Reconciliar porque a “revolução dos tempos modernos” colocou as respostas da Religião em um plano – o mítico – e as da ciência em outro – o do mundo real. Teilhard de Chardin tentará chegar às verdades da Religião por meios das ciências, mas não às ciências como eram mecanicamente concebidas no melhor sentido positivista. Ele também tem críticas às ciências e, nesse sentido, afirma:
De fato, temos que confessar, a Ciência não lhe (o homem) encontrou ainda um lugar nas suas representações do Universo. A Física chegou a circunscrever provisoriamente o mundo do átomo. A Biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada na Física e na Biologia a Antropologia explica, por sua vez, mas ou menos a estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez reunidos todos os traços, o retrato, manifestamente, não corresponde à realidade. O Homem, tal como a Ciência o consegue restituir é um animal como os outros (...) Ora, a julgar pelos resultados biológicos do seu aparecimento, não constitui ele precisamente algo totalmente diferente?[11].
Aqui estão as pilastras que sustentam a reflexão teilhardiana: a transdisciplinaridade, teologia, filosofia e as ciências positivas, em especial a física, todas sintetizadas na hiperfísica. Se a física circunscreveu o universo sem o homem e o homem sem o universo, Teilhard de Chardin quer agora fazer ver o homem circunscrito no universo; ou seja, fazer ver o homem no universo enquanto lar do homem, enquanto lugar do homem na existência – o universo como existenciário, i.é, o lugar da existência do homem. Com o surgimento do homem o universo muda de pele, ganha uma alma. Estamos prestes a ver emergir uma nova concepção de homem, concepção segundo a qual:
“O homem não é maiso centro estático do mundo,como por muito tempo se acreditou, mas eixo e flecha da Evolução –, o que é muito mais belo”[12].
Passo então ao próximo tema: a lei da evolução. Entretanto antecipo-me em dizer que não se tratará de ver exaustivamente todo o pensamento teilhardiano acerca da evolução, mas tão-somente as linhas gerais que regem o processo, bem como enumerar os pontos que servem de base para aquilo que ouso chamar concepção teilhardiana de ser humano.
2.2 – A lei da evolução
A partir da categoria da evolução, Teilhard de Chardin construiu um pensamento filosófico e antropológico que merece atenção em nossos dias. Ele edificou um pensamento sólido sobre o homem que se pautou na noção de que o processo evolutivo possui um sentido.
Antes, porém, de apresentar a antropologia teilhardiana faz-se mister elucidar essa noção da evolução. Por evolução entende-se aqui a teoria segundo a qual todos os seres derivam de outros seres mais simples – do átomo, a molécula e o conjunto de molécula; deste a célula, então, o organismo vivo que é completamente diferente dos anteriores – que os precederam no tempo. Os mecanismos da evolução foram objeto de teorias diversas entre as quais avultam as de J. B. C. de Lamarck (1744-1829), C. Darwin (1809-1882) e Hugo de Vries (1848-1935).
Diferente do que pensaram os cientistas supracitados, para Teilhard de Chardin faz-se evolução sobre um duplo plano biológico e psíquico, com um paralelismo de acordo com uma lei por ele chamada: Lei de Complexidade-Consciência[13]. Nesse sentido, é preciso distinguir três fatores em relação à evolução[14]: a) o fato mesmo;
b) o mecanismo; c) o sentido.
No que se refere ao fato da evolução, não tem havido problemas quanto à interpretação. Também o mecanismo, embora existam mais de uma teoria – dentre as quais a Teoria Sintética, ganha a maioria dos cientistas – não causa demasiadas controvérsias. As divergências surgem quanto ao sentido.
Segundo Teilhard de Chardin, uma expansão original deu início a um processo que passa pela formação da matéria, o surgimento da vida, a condensação do pensamento e a emersão da reflexão – respectivamente: cosmogênese, biogênese, psicogênese, noogênese.
Fundamentalmente, ele está nos dizendo que a evolução sugere um processo crescente ascensional que hoje abarca todas as dimensões da realidade e o marco de referência desse processo, pelo qual decifrará o sentido da evolução: é a Lei de complexidade-consciência. Em termos bastante simples esta lei significa que o tecido do universo, a trama ou estofo evolui criando formas cada vez mais complexas.
A evolução parte da matéria simples – poeira espacial proveniente da grande expansão – que se complexificando forma estruturas cada vez maiores. Maiores não apenas em tamanho, mas (sob pena de não se entender nada de Teilhard de Chardin) também em organização. Pela complexificação uma molécula é mais organizada que um átomo; uma célula mais organizada que uma molécula; um organismo pluricelular muito mais organizado que um unicelular. Assim, complexidade não é heterogeneidade, mas heterogeneidade organizada[15].
Mas a complexificação é apenas uma vertente, uma dimensão da lei que rege a evolução. A outra dimensão é a conscientização, interiorização psíquica. Quer dizer, à medida que o estofo do universo se complexifica – dado material, objetivo – simultaneamente emerge de dentro dele o fenômeno do pensamento – dado espiritual, subjetivo.
Teilhard de Chardin parte da seguinte dedução: é inegável o fato da complexificação da matéria, uma vez que com um pouco de complexificação emergiu a vida na matéria, parece razoável que, com um pouco mais de complexificação emerja o pensamento.
O padre Dalle Nogare explica a tese teilhardiana assim:
Teilhard prova sua posição assim: em virtude da unidade fundamental do Universo, qualquer propriedade que apareça na matéria, a qualquer nível de desenvolvimento, é propriedade que acompanha a matéria onde quer que seja, apesar de não se poder constatar experimentalmente em todos os níveis[16].
Uma vez que não se pode negar a presença de psiquismo no reino animal e extraordinariamente nos seres humanos, é plausível concluir que toda matéria esteja permeada de psiquismo, ainda que não se possa medir. Daqui a revolucionária conclusão teilhardiana, “o estofo do Universo tem uma face interna e outra externa; isto é, ele é bifacial por estrutura, coextensivo ao Fora das coisas, existe um Dentro das coisas”[17].
Mas vamos ao texto conferir o que diz o padre Teilhard de Chardin:
A concentração de uma consciência, pode-se dizer, varia em razão inversa da simplicidade do composto material que ela forra. Ou ainda: uma consciência é tanto mais perfeita quanto mais rico mais bem organizado é o edifício material que ela forra. Perfeição espiritual (ou centreidade consciente) e síntese material (ou complexidade) não são senão as duas faces ou partes ligadas de um mesmo fenômeno[18].
Concluído está que todas as coisas possuem um dentro e um fora, uma consciência, uma espontaneidade, em grau diverso e proporcional a complexificação do ser, proporcional à sua organização material.
Cabe aqui mencionar que Teilhard de Chardin dá ao termo consciência um sentido que ultrapassa a acepção corrente.
A consciência refletida ou reflexiva
está presente, exclusivamente, no homem;
no animal há uma espécie de consciência de percepção
– consciência orgânica.
O psiquismo existe até mesmo no nível da matéria inerte em que se exprime em força radical e é fator de integração e de centração. Psiquismo na matéria, consciência orgânica no animal e reflexão (reflexibilidade) no homem são, para Teilhard de Chardin, um único e mesmo fenômeno que se desenvolve no curso da evolução, mas cujos estágios são separados por mutações sucessivas – diz de uma gradação decorrente de metamorfoses.
Até aqui falei da mensagem teilhardiana, de como Teilhard de Chardin elaborou uma terminologia e um saber próprio, baseado numa transdisciplinaridade de caráter fenomenológico científico para transmitir sua mensagem. Falei também da composição inicial do universo e de como a lei de complexidade-consciência rege esse fenômeno – a gênese. Não falei ainda, diretamente, da concepção teilhardiana de homem porque tentei explicar primeiro como, para Teilhard de Chardin, a “revolução dos tempos modernos” mudou a concepção de cosmos da sociedade científica; o que desencadeou uma cisão entre o pensamento científico e a visão religiosa.
Por isso, procurei mostrar a intenção conciliadora de Teilhard de Chardin. Cabe, pois, agora apresentar as linhas gerais do movimento da gênese, mostrando como o homem está ligado a esse processo e ao mesmo tempo identificar qual é o lugar ocupado pelo homem nesse universo que está nascendo.
– O sentido da evolução e o terceiro infinito
3.1 – O sentido da evolução
Na altura em que interrompi o texto no primeiro capítulo ficou claro que a noção teilhardiana de evolução equivale a uma lei dos fenômenos, uma convergência temporal típica da realidade em estado de gênese contínua. Falei de uma convergência que vai da poeira cósmica à matéria, começando com a formação dos átomos; desses às moléculas e dessas aos vírus, seguindo células, plantas, animais e, por último, o homem. Crescimento não apenas material, mas também psíquico. Teilhard de Chardin vê nesse processo um sentido ascensional crescente.
A evolução é, assim, um processo contínuo que atinge, em certo momento, o espírito humano. A não-vida gerou a vida. Da matéria inorgânica surgiu uma nova ordem, a biosfera. No entanto, o processo não terminou por aí. O aparecimento da espécie humana que ocorreu graças ao lampejo da consciência auto-reflexiva, é uma prova de que a lei da paralelidade complexidade-consciência, que fundamenta o processo evolutivo, desemboca no infinito; ou seja: a evolução continua.
Considerando que a espécie humana representa a própria evolução em marcha, posso concluir que o homem é o que há de mais complexo no processo evolutivo e, simultaneamente, o que há de mais consciente. Segundo a proposta teilhardiana é possível definir três momentos na história de nosso planeta. Num primeiro momento, ocorre a cosmogênese; no segundo, da não-vida surge a vida, que a partir da lei da complexidade-consciência e do desenvolvimento de variadas formas de vida, dá origem aos reinos vegetal e animal: é a biogênese; o momento em que a citada lei, que constitui a base do processo evolutivo, se manifestou no despertar da auto-reflexão do homem, unindo corpo e espírito: noogênese.
A partir de tal proposta, a orientação para o sentido de que falei acima, é algo próprio do espírito humano. As três etapas demonstram que a evolução, até agora, tem se orientado e tem seu sentido no homem. Tais considerações serão tratadas no terceiro capítulo dedicado à antropogênese, etapa não concluída – ressalto – e situada entre a biogênese e a noogênese, dentro da perspectiva evolucionista de Teilhard de Chardin. Por enquanto continuarei tratando do sentido da evolução dentro do pensamento teilhardiano.
O grau de conscientização, de interiorização psíquica das coisas está na proporção direta de seu grau de complexificação material. Quanto mais complexo, tanto mais conscientizado. Daqui emerge uma outra grande intuição de Teilhard de Chardin. A física comprova que cada infinito do universo é caracterizado por fenômenos peculiares. Por exemplo, o aparecimento e o desaparecimento do quantum no mundo subatômico ou a relatividade do espaço na imensidão do universo[19].
Admitidos os fenômenos peculiares ao infinitamente pequeno ou ínfimo e ao infinitamente grande ou imenso; convém perguntar: qual será o efeito específico do infinitamente complexo? Teilhard de Chardin afirma que vida, psiquismo, reflexão são efeitos peculiares a complexificação da matéria. Com efeito, essa matéria na qual emerge a vida é uma entidade composta; isto é, integrante de dois termos, simultaneamente irredutíveis um ao outro, ontologicamente inseparáveis e sujeitos a variações correlatas.
Cumpre, desde já, observar que, no pensamento teilhardiano, é altamente significativa a presença de entidades pares, tais como, matéria-espirito, ser-união, universal-pessoal, entre outras. Não se trata de composições verbais a camuflar dualidades irresolúveis de tempos antigos, nem meros neologismos: são noções inéditas, termos originais, idéias ou conceitos inaugurais de um universo visto de modo novo.
Esta tese possibilita, não só uma compreensão coerente dessa camada do mundo na qual nos movemos, a saber, a biosfera, como também permite eliminar qualquer forma de dualismo: matéria e vida; corpo e mente; vida e espírito. Por que coloca tudo em um único e mesmo rumo e sentido. Tudo depende de tudo, como numa teia.
Com efeito, se estudo o universo, a terra, essa camada denominada geosfera sem levar em conta a vida e a reflexão nela presentes é inevitável ver a terra como um planeta insignificante para a compreensão do universo. Isso porque a terra é algo de ínfimo e perdido na imensidão espacial. Não tem grande significação do ponto de vista astrofísico, sendo um pequeno planeta ornado de um único satélite, girando em torno de um sol em um universo onde pode haver milhões.
Entretanto, se considero o fenômeno vida, então, a situação se converte, completamente, porque a vida apresenta propriedades absolutamente novas e diferentes das propriedades físico-químicas da matéria inorgânica. Se ousar dar um outro passo e considerar o fenômeno da reflexão, então, vejo emergir uma verdadeira revolução no universo porque noto um avanço contínuo em complexidade e consciência o que coloca o homem na ponta da lança do processo evolutivo: “O Homem constituindo, por si só, a mais nova, a mais fresca, a mais complicada, a mais matizada das camadas sucessivas da Vida”[20].
Sempre segundo Teilhard de Chardin, colocando a hipótese do sentido ascensional crescente da evolução, tudo no universo se torna mais claro, mais harmonioso, mais coerente. Uma ponte, antes de tudo, é projetada; uma conexão natural é estabelecida entre mundos até agora considerados opostos, separados: o da física e o da psicologia, o da matéria e o do espírito. Não que essa conexão torne idênticos espírito e matéria, mas no sentido de que se radica organicamente, fisicamente, no mesmo processo cósmico que envolve tudo.
Num universo evolutivo que se vai fazendo, na direção da flecha do tempo – em cuja ponta está o homem – por complexidade sempre maior, todo ser é, de certo modo, síntese dos que lhe antecederam e lhe são inferiores. Nesse sentido, posso dizer que cada ser tomado hiperfisicamente é composição superadora e inovadora de seus antecessores físicos, nele transformados.
Teilhard de Chardin define com essa hipótese[21] a continuidade e descontinuidade com que ocorre o processo evolutivo: “... acaba de se revelar à natureza do passo da reflexão. Mudança de estado, em primeiro lugar. Mas, em seguida, e por isso mesmo, começo de uma outra espécie de vida – precisamente essa vida interior...”[22], ou retomando o que já fora citado: “... precisamente em virtude dessa permanência na operação, é fatal, do ponto de vista da física, que certos saltos transformem bruscamente o sujeito submetido à operação”.
Teilhard de Chardin apresenta o sentido ascensional crescente da evolução e o enriquecimento que esse processo garante aos seres posteriores; ou seja, quanto mais tardio o surgimento de uma espécie, mas complexa e consciente essa espécie se revela. Dado que a espécie humana aparece por último na ordem dos seres, ela constitui o que há de mais elaborado no planeta – é forçoso pensar. Dessa posição peculiar e especial emerge a antropologia evolutiva teilhardiana: o homem como o mais complexo e consciente dos seres. Passo agora a ver exatamente a questão: ‘o mais complexo-consciente dos seres’.
3.2 – O terceiro infinito
A Física descobriu – falara Pascal – dois infinitos no universo, o infinitamente grande ou imenso e o infinitamente pequeno ou ínfimo. Com base no processo de complexificação-conscientização, Teilhard de Chardin irá apresentar um novo infinito: o infinitamente complexo-consciente.
Trata-se do primado do homem. Considerando o universo um sistema orgânico dinâmico em vias de complexificação material e interiorização psíquica é dado ver o homem, na linguagem teilhardiana, como ‘eixo e flecha da evolução’. O homem não é um acidente fortuito do acaso, mas, ao contrário, o ponto para o qual a evolução caminhou até agora.
Não só dois, mas três infinitos no universo: imenso, ínfimo e complexo-consciente: isto é, o espaço sideral: das galáxias, estrelas, sistemas solares; o espaço subatômico: dos quantum, dos elétrons; e o mundo humano: do pensamento, da reflexão (a noosfera; ou seja, esfera da qual só nós participamos, a nenhum outro ser é dado nela viver).
O homem entendido como ponto atual da evolução
constitui o terceiro infinito do universo.
A fundamentação dessa afirmação é a curvatura do processo complexificação-conscientização: o universo estende sua expansão ao infinito, não só em dois sentidos, mas em três. Esse terceiro sentido estabelece a ponte projetada entre os mundos e evidencia a unidade do real.
O homem representa mesmo uma novidade para o mundo, não só para o mundo material, mas, sobretudo, para o mundo da vida. Com efeito, até aqui a física e a biologia têm trabalhado de forma a pensar o homem a partir de um único pressuposto, a saber, o homem como mais um animal dentro do reino animal – ainda que seja dotado de características particulares, só mais um entre outros –, estudando-o sem considerar o processo evolutivo em sua continuidade e em sua descontinuidade. Nesse sentido, Teilhard de Chardin observa que o processo evolutivo, embora seja contínuo, ascensional crescente é também marcado por verdadeiros saltos, nítidas descontinuidades. O aparecimento da espécie humana representa um desses saltos – crescimento quantitativo e ascensão qualitativa.
Caracterizado por uma singularidade exclusiva, o homem na concepção teilhardiana representa uma novidade para o mundo e é Teilhard de Chardin quem o afirma:
Explode a desproporção que falseia toda classificação do mundo vivo em que o Homem não figura logicamente senão como gênero novo ou uma nova família. Erro de perspectiva que desfigura e descoroa o Fenômeno universal! Para dar ao Homem o seu verdadeiro lugar na Natureza, não basta abrir nos quadros da Sistemática uma seção suplementar, - mesmo uma Ordem, mesmo um Ramo a mais... Pela hominização[23] a despeito das insignificâncias do salto anatômico, é uma Idade nova que começa. A Terra muda de pele. Melhor ainda, encontra a sua alma[24].
Até aqui, poder-se-ia dizer que pouco ou nada separa o pensamento de Teilhard de Chardin de um cientificismo antropológico materialista, entretanto, o pensamento teilhardiano está longe de reduzir ou segmentar a natureza humana ao materialismo. Retomando o conceito de evolução, eu dizia que esta caminha para formas cada vez mais complexas e conscientes, porém, ao contrário do que se poderia pensar, esse processo não é uma marcha gradual, contínua e lenta. A evolução na concepção teilhardiana passa por momentos revolucionários, dá verdadeiros saltos qualitativos.
O surgimento da vida sobre a terra pode ser considerado um salto, uma elevação sobre tudo o que existia antes da vida. Equivale dizer que a vida representa uma descontinuidade dentro da continuidade do processo evolutivo, um momento de crise de primeira grandeza qualitativa – subiu-se um novo degrau na escala da evolução.
Um salto semelhante foi dado quando da emersão do pensamento reflexivo, da consciência. Algo de inteiramente novo, de extraordinário e inesperado aconteceu sobre a terra quando a primeira luz de inteligência brilhou no cérebro humano. Um hiato de imensa distância se abriu entre o passado e o presente: o pensamento vem por evolução da matéria, mas não se explica pela matéria. Segundo Teilhard de Chardin:
A mudança de estado biológico que leva ao despertar do pensamento não corresponde simplesmente a um ponto crítico atravessado pelo indivíduo, ou mesmo a Espécie. Mais vasta do que isso, ela afeta a própria Vida na sua totalidade orgânica, e, por conseqüência, assinala uma transformação que afeta o estado do planeta inteiro[25].
Teilhard de Chardin quer fazer ver que o aparecimento da espécie humana com seu cérebro super desenvolvido, sua capacidade de reflexão ou consciência de si mesma, de saber que se sabe, evidencia a emersão do espírito sobre a superfície da terra. O fenômeno humano é fenômeno espiritual, não nasce senão de uma profunda transformação de tudo aquilo que o precedeu e preparou, mas ao aparecer apresenta características inteiramente novas. O núcleo a partir do qual se expande essa novidade é o espírito, é a dimensão espiritual da espécie humana, dimensão impregnada de profundidade. Núcleo que já estava presente em tudo o que antecedeu o surgimento do ser humano, mas de forma muito opaca, imperceptível mesmo.
Posso deduzir do pensamento teilhardiano que: o fenômeno humano não é apenas constituído pela seqüência de complexificação material e interiorização psíquica, mas também por manifestação do espírito. O ser humano é composto por três dimensões fundamentais, existem outras dimensões, mas essas três compreendem as outras porque se encontram ligadas desde o momento da hominização. Trata-se da: exterioridade, a relação material que o homem estabelece com o mundo que o cerca; a interioridade, diz da relação psíquica que o homem desenvolve consigo mesmo e com seu semelhante; e a profundidade, refere-se àquelas relações do homem que respondem ou apontam para âmbitos de grande significado para si mesmo.
Por mais íntima que seja a ligação entre o homem e as formas inferiores de vida, por mais clara e importante que seja a continuidade entre a vida animal e a vida humana, a consideração objetiva do fenômeno humano deve reconhecer uma descontinuidade maior, uma ruptura, uma outra forma de vida. Tem início com o homem o fenômeno da vida no espírito; i.é, não apenas viver, mas saber que se vive.
Todavia, cumpre esclarecer que para Teilhard de Chardin, o fenômeno espiritual não é uma espécie de epifenômeno[26], é antes de tudo um fenômeno da mudança cósmica de estado. A matéria se interioriza enquanto matéria, orientada pela lei de complexidade-consciência e movida pela natureza que lhe é constitutiva por força de sua unidade profunda. O movimento cósmico por excelência é, simultaneamente, a complexificação-conscientização: um pouco de complexificação, a vida; um pouco mais, o psiquismo; ainda um pouco mais, o espírito.
Assim, Teilhard de Chardin muda a compreensão da relação espírito e matéria. Em um cosmo estático, espírito e matéria tendem a ser considerados apenas duas categorias justapostas, entre as quais ponte alguma pode ser lançada. Chegamos a um dualismo de fundo, uma matéria separada de um espírito que também está separado da matéria. Em um universo em vias de expansão, cosmogênese, de tipo convergente, sentido crescente ascensional, a gênese do espírito necessita da organização da matéria.
Entre os dois elementos reina uma relação comparável à que une os termos de um todo – por exemplo, o que o esquerdo significa para o direito e vice-versa. Para que apareça espírito é preciso que haja matéria organizada, porque existe um laço entre a quantidade de matéria organizada e o grau de consciência.
Eis o que satisfaz o pensamento humano e sua necessidade de unidade: espírito e matéria são duas faces ou fases de uma mesma realidade, e se quero mais espírito careço de mais organização material. No plano dos fenômenos – e é esse o plano sobre o qual estou trabalhando –, da observação concreta, o espírito aparece em função da matéria. E isto não é materialismo.
Em estado de cosmos; ou seja, numa visão imobilista, o espírito é uma forma sem conteúdo, um brilho da matéria, porém, sob o ponto de vista da cosmogênese, nada me impede de dizer que a superestrutura consciente – espírito – desabrocha a partir de dentro da infra-estrutura material. O materialista poderia afirmar que o sistema teilhardiano se sustenta, em sua conclusão, sobre a matéria. No entanto, para o espiritualismo teilhardiano, o que subsiste como essencial é à parte espiritualizada, o cume é o espiritual: numa via progressiva interessa o ponto final, o ponto ômega, que no caso do pensamento teilhardiano é a espiritualização crescente e ascendente da matéria à medida que se organiza enquanto matéria.
Em suma, de um modo não pouco metafísico, mas, sobretudo, fenomenológico e científico, Teilhard de Chardin recusa qualquer dualismo e todo maniqueísmo em sua compreensão da realidade. A realidade, repito, é um todo orgânico e neste todo tudo se sustenta sobre tudo. Tudo depende de tudo – como numa teia.
Os espiritualistas têm razão quando defendem tão energicamente uma certa transcendência do Homem, em relação ao resto da Natureza. Os materialistas também não estão errados quando sustentam que o Homem é apenas mais um termo na série das formas animais. Neste caso, como em tantos outros, as duas evidências antitéticas se resolvem num movimento, desde que, nesse movimento se reserve à parte essencial ao fenômeno, tão altamente natural, de ‘mudança de estado’... Sim, da célula ao animal pensante, assim como do átomo à célula, um mesmo processo (aquecimento ou concentração psíquica) prossegue sem interrupção, sempre no mesmo sentido. Mas, precisamente em virtude dessa permanência na operação, é fatal, do ponto de vista da Física, que certos saltos transformem bruscamente o sujeito submetido à operação[27].
Garantido o espaço do fenômeno e o espaço do processo, é possível ver a unidade do real na linha contínua dessa caminhada cujos saltos representam uma superação que compreende as partes superadas. Paulatinamente, cosmogênese, seguindo, biogênese e noogênese. Um só processo, continuidade, marcado por saltos qualitativos, descontinuidade, que hoje culminam no ser humano.
Sintetizando este segundo capítulo, indiquei que o sentido da evolução é a espiritualização da matéria e que até aqui a evolução caminhou no sentido do surgimento do ser humano. Este constitui, pois, o terceiro infinito do universo; i.é, o infinitamente complexo-consciente. Claro está que não me posso demorar mais nesses temas (embora haja ainda muito o que se explicar) do pensamento teilhardiano, dado os limites de minha pesquisa. Passo agora à terceira parte deste trabalho destinada à antropogênese, aqui entendida como a concepção de homem em Teilhard de Chardin.
– Consciência reflexiva, transcendência e imanência
Muito do que já foi dito nos capítulos anteriores desenhou, por assim dizer, uma imagem teilhardiana de homem. Trato agora de sintetizar essas informações e fazer algumas inferências que me parecem plausíveis.
Tendo chegado ao homem a evolução não parou nele, ela se transmuda profundamente: não caminha mais no sentido do surgimento do homem, mas agora se apresenta encarnada nele. O próprio ser humano é evolução; é itinerário rumo à união, à socialização – que pode ser resumido no termo: espiritualização. Sempre segundo Teilhard de Chardin:
A Humanidade trabalhando, sob o impulso de um instinto obscuro, para transbordar ao redor de seu ponto de emersão até submergir a Terra.
O Pensamento fazendo-se Número para conquistar todo o espaço habitável, acima de qualquer outra forma da Vida.
Em outras palavras, o Espírito tecendo e desdobrando as camadas da Noosfera.
Nesse esforço de multiplicação e de expansão organizada, resumem-se e exprimem-se finalmente, para quem sabe ver, toda a Pré-História e toda a História, desde as origens até os nossos dias[28].
A hominização evidencia o estágio
em que se identificam, mas não se confundem
indiferentemente, a evolução e o ser humano.
Neste modo de ver, o homem é ápice da evolução que não terminou nele, ela dá continuidade ao seu itinerário até o ponto máximo de espiritualização da matéria, convencionalmente, chamado por Teilhard de Chardin de ponto ômega[29]. Trata-se de uma espécie de centro definido pela última convergência do espírito sobre si mesmo, o ponto natural de convergência da humanidade e, por meio da humanidade, de todo o universo; em linguagem religiosa, o encontro definitivo da humanidade com o Deus de Jesus Cristo; a letra grega ômega sugere conclusão, arremate.
Com o aparecimento do terceiro infinito a evolução adquire conhecimento de si mesma, nas palavras do jesuíta francês, ganha uma alma, o que coloca o homem na posição de responsável pelo futuro da marcha cósmica em direção ao ômega.
Mas cabe então perguntar, e tenho o colocado diversas vezes, qual a concepção de homem que encontramos nos meandros do pensamento de Pierre Teilhard de Chardin?
A concepção de homem de Teilhard de Chardin, segundo Emile Rideau[30], se expande a partir de dois caracteres primordiais, distintos e complementares. O primeiro, a transcendência do homem em relação ao universo e, simultaneamente, a sua ligação ao mundo; a estrutura psíquica dotada de consciência reflexiva constitui o segundo aspecto.
A fenomenologia que evidenciou o sentido crescente ascensional da evolução evidenciou também a emersão da consciência reflexiva, atributo exclusivo do ser humano. E, falar da consciência do homem é falar simultaneamente de sua transcendência e imanência.
O homem sabe que sabe; sabe de si mesmo e sabe do meio no qual se move. Pode, pois, o homem agir acerca de si mesmo e sobre o seu ambiente; pode construir, derrubar, reconstruir; pode pensar novos rumos, novos caminhos, alternativas. Pode dominar o real:
Mas observemos um pouco melhor à nossa volta: esse dilúvio súbito de cerebralidade: essa invasão biológica de um novo tipo animal que elimina ou subjuga gradualmente toda forma de vida que não seja humana; essa maré irresistível de campos e de fabricas; esse imenso edifício crescente de matéria e de idéias[31].
O animal sabe – em certo sentido, pode-se dizer –, mas não sabe que sabe, conseqüentemente, está fechado para ele todo um domínio do real – no qual o homem se move. O real não lhe pertence, não lhe é dado.
Assim, enquanto que para o ser dotado de consciência reflexiva, o real se apresenta como um horizonte de possibilidades, para aquele sem reflexibilidade aparece como um fosso intransponível.
A consciência reflexiva possui, portanto, uma ligação bastante estreita com a transcendência humana para Teilhard de Chardin. Primordialmente, a transcendência se manifesta na ação humana e a reflexibilidade é um ato peculiar, exclusivo mesmo, do homem que é capaz de ultrapassar a animalidade – é um fenômeno espiritual, como já mencionei.
O ser reflexivo, precisamente em virtude de sua inflexão sobre si mesmo, torna-se de repente susceptível de se desenvolver numa esfera nova. Na realidade, é um outro mundo que nasce. Abstração, lógica, opções e invenções ponderadas, matemáticas, arte, percepção calculada do espaço e da duração, ansiedades e sonhos de amor... Todas essas atividades da vida interior nada mais são que a efervescência do centro recém-formado explodindo sobre si mesmo[32].
Além de considerar que a reflexibilidade representa um salto qualitativo do processo evolutivo, Teilhard de Chardin aponta para a ideia de que esta possui um dinamismo próprio, a saber:
“1) de tudo centrar parcialmente a sua volta;
2) de poder centrar-se cada vez mais sobre si mesma;
3) de ser levada, por essa própria Centração, a se reunir a todos os outros centros que a rodeiam”[33]. Essa tríplice propriedade da consciência permitiu a Teilhard de Chardin formular o conceito de noosfera; i.é, o centro recém-formado referido na citação acima. Segundo o jesuíta:
Exatamente tão extensiva, mas muito mais coerente ainda, como veremos, do que todas as camadas precedentes, é verdadeiramente uma camada nova, a ‘camada pensante’, que, após ter germinado nos fins do Terciário, se expande desde então por cima do mundo das Plantas e dos animais: fora e acima da Biosfera, uma Noosfera[34].
Noosfera é a camada da vida reflexiva sobre a terra, uma nova esfera, um todo específico e orgânico que, embora distinto, engloba a biosfera – a esfera da vida não-reflexiva – e a geosfera – a esfera do corpo sólido da terra, pré-vivo em linguagem teilhardiana.
Esta, a noosfera, esfera na qual o homem se move,
é a parte do real que lhe cabe, o seu lugar no universo, o seu existenciário
– mas, é importante destacar que também esta camada
está em expansão junto com o universo.
Como se trata de uma esfera e, considerando-se que o movimento sobre uma esfera é circular, pode-se falar de um encontro da humanidade, uma socialização dos seres humanos pela noosfera; i.é, a terceira propriedade da consciência, a capacidade de se reunir a todos os outros centros que a rodeiam. Por isso, Teilhard de Chardin pode afirma que agora o processo evolutivo tende na direção de sintetizar e constituir um todo espiritual – reunião de todos as raças e civilizações humanas[35].
A esse ambiente no qual se move – a noosfera, e lembro que ela compreende também a biosfera e a geosfera – o ser humano se liga e transcende simultaneamente. O homem que age, que ultrapassa os limites da animalidade e as determinações da matéria não seria possível sem mundo. O homem é um ser histórico, temporal, obedece à lei de complexidade-consciência e, por isso, intimamente ligado ao mundo. Mas essa ligação longe de constituir uma limitação, mostra, faz ver que o homem se encontra em conjunção com a totalidade do universo, comunga da existência de todas as coisas. A observação do processo evolutivo revela esse dado: há no homem a convergência do todo.
No sistema teilhardiano, se é que posso usar este termo, transcendência e imanência são dimensões de uma única e mesma realidade. São dimensões que se perpassam, se entrecruzam e que em alguns momentos se apresentam antepostas, assim como o esquerdo se antepõe ao direito, o dentro ao fora, o acima ao abaixo. Todavia, como o esquerdo que se antepõe e, simultaneamente, completa o direto e, assim também, o dentro completa o fora e o acima se antepõe e completa o abaixo, do mesmo modo transcendência e imanência. Num primeiro momento essas dimensões humanas se antepõem, mas quando observadas sob o prisma do processo evolutivo elas se complementam porque são dimensões da única e mesma realidade para a qual tudo converge; i.é, o homem.
Que é, então, o homem
e o que quer dizer Teilhard de Chardin
ao chamá-lo, em citações anteriores,
de alma da terra e eixo e flecha da evolução?
Creio que ele está dizendo que: o homem é um ser que, consciente de si mesmo e do meio no qual se move e dotado de uma energia profunda, pode caminhar em direção a um fim, o ômega; é também um ser de dimensões: transcendente no que se relaciona à sua profundidade; consciente no que se refere à interioridade; imanente no que diz da exterioridade. Numa palavra, eu digo que, na concepção teilhardiana, o homem é o existente; isto é, aquele que por excelência existe, isto porque sabe que existe e, embora Teilhard de Chardin não tenha usado especificamente esse termo, creio que é isso exatamente que ele quer dizer ao afirmar:
Se, como decorre do que foi dito, é o fato de se encontrar ‘refletido’ que constitui o ser verdadeiramente ‘inteligente’, podemos nós duvidar de que a inteligência seja o apanágio evolutivo do Homem e só do Homem? E podemos nós, por conseguinte, hesitar em reconhecer, por não sei que falsa modéstia, que sua posse representa para o Homem um avanço radical em relação a Vida antes dele?[36].
Em relação a tudo mais que existe, por ser reflexivo, o homem não é apenas diferente, mas é outro. A vida biológica que manifestou a ascensão de consciência não pode continuar sua trajetória indefinidamente sem se transformar profundamente, sem dar um salto. Ela assumiu consciência de si, tornou-se existência no existente. A grandeza tornou-se diferente de si para continuar ela mesma, fez-se homem.
Teilhard de Chardin fez ver o ser humano, então, como terceiro infinito, ligado ao mundo e, simultaneamente, transcendente, como portador da evolução nos tempos atuais; fez ver o homem em sua totalidade, um ser de dimensões para o qual, de certa forma tudo converge. E eu agora fiz a inferência do termo o existente – um vocábulo a mais para fazer ver o fenômeno humano. Que conclusão é possível tirar de tudo isso? Creio que, fundamentalmente, é possível concluir que o ser humano é um ser em processo de vir-a-ser aquilo que ele é realmente ou àquilo que poderá ser. É um ser inacabado, não pronto.
E nenhum termo ou terminologia, tomada isoladamente o esgota, o classifica completamente. Nenhuma ciência sozinha é capaz de conhecê-lo definitivamente e dizer o que ele é, porque o que ele é não se completou. Uma hiperfísica, uma ciência que o veja em sua totalidade e imerso na totalidade do seu universo é capaz de traçar as linhas gerais do fenômeno humano – por isso falou o jesuíta: “o fenômeno, mas o fenômeno inteiro”[37]. Portanto, não há antropologia, o que há é antropogênese; quero dizer, a gênese do ser humano.
Falar do homem, estudá-lo, ver o homem não é enquadrá-lo no sistema dessa ou daquela disciplina é contribuir com a sua gênese, é dar continuidade ao processo evolutivo que começou com a formação do universo e da terra, seguiu com o aparecimento da vida neste planeta, chegou ao estágio em que se encontra – o ser existente – e segue, seja com a socialização ou com a espiritualização, enfim, segue seu sentido ascensional crescente.
Esta é a natureza humana e sua grandeza – e também seu desafio –, ser alguém cujo universo e o futuro representam um horizonte de possibilidades, ser alguém que não pode ser enquadrado porque está em movimento, porque transcende a tudo que se lhe apresenta como obstáculo, pensa alternativas, quebra esquemas, re-interpreta interditos e ao mesmo tempo se liga a tudo, se identifica no mundo, se encontra no mundo, mas se liga e se identifica por aquela dimensão de profundidade, por aquela capacidade de descobrir significado e, concomitantemente, significar o real. O homem não mais
centro estático do Universo, como ingenuamente o havíamos acreditado – mas, o que é muito mais belo, o Homem flecha ascendente da grande síntese biológica. O Homem constituindo, por si só, a mais nova, a mais fresca, a mais complicada, a mais matizada das Camadas sucessivas da Vida[38].
Há uma limitação de primeira grandeza no meu texto, limitei-me e esforcei-me a fazer ver o filósofo Teilhard de Chardin. Concentrei minha atenção na fenomenologia do homem e não atentei ao caráter teológico do autor. Essa opção foi necessária para manter-me fiel ao tema específico a que me propus e dado os limites de minha pesquisa.
Faltou, portanto, apresentar melhor a fundamentação teológica do pensamento teilhardiano e explicar a prospectiva inferida por Teilhard de Chardin; ou seja, explicar o rumo que ele aponta para o processo evolutivo; i.é, fiquei a dever a explicação dos conceitos de socialização, espiritualização e, finalmente, do ponto ômega. Estes conceitos, contudo, versam acerca de um pensamento mais teológico do que filosófico – portanto, não era objetivo meu e não me vejo apto para esclarecer tais conceitos hoje.
Não obstante, porém, a esse recorte, creio ter conseguido fazer ver os traços gerais da concepção de homem de Teilhard de Chardin. Creio ter mostrado o que concluiu a fenomenologia que observou o homem em sua totalidade e imerso na totalidade do universo no qual ele se move. Cumpre dizer que o valor primeiro deste trabalho consiste em resgatar o cerne do pensamento de um autor que depois de ter se tornado uma “febre” caiu em esquecimento e ficou relegado à história do pensamento contemporâneo.
Em cada momento que parei para ler ou escrever acerca deste jesuíta francês que muito admiro, tive presente a consciência de pertencer a uma geração que não conhece Teilhard de Chardin e que vive a angústia de não ter dado atenção para aquilo a que ele tanto chamou a atenção, a saber, o que é o homem e qual o seu lugar no universo.
A grandeza deste trabalho, portanto, – se é que ele tem alguma – está na possibilidade de ser melhorado, enriquecido, aprofundado e, o digo com franqueza e serenidade, em ser superado.
http://filosalex.blogspot.com/2011/01/antropogenese.html
Belo Horizonte – MG- 2008
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
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