sexta-feira, 29 de julho de 2011

O SENTIDO MÍSTICO DA CONSCIÊNCIA PLANETÁRIA



Faustino Teixeira 
- PPCIR-UFJF


“Aquele que amar apaixonadamente Jesus
escondido nas forças que fazem a Terra crescer,
a Terra, maternalmente, o levantará
em seus braços gigantes,
e o fará contemplar a face de Deus”
(Teilhard de Chardin)



Introdução

Como indica Leonardo Boff, a retomada da dimensão espiritual da vida humana talvez seja uma das transformações culturais mais significativas do século XXI[1].

Trata-se da viva consciência de que o ser humano não é somente parte do universo material, mas igualmente espírito que se integra ao Todo, como ente “re-ligado a todas as coisas” e que lança interrogações fundamentais sobre o sentido da história e do destino humano. 

Um dos grandes desafios de nosso tempo relaciona-se à consciência planetária: como encontrar um caminho civilizacional que saiba incluir a todos, incluindo a natureza; um caminho que possibilite o enriquecimento da compreensão do humano, que envolve não apenas a relação consigo mesmo e com os outros, mas igualmente a relação com os cosmos, que é o seu lugar natal. Nada mais nocivo que continuar alimentando a idéia moderna da auto-centralidade do ser humano e os desdobramentos problemáticos de sua relação de domínio com a natureza. O momento exige uma sensibilidade nova:


Começamos a perceber que destruímos a nós mesmos com essa intemperança. Começamos a entender que o mundo é nossa morada, na qual nascemos e estamos vivendo, e que merece proteção. Melhor: essa natureza merece respeito e escuta, ´escuta poética`, pois ela tem valor em si mesma. E uma ´nova aliança`entre ela e nós deve ser estabelecida (Prigonine e Stengers), além daquela em que ´o homem é senhor e possuídor do mundo`(Descartes)[2].


O sentido místico da consciência planetária convoca o ser humano a uma nova dinâmica relacional, que envolve o olhar, a escuta e a aliança com o Todo. Pode-se falar ainda em hospitalidade: ser capaz de hospedar o outro e a realidade envolvente. 

Isto requer muita humildade e quebra das arrogâncias identitárias, na medida em que traduz uma nova forma de instalação no mundo, marcada pela “delicadeza espiritual”, pela simpatia, cortesia e retomada do senso da maravilha. Em linha de descontinuidade com a lógica prometeica, que busca tudo controlar e explicar, há que reaprender o ritmo da imanência, que envolve humildade e abertura, ou seja, saber se instalar silenciosamente “no frêmito da contingência”[3].


A mística e o amor pelo Todo

A experiência mística envolve sempre a dinâmica de uma relação. Na perspectiva aberta por clássicos pensadores cristãos, como J.Maritain e Louis Gardet, a mística traduz um “conhecimento experimental das profundidades de Deus” ou a “experiência fruitiva do absoluto”[4].

 Nela se dá o encontro do sujeito com o Outro, entendido como Mistério maior. Mas há hoje que resgatar um sentido mais “terrenal” da mística, que envolve uma percepção acurada do cotidiano, de forma a desentranhar a dimensão mistérica que habita o ser humano e toda a criação. Em sintonia com a perspectiva aberta por Raimon Panikkar, há que entender a mística como “experiência da vida”, ou como “experiência integral da realidade”[5].

A mística não é uma experiência ultra-mundana, desencarnada e destacada das alegrias e dores do mundo, nem mero apanágio de uma “aristocracia espiritual”, mas um traço ou característica do ser humano em geral, que é capaz de penetrar os meandros da realidade e captar o canto das coisas.


O verdadeiro místico não está jamais deslocado de seu tempo, mas é alguém animado por um “desaforado amor pelo Todo”. A sua experiência do mistério ocorre no coração da realidade, em atenção contínua aos pequenos sinais do cotidiano,  num movimento incessante de adentrar-se cada vez mais em sua espessura[6]

Como mostrou com pertinência e sabedoria o místico jesuíta, Teilhard de Chardin, “a pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda do Universo”[7]. Há que ter “uma simpatia irresistível por tudo aquilo que se move na matéria obscura”[8]

Os grandes espirituais e santos são reconhecidos em sua grandeza não por escaparem dos desafios de seu tempo, mas pela “maneira de eles viverem plenamente essa vida comum e fazer com que ela faça desabrochar todas as suas virtualidades”[9].

Singulares místicos como Mestre Eckhart (1260-1327), foram animados por uma sensibilidade particular, de saber captar Deus em todas as coisas, e em todo o tempo e lugar. O verdadeiro espaço de encontro com o Mistério não é o extraordinário, mas o ordinário, o cotidiano do dia-a-dia. O céu se faz presente “em cada ponto da criação, assim como Deus é, de certo modo, a onipresente filigrana de todas as coisas”[10].


A diafania de Deus no Universo

Em sua preciosa obra mística, O meio divino, Teilhard de Chardin assinalou que “o grande mistério do cristianismo não é exatamente a Aparição mas a Transparência de Deus no Universo”[11]. À luz da perspectiva mística cristã, todo o universo vem “banhado de luz interna que lhe intensifica o relevo, a estrutura e as profundezas”[12]. Não há como escapar desta Diafania divina, que a todos envolve e que transparece no mistério da criação.

O ser humano vive mergulhado
nesse “meio divino”, 
embora nem sempre se dá conta disso. 

Para ser capaz de ver Deus em todas as coisas é necessário uma “educação da vista”[13]. De fato, para aquele que sabe ver, “nada é profano neste mundo”[14]. Basta romper com o círculo da superficialidade e das aparências, ultrapassar o ritmo dos nomes e formas, para ser capaz de desvendar o Divino que transparece por todo canto: “por toda a parte, à volta de nós, à direita e à esquerda, atrás e adiante, abaixo e acima”[15]

É o mistério divino sempre-já-aí a assediar, penetrar e modelar o ritmo da criação. De forma ousada, Teilhard reconhece o potencial espiritual da matéria, e indica que é mergulhando em seu seio que o ser humano vem introduzido “no coração mesmo daquilo que é” e alcança a experiência de Deus:


Banha-te na Matéria, filho do Homem.
Mergulha nela, lá onde ela é mais violenta 
e mais profunda! Luta em sua corrente
e bebe sua vaga!

Foi ela que outrora embalou tua inconsciência – é ela que te levará até Deus![16]

Como tão bem cantou o salmista, “a terra está cheia do amor de Iahweh” (Sl 33,5).

E essa alegria vem celebrada pelos céus e firmamentos, que proclamam a glória dessa presença (Sl 19,2; Sl 148; Dn 3,57s). Esse mistério divino que a todos envolve é simultaneamente imanente e transcendente. De um lado, é “incomparavelmente próximo e tangível”, atuando em todas as forças do Universo; de outro, esquiva-se ao abraço, retirando-se sempre para mais longe, em direção às escarpas do desconhecido[17].

Trata-se de um mistério protegido por reserva de gratuidade, que mantém-se permanentemente como dom: é “o eterno descobrimento e o eterno crescimento”[18]. Mas, curiosamente, pode ser alcançado, por aproximação, quando se navega no sentido da profundidade, em direção ao “recanto mais secreto de nós mesmos”, no centro mais íntimo, no “abismo profundo” de onde irradia todo poder de ação[19].


Ao olhar superficial e ingênuo, essa percepção profunda do mistério de Deus em todas as coisas do mundo vem identificada como panteísta. Trata-se de um equívoco que vem logo dissipado quando se aprofunda a perspectiva da dinâmica que envolve a imanência e a transcendência de Deus no mundo. Mesmo quando o místico fala da íntima união selada no amor, permanece resguardada a diferença. Tratando dessa questão, o clássico pensador da escola de Kioto, Keiji Nishitani, sublinha:


Dizer que Deus é onipresente 
implica a possibilidade de encontrar Deus 
em toda parte no mundo. 

Isto não é panteísmo no sentido usual do termo, pois não indica que o mundo é Deus ou que Deus é a vida imanente no mundo mesmo, mas que um Deus absolutamente transcendente é, enquanto tal, absolutamente imanente[20].


Na tradição mística do sufismo, e em particular na obra de Ibn ´Arabi (1165-1240), o mistério de Deus – wujūd ilimitado – pode ser captado através de dois termos-chave presentes na terminologia teológica do islã tradicional: tanzīh e tašbīh. O primeiro termo, tanzīh, vem do verbo árabe nazzaha, que significa “proteger algo de qualquer contaminação”. 

O termo vem utilizado para assinalar a transcendência e a incomparabilidade essencial de Deus: sua distancia com respeito a toda criatura. O segundo termo, tašbīh, , provém do verbo šabbaha, que significa “fazer ou considerar algo similar a outra coisa”. É um termo que expressa a proximidade de Deus com a sua criação, sua comparabilidade com as coisas existentes. Deus vem, assim, expresso em sua dupla polaridade: é, por um lado, radicalmente transcendente, mas por outro, também imanente[21].

A aproximação de Deus, entendido como o Real (al-Haqq), não pode acontecer quando se privilegia exclusivamente um desses pólos. Ibn ´Arabi serviu-se da história corânica de Noé (Nûh) e os “idólatras” para mostrar que não se pode captar o Real quando se exclusiviza seja o seu lado transcendente, seja o seu lado imanente. 

Esse mistério é simultaneamente 
transcendente e imanente. 
Tanto os “idólatras” como Noé 
equivocaram-se em sua aproximação 
ao Mistério.

Os “idólatras” por vincularem o Real com os objetos físicos de sua adoração (imanentização) e Noé por vincular o Real com o transcendente. Os primeiros equivocaram-se por desconsiderar a dimensão transcendente do Real e o segundo por negar sua dimensão imanente[22].


Há que sublinhar, porém, que o mistério do Real ou do Todo vem experimentado no âmbito da imanência. Mas é preciso atenção para perceber esse “ponto luminoso” que atua e permanece dentro de tudo o que é real. Não sem razão, filósofos contemporâneos, como André Comte-Sponville , falam da “imanensidade”, para expressar esse mergulho no Todo, que traduz simultaneamente a força da imanência e a abertura para a imensidade. Não só os religiosos estão habilitados para perceber e captar o inusitado de eternidade que habita o cotidiano. 

O potencial de deslumbramento e admiração diante do Todo ocorre também entre aqueles que dispensam a religião em sua vida, mas que podem estar animados, em alto grau, por qualidades essenciais do espírito. A espiritualidade, como vem mostrando Dalai Lama, envolve a atuação dessas qualidades essenciais, como o amor, a compaixão e a tolerância, que irradiam uma essencial atmosfera de felicidade. 

O filósofo Comte-Sponville manifesta sua sintonia com espiritualidades que facultam a abertura do ser humano ao mundo, aos outros, ou seja,  à realidade do Todo. Trata-se de uma espiritualidade que não encerra o indivíduo em si mesmo, mas que o incita a “habitar o universo”[23].


Ao reconhecer essa diafania de Deus no universo, o ser humano desperta para a presença do mistério em todo lugar. Trata-se do mistério que faz as montanhas saltarem “como carneiros, e as colinas como cordeiros” (Sl 114,4). Não há como refletir sobre o mistério de Deus e do humano sem “ouvir o mundo. 

O homem não está só louvando a Deus. 
Louvá-lo é unir-se 
a todas as coisas em seu hino a ele. 

Nossa comunhão com a natureza 
é uma comunhão de louvor. 
Todos os seres louvam a Deus. 
Vivemos numa comunidade de louvor[24].


A consciência e atenção cosmoteândricas

Para expressar essa íntima relação que envolve o cosmos, Deus e o humano numa única aventura espiritual, Raimon Panikkar cunhou a expressão “intuição cosmoteândrica”. Foi o recurso que encontrou para enriquecer o teandrismo da tradição cristã ocidental com a abertura cósmica da tradição ortodoxa. 

A novidade está na introdução do cosmos, do mundo, da matéria, até então negligenciados na espiritualidade cristã tradicional, muitas vezes identificados com o mal.

O cosmos, Deus e o homem são três dimensões constitutivas do real: “uma dimensão de infinito e liberdade que denominamos divino; uma dimensão de consciência, que denominamos humana; e uma dimensão corporal ou material que denominamos cosmos”[25]. É a interpenetração destas três dimensões que impossibilita reduzir a experiência de Deus ao que é puramente imanente ou transcendente. Trata-se, melhor, de uma aventura substantivamente relacional, que faculta acessar a complexidade da experiência mística[26].


A experiência cosmoteândrica demanda uma atenção particular ao cotidiano. Há aqui uma rica sintonia com a experiência zen budista, para a qual “o coração cotidiano é o caminho”[27]. Na visão de um dos grandes pensadores da tradição zen, Daisetz Teitaro Suzuki, a verdade não está deslocada do tempo, mas revela-se nas “coisas concretas” da vida cotidiana.

É na vida comum que a mística acontece:

O Zen treina sistematicamente
o pensamento para ver isso. 

Abre os olhos do homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração para que ele abranja a eternidade do tempo e o infinito do espaço em cada palpitação e faz-nos viver no mundo como se estivéssemos andando no Jardim do Éden[28].


Esta atenção ao cotidiano e sentimento do real são possibilidades bem plausíveis na vida de cada um, e ocorrem em situações que podem ser banais. É o que descreve Nishitani, ao comentar uma passagem do livro de Dostoievski, Memórias da casa dos mortos, onde o autor relata uma experiência singular de abertura ao mistério a partir do impacto emocional da paisagem circunstante: o despertar para o “mundo prenhe de Deus”.

O impacto da realidade pode ser diferente para cada pessoa, dependendo da situação particular em que vive e da dinâmica de atenção que a anima. Situações ou experiências cotidianas podem tornar-se “ponto focal” de uma concentração inusitada e intensa, despertando a atenção para um sentimento do real que escapa ao olhar superficial. Algo que aciona e desperta “o profundo sentimento da realidade das coisas cotidianas”[29].


O espírito alerta e a dinâmica da atenção são traços fundamentais da sensibilidade oriental. É a profunda “consciência cotidiana” que impulsiona o recolhimento metódico e sistemático do arqueiro zen e a possibilidade dele estirar o arco espiritualmente e acertar o alvo[30]

É o “espírito do cotidiano” que consolida o estado de espírito essencial do samurai em sua arte marcial: o desenvolvimento de um olhar de discernimento capaz de grande atenção às pequenas coisas[31].

A sabedoria zen procede de uma forma peculiar: não há interesse em prescrições ou considerações teóricas. 

O que ela suscita é apenas uma atenção desarmada ao real, como ele se manifesta, ou seja, a experiência imediata de ser, eventualmente, tocado pelas coisas e ouvir o seu canto[32].

A linguagem zen vem penetrada pelo aberto ilimitado, onde nada pode ser claramente expresso, para que a admiração encontre morada. Com base numa passagem evangélica de Mateus, o pensador Shizuteru Ueda, assinala que a perspectiva zen é muito mais indicativa que imperativa. Na mencionada passagem se diz:


Olhai os pássaros do céu: 
não semeiam, não colhem, nem guardam em celeiros.
No entanto, o vosso Pai celeste os alimenta (...). 
Olhai como crescem os lírios do campo. 
Não trabalham nem fiam. 

No entanto, eu vos digo, nem Salomão,
em toda a sua glória, jamais se vestiu
como um só dentre eles
(...) (Mt 6,26-28).


Como indica Ueda, um mestre zen procederia de forma distinta da descrita pelo evangelista. Diria simplesmente: “Olhai os pássaros do céu! Olhai os lírios do campo”, sem acrescentar prescrição alguma. Não há melhor ensinamento do que o dado vivo da presença dos pássaros e dos lírios. A simples e delicada evidência, apresentada ao olhar, é suficiente para quebrar o entrincheiramento do sujeito no mundo restrito do eu e o lançar no decisivo desafio de retomada da verdadeira vida[33].


A sabedoria zen marcou místicos cristãos singulares, como o trapista Thomas Merton, para o qual o caminho zen tocava a vida no seu próprio âmago. Mediante o influxo da meditação budista, soube perceber a fundamental importância da atenção aos pequenos sinais do cotidiano. Em descontinuidade com a tradição cartesiana, assinalava que em primeiro lugar estava o ser no mundo, em estado de atenção: sum ergo cogito.

Para ele,o Zen é a percepção plena do dinamismo e da espontaneidade da vida, e por isso não pode ser apreendido pela simples introspecção, e muito menos pelo sonho (...). Exige atenção e esforço reais, além de absoluta e total atenção: entretanto, essa atenção é dada não a uma teoria ou a uma verdade abstrata mas, sim, à vida em sua realidade concreta e existencial, e a todo instante[34].


Thomas Merton aplicou esse espírito zen na sua experiência de trapista. Como mestre de noviços, na abadia de Gethsemani (EUA), realizou esse espírito, na forma de entender e ensinar o sentido da vida contemplativa. Em linha de sintonia com a sabedoria zen, captou o significado real de uma vida contemplativa inserida no tempo. 

Dizia que “a vida contemplativa era simplesmente viver, como o peixe na água”. Assinalava também que a vida espiritual não podia estar separada de nenhum interesse humano. Realizou sua trajetória de buscador nessa atmosfera de atenção ao real, plenamente consciente da presença permanente de Deus em todo canto[35].


A experiência da profundidade e a dilatação do coração

Um dado interessante que perpassa nas narrativas de místicos importantes como Eckhart, Tauler, João da Cruz e Teresa de Jesus é a relação entre a profundidade da experiência espiritual e a dinâmica do amor solidário. Num de seus sermões alemães, Eckhart sublinha a importância da “límpida humildade” como condição de acesso ao “fundo de Deus”. Ele sinaliza que “quanto mais a alma chega ao fundo e no mais íntimo de seu ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras...”[36]

Isso significa que quanto mais o ser humano penetra o seu mundo interior, mais é capaz de perceber a beleza de todas as coisas, em liberdade espiritual que é única. E o resultado mais efetivo dessa interiorização é a tônica do amor. Em outro sermão, ele diz que “quando a alma com amor flui totalmente em Deus, ela não sabe de mais nada a não ser de amor”[37]. Também Tauler, num de seus sermões, indica que lá onde “o vale é mais profundo é onde a água corre de forma mais abundante”[38].


Com base na reflexão de Mestre Eckhart, pode-se concluir que o caminho do despreendimento é condição essencial para o encontro com a realidade em sua densidade verdadeira. Não há contradição ou tensão entre a experiência interior e a adesão à beleza cósmica. São experiências que se implicam mutuamente.

Quando as “coisas” são descobertas em Deus, passam a ser apaixonadamente amadas em sua grandeza. Segundo Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière, dois estudiosos de Eckhart, o despreendimento verdadeiro não provoca uma “extinção das coisas”, mas o seu “recentramento”. 

A dinâmica do desprendimento não leva à fuga do mundo, mas ao envolvimento, por conaturalidade, de todas as coisas. O ser desprendido é alguém “capaz de amor, é humilde e misericordioso”[39]. Em clássico sermão em torno de passagem de Lucas (Lc 10,38-40), Eckhart encontra em Marta um exemplo de desprendimento. Em sua visão, ela era alguém que conseguiu exercitar radicalmente o fundo da alma, na sua essencialidade. O leitor do evangelho capta a operalidade de Marta. 

Trata-se, porém, de uma ação marcada por liberdade: de alguém que está “junto às coisas”, mas ao mesmo tempo livre com respeito às mesmas. Na visão de Marta, o encontro com Deus passa pelo mundo e pela vida. Estar “essencialmente” diante de Deus é estar inserido na vida, é possuir “a vida de maneira essencial”[40].


Eckhart é um místico que louva a atividade prática da vida cotidiana, cujo grande exemplo vem encontrado em Marta. Mas o modo como Marta exerce essa atividade é pontuado por grande liberdade, que só pode encontrar-se em alguém que despertou radicalmente para a sua verdadeira natureza, e que exercitou o fundo da alma, aproximando-se do mistério da Deidade. 

O despojamento vivido por Marta é o resultado de um aprofundamento da “subjetividade que emerge da morte absoluta do ego (...) e do puro vínculo de unidade com Deus”[41]. Um tal despojamento (abgeschiedenheit) não leva à “deserção das coisas, mas posse de si na liberdade com respeito às coisas”, que é também liberdade face a todas determinações particulares[42].


Conclusão

Nada mais urgente no tempo atual que a afirmação de uma nova aliança em favor do resgate da Terra e da salvaguarda da criação.

Trata-se de uma escolha que é nossa: “formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”[43]. Esse cuidado planetário essencial tem viva fundamentação na mística inter-religiosa. 

O respeito à natureza 
é um desdobramento evidente
de toda perspectiva mística, pois ela mesma,
em sua beleza, reflete os rastros de Deus[44],
ou do Mistério maior, sem nome. 

Os místicos falam do mistério inacessível de Deus, da impossibilidade de sua compreensão no tempo. Apontam, porém, a possibilidade de captar sua fragrância nesse espaço da contingência. O capadócio, Gregorio de Nissa, fala do “perfume difuso” da natureza divina na criação: todo o universo é portador desse aroma que traduz o mistério da Vida[45]. A tradição mística ortodoxa fala em filocalia, que literalmente significa “amor pela beleza”. 

A oração hesicasta tem como objetivo essencial despertar essa “sensibilidade à presença de Deus em todas as coisas”[46]. Toda mística autêntica busca revelar um novo olhar sobre o mundo, ou melhor ainda, captar o outro mundo que habita esse mundo. Abre-se com ela a possibilidade de ver o mundo transfigurado, de ver “a chama das coisas”,  e resgatar o “corpo energético da terra”.

Daí a importância fundamental 
de reafirmar o sentido místico 
da consciência planetária.



 

Artigo publicado no livro: Consciência Planetária e Religião, organizado por Pedro A.Ribeiro de Oliveira & José Carlos Aguiar de Souza. São Paulo: Paulinas, 2009, pp. 211-232 (e também publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, n. 277, de janeiro de 2010)


Monja Coen Sensei

Monja Coen Sensei
















Monja Coen Sensei é missionária oficial da tradição Soto Shu - Zen Budismo com sede no Japão e é a Primaz Fundadora da Comunidade Zen Budista, criada em 2001, com sede em Pacaembu.

Iniciou seus estudos budistas no Zen Center of Los Angeles - ZCLA. Foi ordenada monja em 1983, mesmo ano em que foi para o Japão aonde permaneceu por 12 anos sendo oito dos primeiros anos no Convento Zen Budista de Nagoia, Aichi Senmon Nisodo e Tokubetsu Nisodo.

Participou de vários cursos e programas de formação para monges tendo se graduado no mestrado da tradição Soto Shu.

Retornou ao Brasil em 1995, e liderou as atividades no Templo Busshinji, bairro da Liberdade, em São Paulo, e sede da tradição Soto Shu para a América do Sul durante seis anos. Foi, em 1997, a primeira mulher e primeira pessoa de origem não japonesa a assumir a Presidência da Federação das Seitas Budistas do Brasil, por um ano.

Participa de encontros educacionais, inter religiosos e promove a Caminhada Zen, em parques públicos, com o objetivo de divulgação do princípio da não violência e a criação de culturas de paz, justiça, cura da Terra e de todos os seres vivos.

Inspira-se na frase de Mahatma Gandhi:
Temos que ser a transformação que queremos no mundo.


Comunidade Zen Budista
Rua Desembargador Paulo Passaláqua 134

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A amante do rock que virou monja

Entrevista a Robson Rodrigues, repórter do Bradesco Universitários

A Monja Coen, nascida Cláudia Dias de Souza, paulistana, 63 anos, é uma pessoa fora do comum.

A começar pela maneira como topou dar esta entrevista. No primeiro contato por telefone fui logo surpreendido por sua reação ao meu pedido para conversar com ela com exclusividade para o Bradesco Universitários: ''Mas como posso te dar uma entrevista sem antes você conhecer o budismo? Venha para uma palestra, depois falamos sobre a entrevista'', disse ela. Quando cheguei ao templo Zen Budista, no bairro do Pacaembu, em São Paulo, seus assistentes me explicaram um pouco sobre a religião e filosofia baseada nos ensinamentos de Buda (Siddhartha Gautama), que viveu na Índia no século VI a. C., e tive uma experiência de meditação.

Só depois disso, a monja, uma das principais líderes espirituais budistas do Brasil e primeira mulher e pessoa de origem não japonesa a assumir a Presidência da Federação das Seitas Budistas do Brasil (por um ano), com sede no Templo Busshinji, no bairro da Liberdade, aceitou me receber. Sua história é tão impressionante que virou uma biografia romanceada, ''Monja Coen - A Mulher nos Jardins do Buda'' (Ed. Mescla, 2009), escrita por Neusa Steiner. Antes de ser budista, casou-se aos 14 anos, teve uma filha, divorciou-se, foi jornalista, cursou direito, viveu intensamente a chamada ''geração do desbunde'', chegou a ser presa. Hoje usa o que aprendeu - e também ferramentas modernas, como o Twitter - para promover a cultura budista.
Leia, a seguir, a entrevista:

Bradesco Universitários - Como foi a reação da sua família quando decidiu ser monja?
Monja Coen - A minha mãe era muito católica e me perguntou: ''por que não vai ser freira?''. Ela já é falecida e morreu católica, não mudou de religião. Isso foi muito interessante, porque eu tive que convencê-la e para convencer minha mãe eu tive que convencer a mim mesma (risos). Eu tinha 36 anos.

Bradesco Universitários - Como era sua vida antes do Zen Budismo?
Monja Coen - Eu estava mais envolvida com o pessoal de rock 'n' roll, fui jornalista, tive várias atividades diferentes. Talvez eu fosse mais nervosa do que sou agora, mas isso não muda muito, o que muda mais é você conhecer-se melhor e eu acho que passei a me conhecer melhor, a me aceitar mais.

Bradesco Universitários - Antes de ser religiosa, a senhora foi repórter em diversos jornais do Brasil e viveu intensamente os anos 1970. Como descobriu sua vocação para o budismo?  
Monja Coen - Eu acho que a redação de um jornal é um lugar importante porque nos obriga a falar com tantas pessoas diferentes que abre os portais da nossa mente e da nossa percepção, da nossa maneira de ver o mundo, de nos relacionar com os outros. O jornal foi fundamental para isso e o primeiro passo, a grande abertura, foi dentro da redação do jornal, quando comecei a fazer matérias que necessitavam de pesquisas e nessas pesquisas aparecia o budismo. Aí começou o meu interesse. Eu percebi como era interessante. Os Beatles meditavam, quando eu escutava a música deles achava as letras muito profundas e havia uma imensa a capacidade de comunicação. Então eu pensei ''esses caras meditam. O que é isso? ''. Havia tantas pessoas que eu considerava grandes comunicadores de massa que meditavam.

Bradesco Universitários - A vida de uma monja, desde sua preparação, é cheia de restrições. O tempo em que a senhora esteve no mosteiro, por exemplo, ficou em clausura. Sente falta de algo que tinha antes de ser budista?
Monja Coen - Não, eu não sinto falta. Quando eu fui para o mosteiro em Los Angeles, nos Estados Unidos, eu gostava muito de ir à praia e o meu mestre disse para mim: ''Você vai ficar muito tempo sem nadar'' (risos). Mas nem pensei nisso, no mosteiro há tanta coisa a aprender, tanto a fazer, que a gente não pensa no que está faltando.

Bradesco Universitários - O que a senhora acha da religiosidade dos jovens de hoje?
Monja Coen - Eu tenho muitos alunos de várias faixas etárias diferentes e tenho alguns de uma dedicação tão profunda que eu fico pensando: puxa se eu fosse assim aos 20 anos... Como que essas pessoas tão jovens já têm essa determinação e esse comprometimento? Então o que eu encontro naqueles que vêm à minha Sangha (comunidade de praticantes do budismo) é muito bonito.

Bradesco Universitários - Hoje a maioria dos jovens continua pensando em viver ao máximo, aproveitar tudo o que vida pode oferecer, mas os tempos são outros e isso pode ser mais perigoso. Como a senhora vê isso?
Monja Coen - Eu acho que faz parte da juventude a descoberta e nós, quando jovens, experimentamos as coisas, o mundo, nosso corpo e a nós mesmos. Mas é importante sabermos os limites, conhecermos os nossos próprios limites, nos dar limites. Uma sociedade muito permissiva, que não dá limite, deixa as pessoas perdidas. Não acho que a juventude atual seja pior do que a juventude anterior. É da juventude essa vontade de fazer aquilo que é proibido. O que é interessante é perceber que são experiências e não ser consumido por essas experiências. Uma coisa é você experimentar drogas, outra coisa é a droga experimentar você e não sair mais de você. Essa é a diferença fundamental, isso pode ser para tudo, para o açúcar, para o sal, para álcool. Não deixe que a sexualidade, a comida ou qualquer outra coisa destrua você. Pois existe coisa mais preciosa do que é você, um ser humano?

Bradesco Universitários - A sociedade dita muito nosso modo de vida: devemos ser pais exemplares, amantes e profissionais bem-sucedidos. No caso dos filhos, ótimos alunos e jovens descolados. Isso tudo em busca da felicidade. O que é felicidade em sua opinião?
Monja Coen - Eu gosto muito dessa interpretação que fala da origem da palavra (felicidade) que vem da mesma de fértil, de frutífero, que dá frutos. E nós criamos uma ideia, um conceito, de felicidade como uma coisa que eu vou pegar de fora, mas é mais uma coisa que eu possa produzir e que dê bons resultados e isso nos faz feliz. É uma inversão do padrão comum: eu vou à loja, compro coisas e fico feliz. Mas, na verdade, eu não fico feliz, eu tenho um leve contentamento que passa com muita rapidez. O que nós temos que acessar é um estado de felicidade, de contentamento, com você e com a vida e que é mais profundo do que flashes de alegria. Eu acho que é isso que o Zen nos ensina, e acho também que é isso que as pessoas que o procuram encontram.

Bradesco Universitários - No Brasil e no mundo as mulheres estão quebrando paradigmas, seja como chefes de família, estudantes, presidentes e monjas. Gostaria que comentasse isso.
Monja Coen - Lembro da geração da minha avó, que era completamente submetida ao meu avô, e todas as questões sociais do feminino em submissão ao masculino. A minha mãe se separou do meu pai na época da minha infância e isso foi considerado uma coisa horrorosa, tinha que ser escondido, era feio. Eu não conseguia matrícula nas escolas católicas porque era filha de pais separados. Acredito que aquilo que minha mãe construiu com sua iniciativa de não suportar um casamento que não era verdadeiro, enquanto as primas dela mantinham a aparência, a levou a dar esse impulso na minha vida, ao dizer: ''Viva sua vida, você tem o direito à vida, de se completar como ser humano''.

Isso é o resultado da geração anterior à minha. Quando cheguei de volta ao Brasil, no templo Busshinji, na Liberdade, as mulheres eram proibidas de votar nas eleições de diretoria, havia um departamento feminino no qual as mulheres podiam cozinhar (resquícios de costumes do Japão antigo, onde as monjas podiam apenas trabalhar na cozinha e lavanderia dos mosteiros masculinos).

Quando cheguei, disse que as mulheres poderiam votar, ter cargos. E isso para um grupo japonês de imigrantes antigos, com padrões de cem anos atrás, foi um choque. No jornal era uma redação masculina e tinha que provar a todo instante que apesar de ser mulher era inteligente. Eu tenho uma visão de que homens e mulheres são igualmente importantes na construção de vida e que todos nós temos nossas posições e nossos papéis. Um ser humano é capaz, independentemente se é homem ou mulher.

Bradesco Universitários - A senhora teve uma vida acadêmica, estudou direito e fez cursos. Hoje o que senhora estuda?

Monja Coen - Eu estudo o budismo, estudo a mim mesma. A gente diz que estudar o caminho de Buda é estudar a si mesmo e não tem fim isto, é como se você fosse estudar a mente humana. A nossa mente humana é fascinante. Ao mesmo tempo ela é incessante, ela não é fixa, não é permanente. Realmente a única coisa que me dá tempo de ler e estudar um pouco são os ensinamentos de Buda e, principalmente, de mestre Dogen, que é o fundador da nossa escola lá no Japão no século XIII. Um pensador extraordinário e é por causa dele que me tornei monja, por ler as traduções dos textos dele.
Bradesco Universitários - Disso tudo que aprendeu, a internet tem servido como ferramenta para o seu trabalho e divulgação dos seus ensinamentos? De que maneira você a utiliza?
Monja Coen - A internet é muito importante, eu acho que se Buda estivesse vivo ele usaria tudo o que é possível. Naquela época, para divulgar seus ensinamentos, ele caminhava e falava com as pessoas, não tinha nem carro. Hoje em dia vivemos numa realidade, se temos outra coisa que é benéfico e que as pessoas querem ouvir, por que não dispor delas? Então a minha ideia é que a gente disponibilize os ensinamentos por todos os meios disponíveis. Hoje os relacionamentos virtuais são tão importantes, às vezes virtualmente a gente pode manifestar nossa essência verdadeira. Pessoalmente, muitas vezes, existe certa timidez. Virtualmente, as pessoas se expõem e se mostram mais, falam coisas secretas que procuram esconder das pessoas. Agora, elas precisam aprender a ler o que estão manifestando, entender esses vários aspectos da mente humana.

Bradesco Universitários - Gostaria que registrasse aqui uma mensagem para os jovens tirada da experiência de sua vida.
Monja Coen - O futuro é seu, vocês fazem o meu futuro. Tudo o que eu vivi vai morrer comigo se vocês não continuarem. Então é muito importante que a juventude mantenha-se viva, alerta, experimentando, apreciando a vida.

Bradesco Universitários - Bate-Bola
Monja Coen - Buda
O Budismo: Zazen
Deus: Aonde?
Um mestre: Xaquiamuni Buda
Suas influências: Mahatma Gandhi, José Ângelo Gaiarsa, Beatles, Pink Floyd, The Who (Risos).
Um livro: "Assim falou Zaratustra", de Nietzsche
Internet: Twitter
O que faz nas horas vagas: Eu corro, ando de bicicleta, passeio com os cachorros (Risos). Há horas vagas?
Um sonho: Harmonia entre os relacionamentos 
Uma frase: "Nós somos a transformação que queremos no mundo". É de Mahatma Gandhi.

Fonte: Hipermeios
 
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Fonte:
Monja Coen Sensei
http://www.monjacoen.com.br/textos-budistas/textos-diversos/293-o-sentido-mistico-da-consciencia-planetaria
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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