Carlos Roberto Drawin
Psicólogo, professor de Filosofia da UFMG
O título deste ensaio(1) reúne dois temas candentes que romperam os rigorosos limites do debate acadêmico e, projetando-se num espaço social mais amplo, penetraram o circuito cultural da mídia, no qual tudo se difunde e se deteriora com extraordinária rapidez. Nesse "império do efêmero" em que as coisas e pensamentos perdem a sua densidade própria e se dissolvem em imagens, proclama-se a primazia do signo desreferencializado, que circula rapidamente e se deixa substituir aleatoriamente conforme a demanda do mercado e a dinâmica do desejo. Se tudo converte-se, afinal, em simulacro, podemos descartar com um alegre desdém neo-nietzscheano a "vontade de verdade" e estigmatizar como ridículo o "espírito de seriedade"(2).
Por isso, se já foi possível identificar na política o destino e a tragédia do homem moderno, podemos hoje reconhecer, nesse momento crepuscular de um grande ciclo civilizatório, que é a nossa modernidade tardia, que a nossa verdadeira tragédia só pode ser reconhecida negativamente, como uma perda, a perda do sentido trágico da vida. Afinal, na "Gaia Ciência", o "louco" de Nietzsche fica perplexo menos com a morte de Deus do que com a ignorância dos que o mataram.
Gott ist tot, "Deus morreu", e com que ligeireza e com que dar de ombros nós recebemos a terrível notícia e com que alívio nós nos desfazemos do jugo daquela antiga transcendência, daquele incomodo Absoluto: "agora poderemos fazer o que quisermos", é o que nos insinua a nossa leviandade "pós-modema", pouco propensa a suportar a dor daquela nova verdade. Entramos, assim, na região sombria, mas não necessariamente tormentosa do niilismo ético(3).
Por que começar assim, revestindo-se de um ar dramático e adotando um tom de pitonisa, cheio de negros presságios? Por que começar com esse estilo moralista e profético um texto que deveria dirigir-se a um público preocupado com os problemas eminentemente práticos que se disseminam no quotidiano profissional?
Talvez para justificar a desmesura da ambição filosófica em sua intenção de radicalidade, de não se deter na prudente análise dos casos concretos para abismar-se na raiz e no fundamento de nossas interrogações e impasses. Mas certamente para exorcizar de antemão a inevitável frustração de nossos possíveis leitores já cansados com a aparente inanidade dos discursos éticos. Pois, na verdade, a crescente demanda de discursos e reflexões sobre questões éticas parece desaguar sempre numa espécie de anti-climax: na reiteração das boas intenções ou na abstração das belas teorias. Ora, a impotência do discurso ético, a enorme distância vivida, não é circunstancial, mas é um sintoma, dentre muitos, daquele niilismo ético a que aludimos anteriormente.
Daí a perplexidade e desorientação daqueles profissionais que, por sua função, devem opinar e tomar decisões acerca de questões éticas. Eles podem contar com dois preciosos recursos na resolução dos problemas concretos: por um lado, têm como referência uma estritra deontologia, ou seja, uma simples catalogação dos deveres e correspondentes direitos que se aplicam dentro de determinada configuração profissional, de outro, podem lançar mão de uma casuística que os guie na aplicação das normas aos casos semelhantes.
No entanto, nem a estrita deontologia, o código ético na sua pura positividade jurídica, nem a formação de uma jurisprudência, a experiência que os conselhos profissionais vão adquirindo e sedimentando com a prática, são suficientes para aplacar uma perplexidade que não é apenas dos conselheiros mas de todos profissionais e, não apenas dos profissionais de um meio específico, mas de todos os indivíduos que tenham uma consciência mínima de cidadania. É a perplexidade daqueles que ainda não sucumbiram ao cinismo de uma razão prisioneira da instrumentalidade e do utilitarismo e que nos convida ao mais desvairado individualismo.
Mas, é preciso sublinhar, não nos limitamos aqui à justa e já quase desesperada indignação do cidadão brasileiro, dilacerado entre uma elite profundamente corrupta, predatória e acanalhada em seus intocáveis privilégios e uma enorme massa de indivíduos mergulhados na estupidez, na apatia e na barbárie do "salve-se quem puder", esse constrangedor espetáculo de um individualismo em andrajos e de uma esperteza boçal. Referimo-nos antes à perplexidade do que à mera indignação, à essa espécie de desamparo racional diante de nosso próprio desejo de agir moralmente.
Quando alguém pergunta, mas, afinal, "o que é ética?" não está interessado numa obscura discussão filosófica ou num bondoso conselho acerca de como agir corretamente numa situação determinada. O que o interrogante manifesta é o seu desamparo racional, a sua vontade de legitimar o seu agir moral, ou, em outros termos, poder responder com força persuasiva e seguro fundamento porque agir deste e não daquele jeito.
Ora, reprimir essa reivindicação de um fundamento ético-racional para o nosso agir é condenar a moralidade ao decisionismo subjetivista. Não é essa, aliás, a conclusão que se tira de um certo liberalismo que todos conhecemos? Sea moralidade, como a arte, a política ou a religião, escapa à esfera da racionalidade, então não podemos argumentar acerca de normas e de valores. Não é de "bom tom" discutir essas questões, porque afinal "gosto" não se discute e a moralidade deve circunscrever-se ao domínio da vida privada, da decisão particular.
Mas o que, então, nos seria permitido discutir racionalmente? Regras técnicas, resultados científicos, procedimentos administrativos, performances, enfim, saberes operativos que possam ser objetivamente avaliados em função de sua maior ou menor adequação a fins previamente fixados, segundo o critério da maximização da eficácia instrumental na relação dos meios aos fins.
No entanto, os fins prefixados acabam sempre remetendo a algum conteúdo moral e, então, deveremos novamente recolocar a questão acerca dos critérios que utilizaremos na avaliação desses conteúdos. Ou seja, a racionalidade instrumental, esta que Max Weber denominou de "racionalidade meio-fim" (Zweck-Mittel Rationalitat) e que visa apenas ao ajuste dos meios aos fins pré-determinados, recai sempre numa forma de arbítrio, seja na decisão despótica do tirano ou na lógica anônima do sistema(4).
O eminente filósofo moral inglês Alasdair Macintyre observou que algumas das mais vigorosas polemicas éticas de nosso tempo, como as que envolvem a moralidade e legalidade do aborto, o conceito de guerra justa ou o conflito entre a liberdade individual e a intervenção estatal, não são passíveis de uma solução racional, pois há uma incomensurabilidade conceptual entre as argumentações rivais. Os conteúdos normativos das premissas de base de cada uma das argumentações que se opõem são totalmente incompatíveis e, em consequência, as argumentações se sucedem ad infinitum sem que haja uma efetiva comunicação dialógica que permita a obtenção de um consenso racional.
Essa situação parece atestar o fracasso do programa ilustrado de uma justificação da moralidade com base na racionalidade moderna, pois esta vem marcada por uma cisão que parece não poder ser superada satisfatoriamente no horizonte simbólico da própria modernidade e que nos torna prisioneiros de uma aporia que Macintyre denominou invidualismo burocrático:
"A bifurcação do mundo social contemporâneo em um domínio organizativo em que os fins se consideram como algo dado e não suscetível de escrutínio racional, e um domínio do pessoal cujos fatores centrais são o juízo e o debate sobre os valores, porém onde não existe resolução racional social dos problemas, encontra a sua internalização, sua representação mais profunda na relação do eu individual com os papéis e personagens da vida social"(5).
Essa cisão ínternalizada, essa verdadeira esquizofrenia moral da modernidade ocidental, se exterioriza no debate político entre os que defendem um individualismo liberal e os que defendem um coletivismo estatal. Debate que não é tão importante por si mesmo, como observa Macintyre, mas por revelar o pressuposto comum dos dois contendores:
"... (ambos)... estão de acordo que temos abertos só dois modos alternativos de vida social, um em que são soberanas as opções livres e arbitrárias dos indivíduos, e outro em que a burocracia é soberana para limitar precisamente as opções livres e arbitrárias dos indivíduos. Dado esse profundo acordo cultural, não é surpreendente que a política das sociedades modernas oscile entre uma liberdade que não é senão o abandono da regulamentação da conduta individual e formas de controle coletivo concebidas apenas para limitar a anarquia do interesse egoísta"(6).
Essa clivagem, que nós intemalizamos, entre a esfera privada dos valores como espaço da autonomia do indivíduo e a esfera pública das normas como espaço da heteronomia do estado-sistema, não é uma condição inevitável do juízo moral, um predicado intemporal de toda comunidade humana. Ao contrário, essa situação é o produto final de um processo cultural que transformou não apenas o sujeito e os seus papéis sociais, mas também a linguagem da moral e as formas do discurso ético(7).
Esse processo caracteriza, isto sim, uma época bem determinada da história, a modernidade, que agora se vê ameaçada em seu ideal programático de construir a moral do indivíduo emancipado e a ética da razão crítica. No entanto, o processo de modernização foi tão rápido e intenso, tão eficiente na dissolução de nossa memória cultural, que nos esquecemos quase por completo da grande tradição ética do ocidente, aquela que alguns autores, como Otfried Höffe, procuram resgatar, e que jamais restringiu a ética ao plano da vida pessoal, mas que, de Platão e Aristóteles a Hegel e Marx, abordaram de um ponto de vista moral as instituições sociais, o direito e o estado(8).
Portanto, a nossa perplexidade, o nosso desamparo racional diante da moralidade, pouco tem a ver com as vicissitudes políticas de nosso desvalido país. Ao contrário, é um impasse que se abriga no coração mesmo da civilização ocidental moderna, nesse momento de sua história em que ela se vê confrontada com o seu destino de civilização logocêntrica.
Então, poderíamos nos perguntar agora, o filósofo autocomplacente conforma-se indiferente à palavra que proclama a sua própria impotência? O que fazer se concluímos que o impasse moral que vivemos não pode ser atribuído simplesmente às circunstâncias políticas ou a uma configuração infeliz de nossa vida social, mas está enraizado nas camadas mais profundas do processo civilizatório do ocidente moderno?
Ora, podemos retrucar, a filosofia pode exatamente isso, fazer o movimento de auto-reflexão de sua própria impotência, e isso significa, para que não pareça um mero jogo retórico, que o discurso filosófico deve reafirmar sua vocação de radicalidade, uma intenção de explicitar plenamente os seus pressupostos de modo a estimular a crítica das ilusões, dos efeitos ideológicos que acompanham toda produção discursiva.
Essa radicalidade, até há bem pouco tempo, parecia perfeitamente descartável, uma espécie de ócio acadêmico, uma vez que os tais "efeitos ideológicos" seriam facilmente detectáveis. Os problemas pareciam ser equacionáveis de modo muito mais efetivo e sem que se precisasse recorrer a abstrusas elocubrações teóricas recorrendo-se a uma pretensa "análise marxista", um saber intermediário entre a ciência "positivista" e a filosofia "idelista". Nesta perspectiva os impasses éticos podiam ser minimizados como secundários em relação à política.
Falava-se recorrendo a uma espécie de fórmula mágica: "tudo é política", logo os problemas éticos são problemas políticos que se ocultam e que serão desmascarados através de uma correta "crítica ideológica". Assim, no plano da moralidade, toda pretensão de universalidade seria uma mistificação ideológica, visando encobrir a realidade da luta de classes, diante da qual não haveria universalidade possível e sim a necessidade de se tomar uma posição partidária. A pergunta subjacente era: a sua prática, por exemplo, a sua prática profissional, está a serviço de quem? Do povo? Dos oprimidos?
Dada a resposta, conhecendo-se a correção ou incorreção daquela prática específica, teríamos o único critério legítimo para guiar nossos juízos de valor, a ortopráxis. Essa seria a única ética possível numa sociedade dividida, ainda não reconciliada consigo mesma. Essa ideologização das questões éticas foi, nos últimos anos, um consolo para os militantes, justamente para os mais sensíveis a tais questões. Mas hoje, não podemos mais nos enclausurar nesse "sonho dogmático", que já se prolongava indevidamente.
Aqui talvez seja oportuno evocar a imagem contristadora da praça ironicamente designada como da "Paz Celestial" em Pequim: o estudante solitário que procurava se interpor ao avanço de um tanque de guerra do "exército do povo". Na ausência de qualquer mediação discursiva, de qualquer instituição que possa garantir o pleno exercício de uma racionalidade autônoma, todo conflito toma-se, interditados os procedimentos dialógicos, um conflito de morte em que um dos contendores deve perecer. É natural, portanto, que o tanque aniquile o estudante. E por que não?
Basta-nos recorrer ao critério da ortopráxis: por que se indignar com a discrepância brutal das forças em litígio se o que conta é o sentido ideológico daquilo que está em jogo? Numa leitura quase que caricatural e, no entanto, tragicamente factual, podemos dizer que de um lado tínhamos o liberalismo, a democracia formal, os direitos individuais burgueses, valores acessíveis apenas a uma minoria privilegiada. Posição representada pelo estudante solitário. Do outro lado temos o socialismo, a igualdade, as conquistas sociais da revolução, enfim, o povo. Representado pelo tanque. Ou seria o inverso?
Como dissipar essa dúvida se não há outra instância judicativa além da praxis? Uma orto-praxis, uma ação politicamente correta, seria uma prática fundada nos interesses verdadeiros da maioria, mas esse "verdadeiro" supõe a posse de uma ciência da história, que não sendo autônoma, pois a autonomia do conhecimento é uma ilusão idealista, legitima-se ao vincular-se aos interesses da maioria. Como escapar desse círculo vicioso? Através do partido, que sintetiza a ciência da história e o interesse real, não espontâneo, da maioria.
Retome-mos então à praça da Paz Celestial para reconhecermos na imagem da violência a elegância de um silogismo materialista:em nome de quem o tanque atira? Não havendo o reconhecimento de uma moralidade racional autônoma, resta-nos a resposta ideológica: o tanque atira em nome do povo. E se nos assalta a dúvida: e quem é o povo? Não havendo interesse verdadeiro sem uma ciência da história que se encarna no partido, resta-nos a resposta operacional: ora, o povo é aquele que possui o tanque!
Assim, tomamos um acontecimento político determinado e o interpretamos de acordo com as categorias analíticas daqueles que o engendraram, para evidenciar, numa "redução ao absurdo", as consequências extremas da ideologização da razão e da ética.
Justifica-se, assim, a radicalidade crítica do filósofo, que recusa as soluções apressadas, que recusa uma resposta fácil e consoladora, para aqueles que, mergulhados na urgência do quotidiano, a buscam com ansiedade. A esses o filósofo diria que é preciso suportar e confrontar a própria impotência, submeter-se à disciplina do pensamento e evitar o conforto da síntese prematura, único meio de reconstituir a gênese dialética do niilismo ético moderno.
Este se associa ao agnosticismo de umarazão empobrecida pelas epistemologias reducionistas e menosprezada pelos esoterismos pós-modernos. Mas, por que permanecermos apenas com essas alternativas: de um lado a racionalidade minguada da ilustração positivista, e de outro, o irracionalismo retoricamente iconoclasta do neo-obscurantismo anti-humanista?
O filósofo, por princípio amigo da sabedoria, não ama a crítica pela crítica, embrenhando no caminho estéril de um regressus ad infinitum, mas aceita o desafio da dúvida na esperança de abrir um novo espaço de inteligibilidade que ilumine no ser das coisas veredas que antes permaneciam ocultas. Nesse sentido, Hegel nos deu uma lição definitiva: o verdadeiro pensamento não se compraz na vaidade de um indivídua cioso de sua originalidade, mas encontra a sua densidade no acolhimento de seu tempo e no paciente perscrutar de suas potencialidades(9).
Foi essa disciplina do pensamento, essa submissão à exigente ascese do conceito que se concretizou nesse grandioso afresco da cultura ocidental que é a "Fenomenologia do Espírito". A extraordinária dificuldade dessa obra genial não decorre do gosto fútil pelo enigmático, mas da intenção de explorar a realidade em toda sua riqueza e complexidade, em não deixar que se rompesse o nexo entre experiência e razão.
Mais do que nunca é necessário resgatar do esquecimento a lição hegeliana de uma esperança lúcida, uma esperança que resista às seduções da razão cínica, mas não tema reconhecer a gravidade da crise que se agiganta no horizonte de nossa civilização. Lucidez, não pessimismo, pois não devemos nos iludir com as promessas de harmonia e felicidade trazidas pela grande onda neo-liberal que vem no refluxo do socialismo real.
A euforia pós-socialista mal disfarça
o esgotamento sócio-econômico, as contradições políticas,
o decadentismo cultural do capitalismo tardio.
Até quando as enormes massas de marginalizados do terceiro e quarto mundos poderão ser ignoradas pelos países desenvolvidos? Estes poderão se imunizar da violência e da miséria no âmbito de uma civilização planetária? E, internamente, como as sociedades desenvolvidas enfrentarão a crônica anomia que irá corroendo as suas instituições na medida em que a liberdade subjetiva tende à máxima expansão e a participação social à máxima retração?
Na medida em que a crescente expressividade
dos indivíduos perde-se na vacuidade
de suas vidas e na insignificância
de seus destinos?(10)
O intenso debate acerca do "fim da modernidade" que, desde os fins dos anos setenta, envolve algumas das inteligências mais brilhantes da filosofia e das ciências humanas, parece confirmar o extraordinário alcance histórico-cultural dessas interrogações. No nível da reflexão ética a questão da crise do projeto moderno pode ser formulada sucintamente do seguinte modo: como conceber uma civilização que, tendo alcançado a sua efetiva universalidade no piano da economia-mundo e da tecnociência, não foi capaz de constituir um ethos verdadeiramente universal?
É possível uma civilização sem ethos?(11).
Essa interrogação verdadeiramente dramática para o futuro humano de nossa civilização não pode ser encarada como um mero artifício retórico e não é difícil apreender o seu significado prático na atual discussão acerca dos direitos humanos: devemos privilegiar como valor fundamental da existência humana as condições concretas da felicidade como a segurança material (comer, vestir, morar, etc.) ou os imperativos abstratos da liberdade como as prerrogativas jurídicas da cidadania (direitos de expressão, locomoção, organização, etc.)?
A simples proclamação de um catálogo dos direitos humanos, conquista inegável da sociedade moderna, não soluciona o impasse que contrapõe de um lado a garantia formal de liberdade de uma humanidade mergulhada na miséria e agrilhoada aos injustos mecanismos que reproduzem a desigualdade entre os povos e de outro o projeto de uma efetiva justiça social que, sem as salvaguardas do direito formal, se degenera numa concretude inumana(12).
Aprofunda crise ética contemporânea já havia sido genialmente apreendida, na própria época da proclamação dos "Direitos do Homem e do Cidadão" (1789), no momento em que a sociedade moderna afirmava-se como historicamente irreversível, pelos filósofos do período clássico do pensamento alemão. Assim, Kant compreendeu que a ética, enquanto domínio da liberdade e da autonomia do sujeito moral, não pode reduzir-se à ciência, enquanto domínio do determinismo e da legalidade da natureza. Caso isso ocorresse, os homens deixariam de ser fins em si mesmos, como reza o imperativo categórico, para tomarem-se meio de manipulação de outros homens. No entanto, essa irredutibilidade da ética à ciência não apontava em direção ao irracionalismo, ao decisionismo subjetivista, porque o discurso moral tinha o seu estatuto próprio de racionalidade (razão prática).
O grande desafio sitemático
do pensamento kantiano seria estabelecer
uma mediação entre as duas esferas da racionalidade,
pois, afinal, a razão científica (teórica)
e a razão ética (prática) são ambas
faculdades humanas.
Do ponto de vista hegeliano, o fracasso sistemático de Kant não se devia à uma deficiência do filósofo, mas à fidelidade de seu pensamento ao seu tempo, o tempo de uma modernidade cindida e incapaz de reconciliar teoria e prática, ciência e moralidade. Hegel, ao contrário, julgava-se o pensador de um tempo pós-revolucionário e propício, portanto, para a captação da inteligibilidade da história. Diagnosticava a "aporia da modernidade" como "tragédia ética": de um lado, a separação entre Ethos (o conjunto de crenças, valores e normas de uma comunidade) e indivíduo (cioso da independência e liberdade de sua ação) e de outro, a contradição entre o indivíduo em sua pretensão de sujeito moral e o sistema com suas exigências tecno-burocráticas crescentemente coercitivas(13).
Para Hegel a reconstrução conceptual do longo itinerário da civilização ocidental, ao mostrar a inteligibilidade do processo, e, portanto, a impossibilidade de se retomar ao passado, abriria um novo espaço histórico: o da articulação dos saberes especializados no horizonte de uma ciência absoluta e da reconciliação dos interesses particulares dos indivíduos num estado ético e racional. Não foi isso, entretanto, que se deu na história efetiva: a racionalidade científica acentuou ainda mais o seu caráter fragmentário e instrumental, a sociedade mergulhou ainda mais na esquizofrenia de um individualismo exacerbado e de um burocratismo hipertrofiado.
Essa crescente divergência entre o curso efetivo da história, desaguando, em nosso século, no totalitarismo, nas sociedades de consumo de massa e na destruição da natureza e a exigência filosófica de realização plena da humanidade determinou uma espécie de escândalo histórico da razão, um sentimento generalizado de impotência que poderíamos denominar de crise na autoconsciência da modernidade: qual seria o significado do fim da época moderna (Neuzeit)? Seria a transformação crítica ou o abandono estratégico dos ideais programáticos da ilustração e da racionalidade autônoma (Modernität)?
Para nos situarmos esquematicamente nos intricados caminhos dessa discussão podemos recorrer as indicações fornecidas por Habermas. Antes, porém, devemos diferenciar dois aspectos do processo de modernização: o social e o cultural(14).
A modernização social refere-se ao desenvolvimento de sistemas autônomos como a economia (mercado) e o estado (tecnoburocracia), que operam segundo as regras da racionalidade sistêmica e instrumental que visa a maximização da produtividade, do desempenho, da eficácia. A modernização cultural refere-se ao desenvolvimento de esferas autônomas de valor (Wertspharen), como a arte, a moral e a ciência que reconem acritérios intrínsecos de validação sem remeter ao sagrado, ao universo simbólico da religião, como instância de legitimação. A cultura moderna seria, então, a primeira cultura essencialmente secularizada na história das civilizações.
A partir dessa distinção podemos compor os seguintes tipos de proposta em relação ao problema da modernidade e seu desdobramento no campo da ética:
1º. A proposta modernizante liberal: implica na aceitação integral da modernidade, social e cultural, na perspectiva da expansão e consolidação dos mecanismos de mercado, da democracia liberal e da tecnociência. No plano da ética o que se verifica é que a racionalidade sistêmica que caracteriza a modernização social é insuficiente para fundamentar a moral, em consequência tende-se ao irracionalismo moral e à hipertrofia da dimensão sistêmica da sociedade (produção-consumo) em detrimento da dimensão interacional da existência (valor, sentido), o que Habermas designou como "colonização do mundo da vida através dos imperativos dos sistemas funcionais"(15).
2º. A proposta modernizante neo-conservadora: implica na aceitação da modernidade social e na rejeição da modernidade cultural, na perspectiva de uma conciliação da economia de mercado e da ciência com valores e concepções da sociedade tradicional pré-modema. Essa posição neo-conservadora pressupõe que o conteúdo da moral seja a histórico e possa ser transportado de uma época para outra, mas o que se verifica é que essa dualidade entre sociedade (moderna) e cultura (pré-modema) é insustentável. A racionalidade sistêmica (moderna) inviabiliza como presença culturalmente significativa a racionalidade substancial (pré-moderna) típica das grandes concepções religiosas do passado.
3º. A proposta pós-modernizante: implica na rejeição integral da modernidade, social e cultural, não na perspectiva de um impossível retomo ao passado, mas visando uma desconstrução do projeto moderno como projeto de unificação e homogeneização da história. Pretende-se, assim, possibilitar a emergência de diferenças irredutíveis (étnicas, sexuais, individuais) que escapem da camisa-de-força normativa que caracterizou até hoje o logocentrismo ocidental. O que se verifica, entretanto, é que a posição pós-modema parece debater-se entre a virulência do discurso que produz e a integração ao individualismo necessário de uma sociedade que realimenta o consumo através da máxima diferenciação dos gostos, dos estilos de vida e dos valores subjetivos.
4°. A proposta dialetizante: implica na aceitação da modernidade cultural, isto é, de uma cultura secular e diferenciada em esferas autônomas de racionalidade e numa crítica forte das patologias da modernização social na perspectiva de uma dialética interna do projeto iluminista. Assim, as pretensões funcionais da economia e da administração seriam contidas pelo dinamismo das interações comunitárias, pelo vigor do "mundo da vida" (Lebenswelt). A racionalidade sistêmica não seria rejeitada, mas subsumida numa nova forma de racionalidade, a comunicacional, capaz de fundar sem reducionismos o discurso ético.
Das quatro propostas acima esboçadas parece-nos que a quarta seria a mais consistente e abrangente, porque evitaria diversos tipos de irracionalismo e de racionalismo reducionista, contornaria tanto a nostalgia do passado pré-moderno quanto o endosso do presente capitalista. No entanto, é recomendável reconhecer as distorções específicas de cada uma delas: a tendência instrumentalista e utilitarista da modernizante liberal, o imobilismo decorrente da dualidade sociedade e cultura da modernizante neo-conservadora, o cinismo devido à convivência de iconoclastia e conformismo da pós-modemizante, mas também o formalismo e utopismo da dialetizante, incapaz de ultrapassar o limiar de uma discussão acerca das condições de possibilidade do discurso ético e formular uma alternativa concreta de comportamento moral.
Por outro lado, as posições neo-conservadora e pós-modema podem também abrir inesperadas possibilidades: a primeira enfatizando a necessidade de se retomar meditativamente à grande tradição ocidental grega e judaico-cristã e a segunda apontando para a dimensão da alteridade moral, isto é, o reconhecimento do outro (indivíduo, grupo, sexo, cultura, povo, etc.) como outro, pois nele há uma diferença irredutível ao meu ponto de vista ou a um elemento comum qualquer "(16).
Em síntese, a racionalidade comunicativa
parece-nos necessária para o estabelecimento
de um discurso ético racional, mas não suficiente
para suscitar uma alternativa concreta
de moralidade para o nosso tempo.
Para que o círculo dialético do Ethos se complete permitindo a formação de uma verdadeira personalidade moral seria necessária a mediação daquilo que Scannone denomina "racionalidade sapiencial", o contato com os valores culturais que muitas comunidades, sobretudo as comunidades populares, ainda preservam e que guardam uma vinculação ainda viva com o passado e a tradição(17).
Nesse fim de milênio em que nossa civilização parece ter chegado a um momento crucial de seu destino histórico, olhar para o passado, perscrutar na escuridão dos tempos os caminhos que não soubemos ou quisemos percorrer, é mais do que um gesto de nostalgia ou um desejo de erudição. Como na célebre analogia de Jean Hyppolite entre a fenomenologia hegeliana e a psicanálise freudiana, se não é possível retomar ao passado como tal, que está definitivamente perdido, é possível reconstruí-lo no presente, na rememoração (Erinnerung) fenomenológica da consciência (Hegel) ou na posterioridade (Nach-träglichkeit) do vínculo transferencial (Freud), e é só essa re-significação do passado que nos permite afrontar o presente e criar o futuro(18).
Mas o sentido histórico que precisamos recuperar não é, evidentemente, o da mera curiosidade historiográfica e ainda menos o do relativismo historicista que, ao datar as obras da cultura, acaba por tudo diluir no fluxo do tempo. Esse historicismo, nos ensina Nietzsche, é uma expressão de decadência, da doença niilista que consome as energias de nosso século(19).
O olhar que a crise contemporânea nos convida a lançar sobre o passado não pode se restringir a uma homenagem aos mortos, mas deve nos levar a venerar no passado o que ainda pode justificar nossa esperança no futuro: a vitalidade de uma tradição - e aqui aludimos à dramática confluência das vertentes grega e judaico-cristã que constituiu a identidade de nossa civilização - que nos estimula a romper com a inércia do presente e com os pressupostos de uma modernidade que aprisiona o pensamento na esterilidade da abstração.
Uma tradição que, ao resgatar nossa origem espiritual do esquecimento, liberte a nossa razão para as possibilidades insuspeitadas do reencontro com o rico manancial da experiência concreta, esse impensado que não cessa de fecundar o pensamento humano(20).
SciELO - Scientific Electronic Library Online
Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.11 n.1-2-3-4 Brasília 1991
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Fonte:
SciELO -
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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-98931991000100002&script=sci_arttext&tlng=en
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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